A Feira do Livro, Repertório 451 MHz,

Olhar feminino, ancestralidade e negritude

A escritora angolana Yara Nakahanda Monteiro e a jornalista brasileira Adriana Ferreira Silva conversam sobre narrativas, origens e o racismo institucionalizado

10jun2022

Está no ar o 65º episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros. A escritora angolana Yara Nakahanda Monteiro, autora de Essa dama bate bué!, conversa com a jornalista Adriana Ferreira Silva sobre a contação de histórias a partir do olhar feminino, trocas culturais do triângulo atlântico, a descoberta da negritude no Brasil, a desilusão com o racismo institucionalizado do país e o que esperam para os próximos dias, em que participam d’A Feira do Livro em São Paulo (8 a 12 de junho).

Duas vezes por mês trazemos entrevistas, debates e informações sobre os livros mais legais publicados no Brasil. O 451 MHz tem apoio dos Ouvintes Entusiastas. Seja um você também! O podcast tem ainda apoio da Companhia das Letras

Essa dama bate bué!

A poeta e ficcionista Yara Nakahanda Monteiro, também comentarista do programa de rádio Avenida Marginal, da RDP África, lançou em 2018 seu primeiro romance, Essa dama bate bué!, pela editora Guerra e Paz, em Portugal. Depois de grande sucesso, o livro foi lançado no Brasil, pela Todavia, em 2021. Yara já escrevia, e no episódio conta como “saiu da gaveta”. 


Yara Nakahanda Monteiro (Paulo Pascoal/Divulgação)
 

A escritora angolanda conversa com a jornalista e feminista Adriana Ferreira Silva, que resenhou o livro para a edição de junho da revista. As duas também estarão juntas amanhã n’A Feira do Livro, na mesa que acontece às 12h, no Palco da Praça, na praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu. Gratuito e aberto ao público, o evento realizado pela Associação Quatro Cinco Um e pela Maré Produções reúne mais de 45 autores nacionais e internacionais e mais de 120 editoras, livrarias, bibliotecas e instituições ligadas ao livro e à leitura. A Feira vai até domingo (12).

Ocupações culturais

“Essa dama bate bué” é uma gíria angolana, que virou também uma gíria portuguesa, e no contexto brasileiro significaria “essa mulher é show de bola”. É uma referência a cidade de Luanda, e Yara decidiu usar isso, e logo na capa do livro, para “fazer uma ocupação linguística”, num processo inverso à ocupação de Angola por Portugal em 1482, com a chegada do explorador portugês Diogo Cão ao Zaire, ocupação que durou até 1975, quando Angola se tornou um país independente. Bué é uma palavra de uma das línguas maternas angolanas, o quimbundo, que como tantas outras palavras entrou para o dicionário português. 


 

Brasil, casa espiritual

Yara nasceu em Angola, em 1979, mudou-se para Portugal aos dois anos, e morou em diversas outras cidades — Londres, Copenhagen, Atenas, Luanda e Rio de Janeiro. Passou dois anos no Brasil, onde ela diz ser sua casa espiritual. “Aprendi muito sobre a cultura africana e sobre a minha ancestralidade no Brasil. Foi onde eu me descobri negra,” conta, complementando com uma fala sobre a força dos movimentos negros no Rio de Janeiro.

O Brasil foi um local que permitiu a procura e o resgate de sua identidade, não só como negra, mas como mulher. E também o resgate de sua identidade como artista. Ela tinha uma carreira de quinze anos e uma empresa de recursos humanos, “mas não estava feliz”. Ela conta como o carnaval do Rio incentivou sua libertação, seu abandono “de uma roupa velha, que deixou de servir”, e como estava desconectada de sua “missão de vida”. Já tinha muitas coisas escritas, apenas publicou muito mais tarde, quando estava no Brasil.

