Biografia,

A história em camisola de dormir

Lira Neto e Ruy Castro preenchem lacuna teórica e iluminam o mal tratado gênero dos ensaios biográficos

19jan2023

Nos idos do revolto 2013, artistas do quilate de Chico Buarque e Caetano Veloso se meteram em um vespeiro: “Procure Saber”. O megafone do movimento coubera à empresária Paula Lavigne, então ex-mulher de Caetano. O que a turma queria era uma espécie de habeas corpus preventivo, defendendo a proibição de biografias não autorizadas de personalidades públicas. O debate pegou fogo.

Ao contrário do que se podia esperar ou prever, gente letrada em liberdade de expressão achou razoável banir biografias sem chancela prévia dos biografados ou herdeiros destes. Na prática, só hagiografias seriam bem-vindas. Em grego, hagios significa “santo”; graphía, “escrita”.

Em meados de 2015, após quase dois anos de bafafá, o STF deu a última palavra: “Pela biografia não se escreve apenas a vida de uma pessoa, mas o relato de um povo, os caminhos de uma sociedade”, sentenciou a ministra Cármen Lúcia.

Por que tão descarada obviedade ganhou status de debate público sério? Dois livros lançados pela Companhia das Letras chegam dando tapas de luva na questão de fundo daquele debate: retrato temporal ou fofoca da vida alheia? Aliás, uma velha questão.

        

Ruy Castro, considerado um bandeirante do assunto e renovador do gênero no Brasil ao lado de Fernando Morais, escreveu A vida por escrito; e Lira Neto, autor da monumental trilogia Getúlio, entre outras obras importantes, traçou A arte da biografia. Com estilos marcadamente distintos, cada um à sua moda, a dupla de bambas consegue iluminar o mal tratado gênero, ainda considerado menor, irmão bastardo da história, primo pobre do romance. Além de ensinarem técnicas a aspirantes a biógrafos, Lira e Ruy ajudam a preencher uma lacuna teórica, colocando no papel um saber que conquistaram quebrando pedras.

“A biografia sempre será um gênero difícil. Exigimos dela os escrúpulos da ciência e os encantos da arte, a verdade sensível do romance e as mentiras eruditas da história”: a citação do francês André Maurois, biógrafo de Voltaire, Balzac e Byron, aparece logo no primeiro capítulo de A arte da biografia. Intitulando-o “Breve ‘biografia’ da biografia”, Lira nos pega pela mão e nos conduz pelo fio da meada, lançando mão da riquíssima polifonia que vem acompanhando o gênero ao longo dos séculos, desde, literalmente, a Idade da Pedra. De acordo com o autor, o primeiro grande mestre foi Plutarco, biógrafo de Alexandre, o Grande: “É preciso que se lembrem que não me pus a escrever histórias, mas vidas”, frisou o grego na introdução da obra.

A costura de Lira Neto não salta um ponto. Com o advento do Renascimento, quando o homem vai tomando gradativamente o lugar de Deus no centro do universo, as biografias se alastram. Giovanni Boccaccio, mais conhecido pelas novelas picantes, escreveu sobre a vida de Dante Alighieri , além de se dedicar a biografias de personagens femininas como a rainha egípcia Cleópatra. Nicolau Maquiavel, autor de O príncipe, escreveu a biografia do capitão Castruccio Castracani, duque de Lucca, “representação do homem moderno e ideal”.

Os dois autores colocam no papel um saber que conquistaram quebrando pedras

Segundo Lira Neto, havia convergência entre o príncipe da obra mais famosa de Maquiavel e a figura histórica de Castruccio. Para ambos, era a vitória, não o modo de atingi-la, o que trazia a glória. “Por toda a Europa, em particular na França e na Inglaterra, o gênero biográfico disseminou-se nesse período”, conta Lira. “Entretanto, somente no final do século 17 e início do século 18 o termo biografia passara a ser registrado nos dicionários europeus.”

Tanto Lira Neto quanto Ruy Castro fazem jus à pioneira das biografias modernas, publicada em 1791: A vida de Samuel Johnson, do inglês James Boswell, um calhamaço em dois volumes de mil páginas cada um.

“O fato de Boswell ter tido total acesso pessoal a Johnson durante 28 anos e mantido com ele incontáveis conversas não impediu que os defeitos do biografado viessem à tona no texto final”, comenta Ruy. “Alguns podiam ser vagamente recrimináveis, como o orgulho e a vaidade. Outros eram hilariantes, como a aflitiva coleção de tiques de Johnson […]. E seus hábitos inusitados, como o de tomar 25 xícaras de chá numa sentada.”

