Divulgação Científica,

Um manual para usar alucinógenos

Com sessenta anos de atraso, ‘A experiência psicodélica’, livro que embalou viagens e se tornou um clássico, chega ao Brasil

25maio2022

Cultuado como uma espécie de guru da contracultura, o psicólogo norte-americano Timothy Leary começou a colocar em prática um plano mirabolante no início dos anos 60. A ideia do então professor na Universidade Harvard era democratizar os psicodélicos e despertar o interesse por essas substâncias em todo o mundo. O objetivo: expandir a consciência global e fazer com que as pessoas alcançassem a transcendência e a libertação do ego.

Com a colaboração de outros dois psiconautas pioneiros, Ralph Metzner e Richard Alpert, Leary escreveu um curioso manual para iniciantes. Nele, os intrépidos cientistas explicam detalhadamente como realizar uma sessão com drogas alucinógenas e surfar por elas, driblando bad trips de todos os tipos. Lançado em 1962, A experiência psicodélica embalou muitas viagens e logo se tornou um clássico. Agora, de carona na retomada das pesquisas científicas com alucinógenos, a obra finalmente ganha uma edição brasileira.


A experiência psicodélica, de Timothy Leary

Vale destacar a trajetória singular do principal autor da obra, Timothy Leary, e seus projetos um tanto delirantes. Em 1960, à beira de uma piscina em Cuernavaca, no México, o excêntrico neurocientista experimentou pela primeira vez a psilocibina, princípio ativo presente nos cogumelos psicodélicos. De volta aos Estados Unidos, emplacou o Projeto Psilocibina na Universidade Harvard junto com Richard Alpert. Durante o estudo, centenas de pessoas se submeteram a sessões psicodélicas conduzidas pela dupla de cientistas — que também participava das sessões, tomando doses cavalares de psilocibina. Ao final, ainda fechavam os trabalhos com LSD.

Em seguida, com Ralph Metzner, Leary se lançou em um estudo ainda mais ambicioso: os cogumelos psicodélicos foram testados em detentos, a fim de avaliar o potencial da droga na redução da reincidência de criminosos. Leary, no entanto, parecia transformar seus experimentos em espécies de cultos, com ares de seita, o que não tardou a incomodar outros pesquisadores da famosa universidade em que trabalhava. O racha acabou virando uma reportagem no jornal Boston Herald, de Massachusetts, e a polêmica ganhou holofotes na mídia. Porém, ao mesmo tempo que o guru dos alucinógenos se tornou uma celebridade, começou também a ser perseguido pelas autoridades norte-americanas — e acabou até preso. O trio de pesquisadores foi expulso da Harvard, mas já era tarde: a caixa de Pandora dos psicodélicos já estava aberta.

Renegado pela Harvard, Leary foi abraçado por ‘beatniks’, ‘hippies’ e multidões de malucos

Ao escaparem dos laboratórios, das universidades e dos rituais xamânicos de povos originários, os psicodélicos colocaram a sociedade em erupção, promovendo importantes transformações culturais, comportamentais, sociais e políticas. Mas o carnaval alucinógeno que se iniciou na badalada década de 60 não demorou a causar estragos. E a ressaca foi tenebrosa.

Renegado pela Harvard, Leary foi abraçado por beatniks, hippies e multidões de malucos que se lançaram em uma busca alucinada pela transcendência psicodélica por ele anunciada. Poucos anos depois, as drogas alucinógenas foram proibidas e os estudos, interrompidos por décadas. Assim, A experiência psicodélica marca o início de uma gigantesca onda que o surfista do caos, Timothy Leary, equivocadamente pensava poder surfar.

Origens

Em sua busca pela psilocibina, Leary foi ao México — país-berço de tradições indígenas que utilizam os cogumelos mágicos em cerimônias milenares. Mas, em vez de procurarem inspiração e orientação no xamanismo da América do Sul, ou mesmo da América do Norte, ele e seus colegas preferiram se conectar com O livro tibetano dos mortos — e aqui cabe ressaltar o comportamento dominador de lidar com outras culturas, apropriando-se do que interessa e desprezando tradições que aparentemente não têm valor.

Pajés, curandeiros e xamãs foram fundamentais no início das pesquisas psicodélicas. Porém, anos de expansão da consciência parecem não ter sido suficientes para um devido reconhecimento. Mesmo no atual momento da chamada renascença psicodélica, o conhecimento indígena sobre as plantas alucinógenas não tem seu valor reconhecido. Por isso, desaponta mas não espanta que A experiência psicodélica não traga nenhuma menção aos indígenas.

Pajés, curandeiros e xamãs foram fundamentais para as pesquisas psicodélicas, mas nunca tiveram o devido reconhecimento

Não há nem uma linha sequer sobre a famosa curandeira María Sabina, por exemplo, com quem o banqueiro (e micologista nas horas vagas) norte-americano Robert Gordon Wasson experimentou cogumelos mágicos em 1955, em Huautla, no México. A aventura, relatada dois anos depois em um extenso artigo na revista Life, foi o que acendeu de vez o interesse do grande público norte-americano — e de Leary — pelos alucinógenos.

