Alimentação,

Lá vem a nossa comida pulando!

Entre salões, cafés, restaurantes, garçonnière e viagens, biografia culinária traça o roteiro da gastronomia na vida e na obra de Oswald de Andrade

30set2021

Foi em 1927, num jantar em um restaurante especializado em rãs pescadas no rio Tietê, que o conceito de antropofagia teria sido adotado pelo grupo modernista brasileiro. Quando as rãs foram levadas à mesa, sob aplausos, ecoou no salão o grito tupinambá ouvido pelo viajante alemão Hans Staden quando da sua captura: “Lá vem nossa comida pulando!”.

Não é de estranhar que a onda antropofágica tenha surgido em torno de uma mesa: na vida do enfant terrible do modernismo brasileiro, episódios pantagruélicos não foram raros. A arte de devorar o mundo: aventuras gastronômicas de Oswald de Andrade, de Rudá K. de Andrade, historiador e neto do escritor, reúne as peripécias epicuristas de seu célebre avô em uma espécie de “biografia culinária”, publicada pelo selo doburro.

O ensaio é um compêndio de memórias, relatos de amigos e familiares e reflexões. Entre as histórias sobre a intimidade e a obra de Oswald sob as lentes de suas preferências alimentares, Rudá compõe um panorama da história da alimentação na São Paulo da primeira metade do século 20. Os capítulos são saborosamente arrematados por receitas de família, as “Devorações”. O volume combina a investigação acerca da simbólica da alimentação à genealogia dos afetos traçada sobre a mesa dos Andrade.

Partindo da infância até os últimos e diabéticos dias de Oswald, o texto singra as águas de sua primeira viagem à Europa, em 1912, e dos agitos da Semana de 22, na companhia de sua então esposa, Tarsila do Amaral, e do então amigo Mário de Andrade. Também está lá O perfeito cozinheiro das almas deste mundo…, o diário coletivo mantido em sua garçonnière na rua Libero Badaró — repleto de referências alimentícias e principalmente etílicas, já que ali não havia cozinha. O livro aborda ainda a relação com a escritora Patrícia Galvão, a Pagu, avó de Rudá, e o ingresso e o rompimento com o Partido Comunista.

O percurso foi traçado “de forma a visitar trechos da vida e da obra de Oswald em que a culinária e a alimentação assumem papéis de destaque ou mesmo de pano de fundo”, como escreve o historiador. Não poderiam ficar de fora as ceias com ícones internacionais: estiveram à mesa com Oswald, por exemplo, a bailarina estadunidense Isadora Duncan e o escritor franco-argelino Albert Camus.

O volume combina a investigação acerca da simbólica da alimentação à genealogia dos afetos traçada sobre a mesa dos Andrade

Para “entender um pouco mais sobre os gostos culinários que herdou de sua família”, o autor apoia-se nos clássicos dos estudos da alimentação, como o historiador italiano Massimo Montanari e o brasileiro Câmara Cascudo. De Montanari, traz a noção de gosto como produto cultural, transmitido de acordo com as condições históricas e sociais. Já de Cascudo e do sociólogo paulista Carlos Alberto Dória, carrega a concepção da culinária como “um sistema simbólico dotado de léxico e sintaxe próprios, capaz de conferir significados aos modos de cozinhar”, e o argumento de que “a culinária não precisa ser pensada como solução, mas, sim, como um problema”.

Imaginação e deboche

Rudá deglute o espírito vanguardista do avô e nos entrega receitas inusitadas e criativas. No banquete em homenagem a Oswald, entre canapés de ovos de codorna e um assado de vitela cujo preparo remete aos cardápios de acento francês dos salões do mecenato paulistano, figura o “Ceviche Miramar”, acompanhado de “Pastéis à la Cyclone”. Os pasteizinhos — de vento — aludem a  Miss Cyclone, a normalista Maria de Lourdes Pontes, um dos muitos amores de Miramar, como era conhecido o escritor no grupo que frequentava a garçonnière da Badaró. “Não se trata de pensar em um resgate das receitas antigas, mas, sob o sol da inovação, ressignificar o receituário”, explica Rudá. Incorporando o espírito imaginativo e debochado de Oswald, seu neto apresenta receitas como “Rã Abaporu com Pitanga”, “Ovoswald”, “Caruru Moderno” e “Avant Vatapá”.