É curioso que Johnson também fora biógrafo, além de poeta, ensaísta e crítico literário. Escreveu, entre outros, A vida do Sr. Richard Savage, promovendo uma reviravolta ao biografar, em vez do herói exemplar, um poeta pobretão e arruaceiro, que chegara a matar um homem em uma briga.

“Não contem que sou biógrafo”

Com o trotar das décadas, muito se revirou a questão da legitimidade das biografias. O debate adentrou os corredores acadêmicos, como conta Lira Neto. Na França, Émile Durkheim, o “pai da sociologia”, afirmava que os processos históricos eram completamente independentes da ação individual. Seu discípulo, François Simiand, propôs exterminar os três ídolos que condenariam os estudos históricos ao atraso: o “ídolo político”, o “ídolo cronológico” e o “ídolo individual”. “Por que não eliminar por completo, pelo menos da história científica, esse esforço consagrado a biografias?”. Até Karl Marx entrou na dança, ao descredenciar a ação do indivíduo como objeto de análise, privilegiando os sujeitos coletivos. Na opinião de Karl Marx, “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais é feita, mas estas lhes foram transmitidas como se encontram”.

Sendo assim, a biografia entrou no século 20 na berlinda. Ao mesmo tempo, iam surgindo na praça célebres biógrafos, como o inglês Lytton Strachey e o francês André Maurois. O primeiro ganhou o mais importante prêmio literário da Inglaterra, o James Tait Black, com uma narrativa biográfica da rainha Vitória. De acordo com Virginia Woolf: “Um experimento ousado, realizado com habilidade magnífica. Ele [Strachey] nos mostrou um caminho pelo qual outros podem avançar”.

Já Maurois, além de escrever biografias, dedicou-se a um livro sobre o gênero, Aspectos da biografia, reunindo conferências ministradas por ele em Cambridge. “Nos textos, alertava para algumas das maiores dificuldades inerentes ao ofício: conciliar os rigores da pesquisa documental com a busca do prazer estético; dar conta da complexidade humana com base em documentos, não necessariamente fidedignos”, explica Lira.

A depreciação das biografias perdurou, plantando um preconceito que atravessaria os tempos. Em uma frase bem humorada, François Dosse, autor de uma série de biografias de filósofos e historiadores, entre eles Gilles Deleuze, resumiu o clima: “Não conte à minha mãe que sou biógrafo, ela pensa que sou historiador”.

A redenção viria, marcada por um texto do historiador britânico Lawrence Stone publicado em 1979, “O ressurgimento da narrativa”. No cerne do fenômeno, “a desilusão com os grandes sistemas interpretativos da sociedade, derivados do marxismo e do estruturalismo — e a consequente descoberta da subjetividade”. Para a historiadora italiana Sabina Loriga, os historiadores haviam “desertificado o passado”. “Repovoar o passado — eis um bom desafio para a biografia e para os biógrafos”, conclui Lira sobre a polêmica que ronda o gênero.

Macetes e malandragens

O que é uma biografia? Como escolher o biografado? Como apurar as informações? Como entrevistar? E, sobretudo, como amarrar o emaranhado em um relato saboroso que, ao mesmo tempo, contemple a vida de uma pessoa e a época que lhe coube viver? Em A vida por escrito, o agora imortal Ruy Castro escolheu, sobretudo, extrair as respostas da própria experiência, percorrendo os bastidores dos seus livros. Uma autobiografia de biografias que marcaram época, entre estas Chega de saudade, a história da Bossa Nova; O anjo pornográfico, a saga de Nelson Rodrigues; Estrela solitária, sobre Garrincha; e Carmem, a trajetória de Carmem Miranda.

Diga-se de passagem, logo nos primeiros capítulos Ruy afirma que autobiografia nunca é confiável, recorrendo a uma frase de Nelson Rodrigues: “Ao escrevê-la, o sujeito se olha no espelho e se vê num vitral”. Senhor de um texto afiado, bem dotado de charme e humor, ele vai oferecendo ao longo das páginas, além de saborosas histórias, os macetes, a técnica e as malandragens de um biógrafo de longa viagem. Por exemplo: nunca biografar uma pessoa viva. Segundo ele, um biografado vivo é um biografado de risco, porque sua história não terminou: “Ao cometer a indelicadeza de continuar na praça depois de publicado o livro, e por estar sujeito às cascas de banana que a vida nos atira, esse biografado poderá praticar algo que talvez macule ou mele de vez o trabalho que custou anos ao biógrafo”.