Por outro lado, o livro traz muitas menções ao budismo tibetano, o que mostra que Leary estava muito mais interessado em estabelecer uma ponte entre o Ocidente e o Oriente do que no xamanismo latino-americano, do qual provém a maior parte do conhecimento acumulado sobre os usos dessas substâncias.

No Brasil, o descaso com o conhecimento dos povos tradicionais também acontece em relação à ayahuasca, bebida enteógena presente na tradição ritualística milenar de diversos povos. Para ficar em um único caso, na União do Vegetal, grupo religioso que utiliza o chá em seus rituais e conta com milhares de sócios em suas mais de duzentas unidades pelo Brasil, a descoberta do misterioso chá das visões é atribuída ao rei bíblico Salomão.

Isso posto, A experiência psicodélica trouxe contribuições imensuráveis para a compreensão do uso de substâncias alucinógenas em todo o mundo. No livro, Leary detalha pela primeira vez, por exemplo, as ideias de set e setting, termos usados até hoje por cientistas do meio.

Ele esclarece que o simples ato de usar algum ativo psicodélico não garante por si só uma experiência de transformação e transcendência. Segundo ele, os alucinógenos funcionam como uma chave química que libera a mente de seus padrões e estruturas comuns: “A natureza da experiência depende quase inteiramente de set (mentalidade) e setting (ambiente)”.

O psicólogo explica que o termo set está relacionado à preparação do indivíduo, à estrutura da personalidade e às condições emocionais no momento da experiência. Já o setting se refere ao campo físico, que engloba o local onde a sessão psicodélica ocorre e outros aspectos culturais e sociais.

Leary defende que a leitura do seu guia pode ajudar o “viajante” a se libertar de perigosos jogos mentais relacionados à personalidade. Dessa forma, contribui para evitar as indesejáveis bad trips, conhecidas como “peias” entre grupos religiosos ayahuasqueiros no Brasil.

Guia

O manual de Leary, Metzner e Alpert descreve uma sessão psicodélica passo a passo e é baseado diretamente em O livro tibetano dos mortos, obra considerada sagrada no Tibete e que tem o propósito de guiar a libertação da consciência no plano pós-morte. Esse processo é comparado pelos autores ao que pode ocorrer simbolicamente em uma sessão com substâncias alucinógenas, algo descrito por eles como morte ou dissolução do ego.

Para justificarem a forte inspiração em O livro tibetano dos mortos, os autores argumentam que o Bardo Thödol (título da obra em seu idioma original, que pode ser traduzido como “Libertação pela escuta no plano pós-morte”), sob o disfarce de ciência da morte, revela o segredo da vida: “Nisso reside seu valor espiritual e seu apelo universal”.

Visionários, Leary e seus colegas ofereceram e continuam a oferecer em A experiência psicodélica um norte para incontáveis pessoas que, sem o livro, teriam mergulhado em uma viagem alucinógena sem nenhuma orientação. Nesse sentido, a obra funciona também sob uma perspectiva de redução de danos. “Relaxe e aproveite o fluxo veloz. Não se apegue a nenhuma visão ou revelação. Deixe tudo fluir através de você”, lê-se uma das dicas primorosas do livro (e que mereceu destaque na quarta capa).

Para o psicólogo Sandro Rodrigues, da Associação Psicodélica do Brasil, os autores do livro trouxeram contribuições relevantes: “Distinguiram diversas fases na experiência psicodélica, marcadas por emoções e reações típicas”. Procedimento que, segundo ele, ainda norteia, por exemplo, o processo de seleção de músicas em sessões de terapia com elementos psicoativos.

A última parte do livro apresenta um guia mais prático e objetivo, com informações minuciosas sobre como organizar uma sessão psicodélica — sem conexões com o budismo tibetano. As orientações detalham esquemas de dosagens e até o uso de fármacos para náusea, ansiedade ou nervoso para serem utilizados antes ou mesmo durante a experiência.

Nesse ponto, cabe uma advertência, como observa Renato Filev, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador científico da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas: “Geralmente, em uma experiência para fins terapêuticos, é possível lançar mão de substâncias para atenuar algum efeito ou comportamento de bad trip, como por exemplo ansiolíticos. Mas, em uma sessão que não seja assistida por terapeutas psicodélicos, esse tipo de uso pode oferecer riscos”. O pesquisador alerta: “Na minha experiência com redução de danos em contexto de festas, observo que fármacos são usados para manejar crises, mas se automedicar é complicado e delicado.”

O uso de psicodélicos não deve ser tratado com leveza, e cada experiência é única. É o que já advertia Timothy Leary há sessenta anos: “Não tome a menos que você esteja especificamente preparado para sair de sua mente. Não tome a menos que você tenha alguém muito experiente com você para guiá-lo. E não tome a menos que você esteja pronto para que sua perspectiva sobre si mesmo e sua vida mude radicalmente, porque você vai ser uma pessoa diferente, e você deve estar pronto para enfrentar essa possibilidade”.

Quem escreveu esse texto

Carlos Minuano

Jornalista, escreveu Raul Seixas por trás das canções (BestSeller).