As “Devorações” são também partes do livro em que conhecemos detalhes da vida do próprio Rudá e de seu falecido pai, o cineasta Rudá Poronominare Galvão de Andrade. Vem dele a memória do aroma de dendê das moquecas, acarajés, bobós e vatapás traçados nas edições da Jornada Internacional de Cinema da Bahia, nas décadas de 80 e 90. Uma das primeiras memórias culinárias de Oswald, moço da elite paulistana, está ligada ao café. O aroma da bebida, preparada ainda no quarto pelo pai em uma cafeteira mecânica, despertava o pequeno gourmand do sono matinal na cama dos pais, onde gostava de dormir “no meinho”.

Na Europa, em 1912, Oswald conhece Madeleine, que não alcançaria o status de sua xará celebrada por Proust em Em busca do tempo perdido, talvez o quitute mais famoso do cânone ocidental. Mesmo associada a prazeres de outra ordem, a Madeleine de Oswald também guardava uma ligação com a cozinha: “Descobri três delícias, um doce, um queijo e uma garota. O primeiro era um éclair, o segundo era um queijinho da Normandia que parecia estragado. Tinha o nome de camembert. A garota chamava-se Madeleine”.

O livro lista restaurantes, bares e cafés frequentados pelo escritor, como a Cantina 1060, o Grand Hotel de la Rotisserie Sportsman, a Confeitaria Fasoli e o Salão Concerto Progredior, todos em São Paulo e hoje fechados. O La Tour d’Argent, em Paris,  segue de portas abertas. Não faltam menções aos banquetes da oligarquia cafeeira, em que artistas buscavam patrocínio para seus projetos. A Villa Kyrial, chácara na Vila Mariana de propriedade do político e mecenas Freitas Valle, abrigava a Ordem dos Gourmets, confraria de intelectuais que se reuniam para discutir (em espanhol) temas da gastronomia e da enologia. “Dentre os jogos lúdicos que as refeições proporcionavam, curiosa e excêntrica experiência era o jantar às avessas, no qual os charutos, cafés e sobremesas iniciavam os trabalhos gastronômicos, que terminavam em sopas”, aponta o autor.

Saída pela esquerda

Mas nem tudo era champanhe e caviar na vida de Oswald. Após perder a maior parte da fortuna no crack da Bolsa de Nova York, em 1929, ingressa no Partido Comunista e entra num estado de abnegação que o leva a “conhecer cortiços, vielas, prisões, lençóis rasgados e a fome física”. No entanto, não abandona a gourmandise. De acordo com um relato, em uma das treze vezes em que a polícia política foi ao seu encalço, teria declarado: “Podem me prender, mas antes vou comer um frango à la cacciatora em Santo Amaro”. Referia-se ao Recreio do Carlos, restaurante chefiado por um amigo socialista que o esconderia por sete dias. Segundo Rudá, “a necessidade de o esconderijo ter uma provisão farta e de qualidade parecia orientar a estratégia de fuga oswaldiana”.

Embora o livro seja recheado dessas divertidas e apetitosas anedotas, o grande tema que permeia o volume  é, sem dúvida, a antropofagia.

Você é o que você come

O ritual antropofágico tupinambá que inspirou o modernismo era motivado pela absorção das qualidades do inimigo capturado, como a força e a coragem, através de sua devoração. Essa crença ancestral de que o comensal adquiriria as características do alimento ao ingeri-lo — classificada nos primórdios da antropologia moderna como “pensamento mágico” — foi ampliada pelo psicólogo Paul Rozin nos anos 70 também às sociedades contemporâneas.  A partir desse conceito, o sociólogo da alimentação Claude Fischler sintetizou, cerca de quinze anos depois, seu “princípio da incorporação”: a ideia de que indivíduos de um grupo “incorporam” as mesmas características dos alimentos que compartilham, o que os torna semelhantes entre si. Ou seja, a comunhão em torno da comida seria a própria base que estrutura nossas sociedades.

O ritual antropofágico tupinambá que inspirou o modernismo era motivado pela absorção das qualidades do inimigo através de sua devoração

Ao apresentá-la como alegoria de resistência à dominação colonial, a exaltação modernista da antropofagia adicionava mais uma camada simbólica a esse processo, colocando em questão os elementos culturais formadores da identidade nacional — também na alimentação, e notadamente através de uma metáfora alimentar. O livro de Rudá K. de Andrade mostra que isso não é pouco.

Às vésperas do centenário da Semana de 22, Rudá atualiza os fundamentos antropofágicos modernistas para a cena contemporânea e tira do forno uma biografia deliciosa, que vai além dos clichês do storytelling da “cozinha afetiva”, para devorarmos e por ela sermos devorados.

Quem escreveu esse texto

Flávia Couto

É especialista em História e Cultura da Alimentação