Divulgação Científica,

Direito à felicidade química

Professor da Universidade Columbia defende a descriminalização de todas as drogas — incluindo heroína, a sua preferida

26ago2021 | Edição #49

Não há boas evidências de psicoses e danos cerebrais causados por drogas, seja maconha, metanfetamina, heroína ou cocaína. Epidemia de overdoses por opioides é exagero. Dependência química não é doença nem acontece com a primeira dose. Síndrome de abstinência pode ser tratada. Não cabe falar de drogas recreativas mais perigosas que outras; é possível usar qualquer uma de modo responsável.

Até os bem informados podem concluir que essas afirmações são notícias fraudulentas — fake news, na novilíngua das redes — espalhadas por usuários contumazes de substâncias psicoativas ou traficantes interessados em minimizar o impacto das drogas na saúde de indivíduos e na vida social. Não é bem assim.
 


Drogas para adultos, de Carl Hart.

É verdade que o norte-americano Carl Hart, autor de Drogas para adultos, se assume como consumidor regular de metanfetamina e heroína nesse livro ousado. O neurocientista, embora hoje obrigado a recorrer a traficantes para exercer o que considera seu direito de buscar felicidade, defende descriminalizar e regulamentar todas as drogas, para uso adulto, para pôr fim ao comércio ilegal de compostos muitas vezes adulterados e, aí sim, perigosos.

Hart não é figura fácil de enquadrar em estereótipos. Negro dado a combinar dreadlocks com paletós bem cortados, já foi chamado de “viciado” pelo colaboracionista infiltrado na Fundação Palmares por um presidente que é candidato a réu em Haia. O professor de psicologia e psiquiatria da Universidade Columbia, aos 54 anos, é um ex-militar casado há décadas com Robin, tem três filhos e, em contraste com quem promove cloroquina e abomina maconha medicinal, parte de argumentos fundados em boa ciência para sustentar seu ponto de vista.

Ele conta no livro ter agonizado durante duas décadas sobre a decisão de sair do armário como consumidor satisfeito de drogas. Decidiu-se, diz, ao não suportar mais a própria hipocrisia. Pesquisador voltado ao estudo dos efeitos cerebrais de substâncias psicoativas que entrou no campo para desvendar mecanismos por trás da degradação humana nos bairros pobres onde cresceu, terminou descobrindo uma montanha de mitos que serviam primordialmente para justificar violência policial e encarceramento em massa de negros e latinos.

Figura difícil de enquadrar em estereótipos, Hart foi chamado de ‘viciado’ pelo colaboracionista infiltrado na Fundação Palmares

Hart critica com fúria demolidora a literatura técnica sobre dependência química e danos cerebrais, inclusive seus primeiros trabalhos na área. Dedica acidez especial a vieses alarmistas de pesquisas patrocinadas pelo Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (Nida, em inglês), do qual já recebeu muita verba de pesquisa. Não economiza palavras contra sua diretora, Nora Volkow, bisneta de Leon Trótski que se tornou a tsarina do setor marcado pelo proibicionismo da Guerra às Drogas declarada por Richard Nixon em 1971. Desfere pauladas também contra jornalistas que amplificam preconceitos baseados nas conclusões frágeis desses estudos.

O neurocientista denuncia antes de mais nada artigos baseados em imagens do cérebro que supostamente comprovariam danos cerebrais, perdas cognitivas e alterações estruturais inerentes à dependência. Argumenta que os controles são inadequados e que as medições recaem na margem de variação natural presente em indivíduos que não usam drogas ilícitas. Quando muito, tais investigações implicam correlação, não causalidade, não sendo possível excluir que outros fatores concorram para os resultados observados — como pobreza, desnutrição, violência e abuso de álcool, tabaco e outras drogas legais.

Réplica

Durante a leitura de Drogas para adultos, topei com um desses artigos, publicado em 16 de junho na revista jama Psychiatry, associando uso de maconha na adolescência a diminuição da espessura do córtex cerebral com base em 1.598 imagens de ressonância magnética de 799 jovens acompanhados por cinco anos em oito locais da Europa, mais tomografia por emissão de pósitrons (PET). Parecia um estudo mais robusto que os criticados por Hart, e lhe enviei o texto. O neurocientista não se fez de rogado.