Como apurar as informações? Como amarrar o emaranhado em um relato saboroso?

Ruy também não recomenda a escolha de personagens que tiveram uma vida pacata, sem altos e baixos: “Nunca acreditei que Tom Jobim, uma de minhas maiores admirações, pudesse render uma boa biografia. Faltou-lhe drama em vida”. Quanto ao cenário em que vai se passar a história, prefere não cruzar as fronteiras cariocas. Quando lhe perguntam por que todos os seus livros acontecem no Rio Janeiro, lembra que Jorge Amado nunca saiu da Bahia. Por se tratar de um trabalho já abrangente e exaustivo, o melhor seria não precisar, ainda por cima, se entrosar com as esquinas, o ambiente, o clima de um lugar. “Modestamente, o Rio também é a minha segunda pele, e muitas de suas esquinas equivalem aos ligamentos de meus ossos”. Outra verdade absoluta do autor é que a parte mais importante de todas reside na coleta das informações: “Uma biografia não é uma antologia de metáforas tipo ‘a bola era seu mundo’ ou ‘Garrincha era um passarinho’”.

“Sou caninamente purista em relação às biografias”, afirma, ao tratar do uso da imaginação em um relato biográfico. “Se o biógrafo se dispõe a inventar, por que não se dedicar à ficção?”. Para Ruy, liberdade com os fatos não é admissível. As chamadas “biografias romanceadas” seriam, na sua opinião, um mau romance e não uma boa biografia. “O biógrafo não pode penetrar nos pensamentos de alguém, a não ser que este tenha contado para uma fonte (e, de preferência, mais de uma) o que estava pensando naquele momento”.

Nesta altura, o leitor se pergunta: uma biografia é, de fato, o retrato fidedigno do real, composta somente de informações verificáveis? Em A arte da biografia, Lira Neto adentrou as zonas cinzentas. Para Mark Twain, “as biografias são apenas as roupas e os botões; a vida de uma pessoa não poder ser escrita”. O romancista Lobo Antunes concorda: “Gosto muito de ler biografias, mesmo sabendo que elas não biografam nada”. Por este juízo, como discorre Lira, “os abismos da alma seriam insondáveis à investigação biográfica, impenetráveis à escrita de não ficção”.

Romance real

Coube ao biógrafo francês Jean Orieux iluminar as entrelinhas: “Não se trata de uma simples busca do conhecimento, mas de transformar conhecimentos mortos num homem vivo”. Sendo assim, um biógrafo precisaria contar com a criatividade e a intuição. “Se o biógrafo não pode penetrar na vida interior de seus personagens, pode, ainda assim, explorar os seus mistérios”, considerou François Dosse, que adotou a expressão do historiador Paul Veyne para carimbar o gênero: “romance real”. Em sua opinião: “Escrevem-se sempre biografias novas das mesmas personagens, o que não se deve apenas à descoberta de documentos inéditos, mas se explica pelo surgimento de questões novas, de novos paradigmas interpretativos e também pela intuição e a imaginação do biógrafo — ou seja: por sua capacidade inventiva”.

Sobre a questão de que as biografias não passariam de fofoca da vida alheia, Lira Neto recorre a Virginia Woolf: “O biógrafo é ligado por fatos. Mas, se é assim, deve ter direito a todos os fatos disponíveis”. Para a escritora inglesa, as pudicas biografias oficias da era vitoriana podiam ser comparadas aos bonecos de cera em tamanho real carregados nos cortejos reais. Em suma, uma biografia não deveria ser “conscientemente concebida como um guia ético da existência”, nas palavras do também inglês Sidney Lee. Para este, o objetivo não seria a “edificação moral”, mas a busca da transmissão da personalidade do biografado. “Isso não significa que o biógrafo deva agir como um empreiteiro de demolição”, ressalta Lira. “O biógrafo deve arcar com as devidas responsabilidades do ofício. Há que diferenciar o que é informação de interesse público e o que é futrica de interesse público.” Dentre todas as vozes que ele traz para o debate, fica a imagem evocada pelo jornalista, escritor e dramaturgo italiano Corrado Augias: “A história em camisola de dormir”.

Quem escreveu esse texto

Karla Monteiro

É autora da biografia Samuel Wainer: o homem que estava lá (Companhia das Letras).