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Paulo Freire aos quadrados

Duas biografias tentam entender vida e obra de nosso maior educador — e por que ele se tornou o pivô da guerra política e cultural brasileira

01ago2019

Os dois livros aqui resenhados partem da mesma inquietação: de repente, o educador pernambucano Paulo Freire (1921-97) se tornou o emblema de uma batalha, na qual se enfrentam os grupos em que a sociedade brasileira tem se “polarizado”, numa contenda ainda mais acirrada após o triunfo de Jair Bolsonaro e seu partido de ultradireita nas eleições de 2018. Tanto Sérgio Haddad como Walter Kohan, especialistas em educação que trabalham em universidades públicas ou comunitárias, confessam-se estupefatos diante da ignorância que enfeitiça o debate; por isso, decidiram ir à luta escrevendo essas biografias.

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Os livros revelam a que ponto essa disputa está atravessada por mal-entendidos e simplificações toscas que parecem brotar de ambos os extremos do espectro político. Na era dos tuítes frenéticos e das fake news disparadas a esmo, não surpreende que aqui proliferem reducionismos irresponsáveis e golpes de efeito cravejados de inconsistências. Contudo, e para além dos muitos equívocos que eles procuram desentranhar, os autores também sugerem que talvez não seja arbitrária a escolha de Paulo Freire como o brasão dessa briga, levando em conta a enorme potência simbólica plasmada em sua obra e, sobretudo, em sua vida.

Trata-se de dois textos não apenas oportunos e até mesmo necessários, mas também generosos e corajosos; sérios trabalhos de pesquisa e, ao mesmo tempo, alegres gestos intelectuais que apostam na abertura de caminhos em meio à barbárie. São esforços louváveis na tentativa de desfazer a confusão, fornecendo insumos para enriquecer o debate. Os livros acabam se constituindo, portanto, como armas políticas de alto valor no Brasil atual, em que se vive “uma situação política escandalosa”, de acordo com a expressão usada por Kohan.

O educador, de Sérgio Haddad (professor da Universidade de Caxias do Sul), assume-se como “um texto simples, introdutório”, mas ao mesmo tempo “cuidadoso em seu conteúdo e na maneira de tratar os principais fatos da vida e da obra do educador”. O autor conta que uma de suas principais motivações ao escrevê-lo foi “oferecer um material acessível em conteúdo e forma para um conjunto de pessoas que, não conhecendo o educador, quisesse um texto que fosse a porta de entrada para um conhecimento mais aprofundado sobre o biografado”, num momento em que as clivagens entre amor e ódio motivaram a “utilização de argumentos para defendê-lo ou atacá-lo sem qualquer fundamento em sua vida e sua obra”. O resultado é exitoso: o livro cumpre essas metas com competência, precisão, beleza e vigor.

Paulo Freire mais do que nunca, de Walter Kohan (docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), surge de uma fonte mais singular e, também, mais audaciosa. O autor se propôs enxergar uma “apreciação filosófica da vida” desse professor que partiu do Nordeste brasileiro para se projetar em todos os continentes “fazendo escola”. Kohan detecta cinco vetores para destrinchar as ideias e os feitos de seu biografado: vida, igualdade, amor, errância, infância. O belo livro de Kohan ainda inclui duas valiosas entrevistas (com Lutgardes Costa Freire e Esther Pillar Gossi, respectivamente filho caçula e colega-amiga do protagonista), além de um apêndice sobre o movimento Filosofia para Crianças e um epílogo no qual costura algumas críticas delicadas, embora incisivas.

Filosofia educacional

“Não basta saber ler mecanicamente que Eva viu a uva”, disse Paulo Freire num congresso sobre alfabetização ocorrido no Irã em 1975. “É necessário compreender qual é a posição que Eva ocupa no seu contexto social”, acrescentou, “quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho.” Eis uma síntese do que pode significar ensinar, ou aprender, nessa “filosofia educacional” que fez enorme sucesso nos cantos mais remotos do planeta.

Seus livros foram traduzidos para duas dezenas de línguas, sendo um deles, Pedagogia do oprimido (1968), a terceira obra do campo das ciências sociais mais citada no mundo inteiro, superando nomes como Karl Marx ou Michel Foucault, e a primeira absoluta na área da educação; além disso, ele é o brasileiro que foi laureado com mais títulos de doutor honoris causa, concedidos por quarenta universidades de países como Bélgica, Inglaterra, Estados Unidos e Suíça.

Tudo isso deixa claro, também, por que a sua proposta resulta intolerável para o atual governo brasileiro. “Eles defendem que tem que ter senso crítico”, comentou Bolsonaro em agosto de 2018, quando ainda era deputado federal e candidato a presidente. “Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com pensamento crítico”, e continuou: “A educação tem que ser mais objetiva”. No mesmo discurso, pronunciado diante de um grupo de empresários em plena campanha eleitoral, o atual chefe de governo manifestou, recorrendo à sua típica retórica grosseira, sua vontade de “entrar com um lança-chamas lá no MEC para expulsar o Paulo Freire lá de dentro”.