“Primeiro, fui ganhar a vida, e só depois ganhei a alma.” Yara Nakahanda Monteiro

No episódio, ela também dá spoilers de livros que vem por aí: Memórias, aparições e arritmias, um livro de poesia já publicado em Portugal pela Companhia das Letras: “um bonito casamento entre a palavra e a imagem”, com uma escrita pessoal e íntima que resgatam sua ancestralidade, sua adolescência, a condição da mulher negra e periférica e o amor carnal. E outro sobre a amizade, passando pela infância e adolescência, e como algumas acabam, outras se tornam algo mais, a partir de uma perspectiva da interioridade negra.


 

Fofoqueiros da família

Na conversa, mediada pelo diretor de Redação da Quatro Cinco Um, Paulo Werneck, os três se divertem com como os escritores são tidos nas famílias como fofoqueiros, e os eventuais estragos que causam. No caso de Yara, houve incômodos com partes mais conservadoras da família, e ela queria grampear algumas páginas de seu livro, com uma cena sexual, para sua avó ler. Essa recusou: “ou leio o livro todo, ou não quero o teu livro”.

Yara fala sobre como sempre quis escrever sobre suas famílias, tanto materna, quanto paterna, e toda a história que veio com a história de Angola: “Eu sabia que queria escrever uma história sobre um regresso, uma procura, uma jornada, uma descoberta”. Em Essa dama bate bué!, “segui um lugar comum, que foi escrever sobre a minha vila. Escrever sobre aquilo que eu conhecia. Foi intencional. Eu também quis criar uma ideia de interação, de alter ego.” 

O romance traz também um paralelismo intencional entre Yara e a personagem, Vitória. Para Vitória, a primeira memória é uma árvore, a segunda, uma onda. Para Yara, a primeira memória é uma onda, na Praia das Maçãs, com sua avó, quando vieram à Portugal. O abandono de um casamentos e de diversos noivados também surgem no papo.

Liberdade na escrita

O episódio também discute regras de escrita e a quebra dessas, como a mudança de voz narrativa. Essa dama bate bué! é narrado por Vitória em primeira pessoa, e depois muda de voz. Adriana amou, outros odeiam. “Uma das melhores coisas que eu tive ao escrever foi a liberdade da escrita,” diz Yara. “Pra mim a narrativa está morta. Pra mim isso é um conceito ultrapasssado. Não temos que escrever exatamente cronologicamente.”

Yara também explica por que optou por essa mudança de narrador, quando a personagem se descobre uma mulher negra. “Uma mulher negra não tem voz na sociedade, então a história passa a ser narrada em seu lugar. Ela se coloca em uma condição subalterna.” Esta foi a confusão que Yara quis criar.

“A escrita é uma faculdade que se adquire. Eu primeiro comecei a observar histórias.” Yara Nakahanda Monteiro

Adriana pontua como a fala e a escrita de Yara são visuais, e como ela se sentiu em Luanda durante a leitura. Yara destaca que tem olhos enormes, e como isso naturalmente a fez ser uma observadora, traço comum dos escritores. Para ela, a pergunta não deveria ser quando ela começou a escrever, mas quando ela começou a contar histórias, a observar o mundo. Ela também é amante de cinema, fotógrafa e guardadora de registros visuais e detalhes.

Lugar de fala

Se romances devem ser vendidos como “romance lésbicos” quando são escritos ou protagonizados por uma personagem lésbica e se deve haver lugar de fala na criação literária são discutidos no episódio. Refletem sobre como isso poderia restringir personagens de outros sexo ou idade nas ficções, nos privando de obras recentes como Torto arado, em que Itamar Vieira Júnior narra a partir de três pontos de vista femininos, e A visão das plantas, em que Djaimilia Pereira de Almeida traz um personagem traficante de escravos. Adriana lembra ainda obras de Natália Borges Polesso, entrevistada para outra reportagem, e de como a sexualidade dos personagens não é central, apenas uma escolha, na história de dois de seus romances, embora defenda a importância política do nicho de literatura lésbica.

    
 

Angola, Brasil

A relação de Angola com o Brasil e como essa ainda passa por Portugal e a importância de conhecer melhor a história do outro país são pontuados no episódio. “A situação no Brasil é dramática. Nunca deixou de ser dramático se olhamos para evolução social. Agora, acho que culminaram num ponto onde é crítico existir um corte, em qual se exige um novo começo. Em Angola foi muito mais complicado porque foram disputas de poder apoiadas por países de outras posições, como os EUA e a Rússia, na época da Guerra Fria,” diz Yara.