“Os autores pareceram cuidadosos ao não fazer afirmações de causalidade”, respondeu por correio eletrônico. “Mas o leitor não treinado pode acreditar equivocadamente que [o artigo] mostra achados importantes causados pelo uso de maconha. Não mostra, e os autores são cautelosos ao não tirar tais conclusões.” Hart criticou, por exemplo, o fato de utilizarem imagens pet de amostra diversa da do grupo de 799 adolescentes.

“Outro problema é que os autores discutem ‘desenvolvimento alterado de espessura cortical’ como se isso fosse patológico, e não apenas diferente. Diferente não significa, necessariamente, patológico. Existe uma ampla gama de desenvolvimento de espessura cortical que é considerada normal.”

Hart segue desmontando mitos recorrentes sobre drogas e dependência com dados de estudos de seu grupo e de outras pesquisas, além de testemunhos de bons resultados observados por ele em países como Portugal e Suíça, que tratam disso sob a ótica de saúde pública e não de repressão policial (denuncia ainda a hipocrisia da política de drogas assassina no capítulo “O paradoxo brasileiro”). Tudo entremeado com a narração dos efeitos sentidos em sua própria carne, incluindo tresloucado autoexperimento com síndrome de abstinência.

Não se trata de interpretações e opiniões, mas de fatos que podem ser verificados ou contestados, objetivamente: de 1970 a 2000, o consumo de maconha decuplicou nos Estados Unidos sem que se tenha detectado aumento concomitante de casos de psicose; após a descriminalização de todas as drogas em Portugal, o número de usuários de heroína recuou de 100 mil para 25 mil; a maioria dos traficantes norte-americanos é caucasiana, mas 80% dos presos por tráfico são negros e latinos; menos de 8% das pessoas com prescrição para uso contínuo de opioides contra dor crônica desenvolvem dependência; a maioria das mortes por parada cardiorrespiratória atribuída a opioides envolve uso concomitante de álcool e outros sedativos.

A maioria dos traficantes norte-americanos é caucasiana, mas 80% dos presos por tráfico são negros e latinos

Hart defende posição controversa e impopular, o que por vezes o leva a pôr ênfase em dados parciais para reforçar o argumento. Ele contrapõe 40 mil mortes anuais em seu país por armas de fogo a apenas 15 mil causadas por heroína (sua droga preferida no presente); deixa de mencionar, entretanto, que ocorrem mais de 70 mil óbitos por overdose, 50 mil deles com opioides envolvidos. Também se pode apontar simplismo na descrição de cracolândias e favelas conflagradas no Brasil. Nada disso, no entanto, tira força de seu libelo pela descriminalização geral.

Ímpeto libertário

Às evidências científicas com que apoia seu ponto de vista iconoclasta, Carl Hart agrega argumento ético e político difícil de rebater: todos têm direito a buscar felicidade (como reza a Declaração de Independência dos Estados Unidos), da maneira que lhes aprouver, se não houver dano a outrem, e não cabe ao Estado impor limites a isso.

Seu ímpeto libertário o conduz inclusive a denunciar o chamado renascimento psicodélico, voga de testes clínicos para tratar transtornos mentais com MDMA, psilocibina, ayahuasca, ibogaína ou LSD. Vê nessa moda mais uma maneira de estigmatizar certas “drogas de pobre” (maconha primeiro, depois crack, metanfetamina e opioides) ao separá-las de outras, supostamente mais benignas, quando psiconautas da elite branca que as consagram sob justificativa médica estão atrás do mesmo que negros e latinos pobres: menos sofrimento e mais prazer.

Em meu livro Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira (Fósforo, 2021), cheguei a conclusão parecida, ainda que restrita aos psicodélicos: “Se há remédio, se existe uma tecnologia humana para endireitar o torto, antecipar-se à dor, afiar os afetos e trazer paz diante do inevitável, por que não o tomar?”.

Hart sustenta que as substâncias capazes de trazer tal bem-estar não se resumem a psicodélicos e incluem drogas injustamente vilipendiadas, como heroína, metanfetamina, PCP e cocaína. Se não somos capazes de refutá-lo, com base em evidências e não em ideias preconcebidas, estamos obrigados a concordar com ele.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Leite

Jornalista de ciência, escreveu Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #49 em julho de 2021.