Alimentação,

A vingança dos farofeiros

Dois livros exaltam a versatilidade e resgatam a história da mais brasileira das receitas, a farofa

01dez2021 | Edição #52

Sou um entusiasta da farofa há muitos anos. Tanto pessoalmente, desde criança, como profissionalmente, na condição de crítico, depois como curador de gastronomia. Fiz particularmente uma defesa pública da especialidade em 2013, mediando um debate entre os chefs Alex Atala e Gastón Acurio — o embaixador da cozinha peruana. Meu ponto: se no Peru o ceviche havia conseguido se tornar o prato-bandeira, conquistando o planeta, nossa mais promissora receita-estandarte não seria nem a feijoada nem o churrasco, mas a farofa. Sigo pensando assim e fico animado ao constatar que, cada vez mais, há cozinheiros e estudiosos se dedicando ao tema.

Farofa tem fórmula? Não basta aquecer a farinha em uma panela e misturá-la com algum ingrediente? De fato, alguma coisa sempre sai — inclusive porque não há cânones nem receitas ortodoxas. Mas de que farinha falamos? Preparada em que gorduras? E associada a que insumos? Do mesmo modo que não existe “a cozinha brasileira”, no singular, mas sim uma coleção de multifacetadas cozinhas regionais, não existe “a farofa”. As possibilidades são vastas, e dois livros lançados em 2020 têm como ponto central a busca por retratar, em abordagens distintas, toda essa riqueza.

Farofa, uma alegria popular, de Sabrina Sedlmayer, abre-se em duas vertentes: uma mais ensaística, de fundamentação histórica e sociológica sobre as farinhas, sua importância e seus usos; e outra de receitas, mais prática, com farofas em diferentes combinações, para diferentes ocasiões. A primeira parte do livro tensiona, chama à concentração. A segunda distensiona, propondo que o leitor vá para a cozinha e se divirta.

A escritora mineira, professora da Faculdade de Letras da ufmg, parte da mandioca e do milho para demonstrar a relevância das duas culturas não só na nossa alimentação, mas na organização da sociedade brasileira. Ela resgata os métodos de manejo e o lugar de destaque da mandioca entre as populações indígenas, ainda antes de 1500. E acompanha a incorporação da raiz (e, posteriormente, do milho) aos hábitos dos colonizadores portugueses — mas não apenas eles, como também os viajantes europeus e os africanos escravizados. Especialista em literatura, ela ainda sugere uma playlist com canções alusivas a farinhas e farofas.

O termo farofeiro está ligado às matulas, à possibilidade de levar no farnel uma refeição pouco perecível e cair na estrada

Sedlmayer menciona outro ponto interessante. O termo farofeiro, com o tempo, associou-se ao turista invasivo, bagunceiro. Mas, na origem, está ligado às matulas, à possibilidade de levar no farnel uma refeição pouco perecível e cair na estrada. Porque a farofa, de fato, é comida de casa e de viagem, de penúria e de celebrações. As 47 receitas, por sua vez, estão divididas em “Farofas para dias quaisquer”, mais simples e rápidas, e “Farofas para dias de festa”, mais elaboradas. A gama vai de uma clássica farofa de ovos a sugestões menos usuais, como a farofa de sardinhas com tomates secos. Seus ingredientes e modos de preparo são apresentados objetivamente. E talvez com descrições que atendam mais quem já saiba cozinhar, sem a intenção de conduzir o leitor pela mão. E é nesse aspecto que o livro se diferencia do quase homônimo Farofa, de Daniela Narciso e Danilo Rolim.

Protagonista

Os autores, com formação em gastronomia, não dispensam aspectos históricos e antropológicos na defesa de sua tese: a farofa é uma protagonista. Mas adotam um enfoque mais técnico, empenhando-se em dar sustentação culinária à sua paixão. Aficionados do prato, passaram pelo mesmo tipo de descoberta: de que existia uma enorme diversidade de produtos, determinada pelo manejo, por diferenças regionais, por processos capazes de realçar notas aromáticas, crocância e muito mais; de que havia, por outro lado, todo um universo de gorduras a ser explorado, de manteiga a azeite de dendê. E que, eclética, a farofa podia acompanhar um item principal, rechear um assado, brilhar como prato de resistência.

Narciso e Rolim informam que as farinhas apresentam variações notáveis. De granulometria e textura, o que altera mordida e absorção de líquidos. De torra, o que impacta no sabor, na cor. De acidez, indo de alta a baixa, o que, para o cozinheiro curioso, evidencia toda uma paleta de alternativas — uma farofa com farinha de Bragança (de mandioca, produzida no Pará) jamais será igual a uma farofa com farinha de milho flocado. Já a escolha da gordura (animal ou vegetal) influencia as características gustativas e exige atenção às temperaturas e aos pontos de queima. É curioso, entretanto, que os livros não explorem (o de Sedlmayer só menciona) uma receita icônica do interior, a farofa de içá.

As 82 preparações do livro demonstram o alcance de tanta versatilidade, expressa já no índice de receitas: Farofas Básicas (por exemplo, na manteiga); Farofas Simples (de feijão-fradinho); Farofas Mistas (couve, ovo e linguiça); Farofas para Rechear (de miúdos, para aves assadas); Paçocas (de carne-seca); Farofas de Farnel (peixe seco e banana-da-terra); Farofas Doces (coco queimado); Farofas Funcionais (quinoa com tofu defumado); Parentes da Farofa (uma interessante associação com tabule, cuscuz marroquino, mollica fritta e outros mais). Depois disso, é difícil voltar à velha argumentação de que “farofa é farofa, e pronto”.

E não se trata de gourmetizar a farofa, nem de gourmetizar o farofeiro, já que eu mesmo me apresentei como um “entusiasta” do prato — sim, sou farofeiro. Mas apenas de reconhecer seu mérito. Se nos deslumbramos com a maravilhosa galeria de massas italianas, com seus formatos aperfeiçoados ao longo do tempo e em função dos molhos, podemos nos encantar com as diferenças entre nossas farinhas, depuradas conforme antigos saberes. Se reverenciamos as apelações e denominações de origem europeias, exaltando, por exemplo, o rigor de um lardo di Colonnata (que eu adoro), podemos valorizar o que há de engenho e arte nas delicadas esferas da farinha de Uarini, no Amazonas. De forma complementar, os dois livros nos ajudam na construção desse novo jeito de olhar — e de comer.

Ouça também: Em episódio do 451 MHz a chef Paola Carosella e o médico Carlos Monteiro conversam sobre políticas públicas e gestos individuais para uma alimentação saudável, gostosa, afetiva e socialmente justa

Quem escreveu esse texto

Luiz Américo Camargo

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.