Quando adveio o golpe militar de 1964, Paulo Freire se encontrava em Brasília desenvolvendo um ambicioso Programa Nacional de Alfabetização, com inauguração prevista para o emblemático dia 13 de maio daquele mesmo ano. Mas o projeto foi extinto em 14 de abril, treze dias após a tomada do poder pelos militares. Conforme relata Haddad, o novo governo fez duras acusações ao trabalho desenvolvido pela equipe: “Apontaram o material didático produzido como contrário aos interesses da nação e acusaram seus autores de querer implantar o comunismo no país”. Ao abortar a iniciativa, foi suspenso “o sonho de […] alfabetizar 1,8 milhão de pessoas ainda em 1964, 8,9% do total na faixa de 15 a 45 anos que não sabiam ler nem escrever”.

Afetos tristes

Não é difícil identificar, na brusca decisão de exterminar um empreendimento capaz de mudar de vez o Brasil, os mesmos “afetos tristes” que hoje voltam a nos assombrar. São épocas especialmente sombrias; contudo, parece haver uma sórdida continuidade na perpetuação dessa impotência: o mesmo golpe é dado e re-dado uma e outra vez.

Numa canção de 1993, Caetano Veloso e Gilberto Gil se referiam ao “pânico mal dissimulado” de um deputado “diante de qualquer, mas qualquer mesmo / Qualquer, qualquer / Plano de educação que pareça fácil / Que pareça fácil e rápido / E vá representar uma ameaça de democratização / Do ensino do primeiro grau”, convocando a pensar e rezar por aquilo que um país como o Brasil poderia, mas não consegue, alcançar porque as forças obscuras que também compõem esta nação sistematicamente o impedem.

Em abril de 2012, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, foi promulgada uma lei que tornou Paulo Freire “patrono da educação brasileira”. Tratou-se de um ato simbólico, mais uma vez, visto que o sistema educacional do país sempre esteve longe de ter absorvido a contundente crítica à “educação bancária”, segundo a qual o docente “deposita” o conhecimento na mente dos alunos, em proveito de um aprendizado construído em conjunto e de uma política capaz de abolir hierarquias entre opressores e oprimidos, de modo geral, nas relações de poder dentro e fora das salas de aula. Contudo, o teor simbólico da homenagem não deveria ser subestimado.

Tanto é que, entre os cartazes dos manifestantes que a partir de 2013 apoiaram o impeachment da ex-presidenta nas ruas de todo o país, destacaram-se alguns com os seguintes dizeres: “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”. Os setores mais reacionários da sociedade voltavam a erguer sua voz e, novamente, quase duas décadas após o seu falecimento, o educador virou alvo de críticas associadas ao Partido dos Trabalhadores, que ele havia ajudado a fundar em 1980. Numa batalha que também infestou as redes sociais, foi acusado não apenas de ser um dos responsáveis por “afundar” a qualidade do ensino no Brasil, mas também pelo doutrinamento ideológico “comunista” que imperaria nas escolas.

O leitor constata que o biografado é muito mais complexo e fascinante do que o clichê ao qual foi reduzido

Além de se deterem nesses fatos, as biografias comentam um episódio de 2017, quando circulou uma proposta legislativa que rapidamente angariou as 20 mil assinaturas necessárias para que o Senado avaliasse retirar de Paulo Freire o título de “patrono da educação brasileira”. De acordo com levantamento realizado por Kohan, o texto da petição estava repleto de erros de ortografia e digitação, além de várias aberrações conceituais e um vocabulário pouco atinado ao se referir ao “método que levou a educação brasileira para o buraco”. 

A iniciativa não foi aprovada, embora o próprio Bolsonaro tenha voltado a insistir no assunto em abril deste ano, numa entrevista concedida a uma menina de oito anos de idade: “Quem sabe nós temos uma patrona da educação, não mais um patrono muito chato?”, disse o presidente na ocasião. “Não precisa falar quem é, que temos até o momento, que vai ser mudado, estamos esperando alguém diferente.”

Um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), também se envolveu em discussões e polêmicas em torno de Paulo Freire na internet. Já em maio de 2017, quando se cumpriram duas décadas de sua morte, ele se manifestou no Facebook com a seguinte frase: “20 anos sem Paulo Freire… graças a Deus!”. Em abril deste ano, após defender Olavo de Carvalho, considerado o “filósofo de cabeceira” da família presidencial, ele disparou no Twitter: “Falta o pessoal da esquerda agora dizer quem é Paulo Freire e o seu legado na educação nacional”. Com as centenas de respostas recebidas, o nome do educador se tornou trending topic  (um dos temas mais comentados) do Twitter, atiçando uma guerra verbal inimaginável alguns anos atrás.

Diante de tamanha fúria, cabe nos perguntarmos o que incomoda tanto nesse personagem que morreu há 22 anos e que já parecia comodamente instalado — e um tanto adormecido — no bronze do establishment acadêmico. Por que ele foi ressuscitado agora, vestindo as roupas do inimigo número 1 deste governo inqualificável? Os dois livros aqui resenhados fornecem pistas para tentar responder a essa pergunta. Nesse percurso, os leitores farão gratas descobertas, ao notar que o biografado foi alguém muito mais complexo e fascinante do que aquele clichê ao qual acabou reduzido, tanto por aqueles que o idolatram como por aqueles que o detestam.

Reverência e difamação

“O deslumbramento que sua figura provoca — tanto como o seu contrário, uma rejeição tão passional quanto — converge para uma postura acrítica, reverencial ou difamadora, as duas igualmente pouco responsáveis e interessantes para se pensar livremente a partir das tensões presentes na vida e na obra do educador de Pernambuco”, resume Walter Kohan. Uma das primeiras evidências a que se chega, ao tomar contato com a vitalidade do seu pensamento e com o seu peculiar percurso existencial, é que ele realmente tentou não virar “Paulo Freire”, esse monumento com vocação caricatural que hoje é rapinado nas disputas acima evocadas.

“Uma vez, no início das minhas viagens pelo mundo, alguém me perguntou, não lembro onde, ‘Paulo, o que nós podemos fazer para segui-lo? Para seguir as suas ideias?’”, relata o educador num texto publicado postumamente. “E eu respondi: ‘Se você me seguir, você me destrói; o melhor caminho para você me seguir é você me reinventar, e não tentar se adaptar a mim’”. Essa resistência a se tornar um mausoléu, estimulando em troca uma constante reinvenção, é prova de um pensamento que se alimenta de diálogos e fluxos vitais, em vez de se estancar na segurança de verdades indiscutíveis. “Devemos seriamente questionar como pensamos e como conhecemos”, afirmou em outra ocasião. “Uma pedagogia será tanto mais crítica e radical quanto mais ela for investigativa e menos certa de ‘certezas’”, lançou em outra oportunidade.

Trata-se, portanto, de uma filosofia viva que não teme se defrontar com a alteridade e, por esse caminho, atingir a radicalidade dos questionamentos que partem da constatação da diferença em vez de procurar aboli-la por decreto ou pela força do grito. “Nós somos todos diferentes e a maneira como se reproduzem os seres vivos é programada para que o sejamos”, escreveu em 1992. “É por isso que o homem teve a necessidade, um dia, de fabricar o conceito de igualdade; se nós fôssemos todos idênticos, como uma população de bactérias, a ideia de igualdade seria perfeitamente inútil.”

Daí o valor da aposta de Walter Kohan, que se propôs retomar os textos e a trajetória de Paulo Freire para pensar, junto com ele, algo urgente na atualidade, em meio a tanto ruído que conspira contra todo pensamento. Ensinar e aprender são atos políticos; há algo fortemente político na tarefa de educar, e é por isso que tanto a educação como Paulo Freire estão no centro desse combate nos nebulosos dias de hoje. Mas para atingir o coração disso “que importa pensar”, é preciso se situar “fora das cegueiras partidárias” que se contentam com meras apologias ou condenações, para poder pensar de um modo livre e sensivelmente político.

“Sempre digo que a única maneira que alguém tem de aplicar, no seu contexto, alguma das proposições que eu fiz é exatamente refazer-me, quer dizer não seguir-me, o fundamental é não seguir-me”, enfatizava Paulo Freire já em 1985. 

Evidentemente, ele não foi escutado. Já faz décadas, aliás, que o nome de Paulo Freire se tornou uma espécie de palavra-chave consensual nos discursos pedagógicos oficiais; algo que pode ter levado a anestesiar boa parte de sua virulência ao se transformar numa usina de frases estereotipadas com tom açucarado, tornando palatável sua filosofia traduzida em inofensivas receitas de bolo ou tolas sentenças de almanaque.

Do outro lado do ringue, desdobra-se o ódio obtuso de quem reage de modo envenenado diante da força que emana dessa vida potente, buscando aniquilá-la com argumentos esfarrapados e violência explícita. Conforme ele declarou em entrevista de 1994, o Brasil tem uma “classe dominante profundamente autoritária e elitista”, que “continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”.

“Realmente gosto de gostar de outras pessoas e de me sentir bem com elas”, disse Paulo Freire em 1990, “gosto de viver, de viver a vida intensamente, sou do tipo de pessoa que ama apaixonadamente a vida.” Haverá algo mais subversivo do que isso?

Quem escreveu esse texto

Paula Sibilia

Professora da UFF, é autora de O show do eu: a intimidade como espetáculo (Nova Fronteira).