Elas também falam sobre a possibilidade de estreitar o laço do triângulo atlântico e compartilham nomes de autores angolanos, como Kalaf Epalanga (músico, escritor e colunista da Quatro Cinco Um) e Eduardo Agualusa, e principalmente autoras, que trazem um olhar feminino para a história do país e cumprem um papel importante na redefinição dessa.

     
Kalaf Epalanga (à esq.) e Eduardo Agualusa (à dir.) (Reprodução)
 

“Nos meus estudos da história de Angola, me deparei com o silenciamento imposto, as mulheres combatentes, as mulheres que também lutaram contra o colonialismo, que lutaram pela libertação e que foram fulcrais na criação da paz. E que não tiveram o mesmo reconhecimento que os seus camaradas,” conta Yara. Entre as conterrâneas contemporâneas mencionadas estão Dulce Maria Cardoso, Isabela Figueiredo e Djamilia Pereira de Almeida, também colunista da Quatro Cinco Um.

        
Dulce Maria Cardoso, Isabela Figueiredo e Djamilia Pereira de Almeida (Paulo Figueiredo e arquivo pessoal)
 
        
 

“Nós contamos os silêncios. O que tenho contado muito na minha prosa e na minha poesia são os silêncios, que eu descobri bastante tarde. Que finalmente decidiram saltar cá para fora. Então acho que acaba tendo uma força, uma pulsão visceral.” Yara Nakahanda Monteiro

Brasil místico e racismo institucionalizado

Yara fala de como cresceu com a ideia do Brasil místico, do Vinícius de Moraes, da Bossa Nova, do Caetano Veloso e do Gilberto Gil — “este Brasil romantizado e mestiçado” — e a desilusão ao chegar no país e ser “confrontada no cotidiano com este racismo institucionalizado, desde a arquitetura” — o quarto de empregada, o elevador de serviço — e como isso a chocou. 

O dia a dia brasileiro, livros, bons debates nas redes sociais, e pessoas com quem foi se relacionando deram outra perspectiva sobre o país e sobre o que era o negro brasileiro.

“Fiquei chocada que eu na altura também tive que tirar o meu cartão de identidade e tive que escolher a minha ‘raça’, por assim dizer.” Yara Nakahanda Monteiro

    
 

A escritora angolana compartilha leituras que fizeram sua cabeça, entre as quais Negritude, de Kabengele Munanga (Autêntica) — “Foi o primeiro livro que eu li que realmente tirou a minha máscara branca do rosto. É um livro que desperta.” — e Quando me descobri negra (Sesi-SP), de Bianca Santana — “Por vezes nós precisamos de uma linguagem simples e objetiva para o nosso primeiro acordar. E o Brasil oferece essas condições”.

Dias brasileiros

Fechando a conversa, Yara fala sobre seus planos para esses próximos dias no Brasil: participar da Feira, visitar livrarias, visitar a fundação Sueli Carneiro, ir a alguma das comunidades e sentir o real da cidade: “O drama da pobreza, que é visível, acho que agora não dá mais pra esconder, das ruas de São Paulo. Confesso que estou receosa por isso.” E também o imprevisto: “Gosto acima de tudo, de estar aberta. Eu gosto do imprevisto, vamos lá ver o que que acontece. Espero que me levem à uma roda de samba, que já estou farta de pedir.”


Foto de Lia Lubambo
 

O melhor da literatura LGBTI+

Neste episódio, a jornalista e historiadora Paula Carvalho, editora da Quatro Cinco Um e que apresenta o 451 MHz, recomenda o livro A última filha (Bazar do Tempo), de Fatima Daas, em que a autora franco-argelina trata da sua descoberta como mulher lésbica e muçulmana. 

Ao longo de 2021, o quadro contou com o apoio do C6 Bank e reuniu catorze livros e dicas literárias LGBTI+ de colaboradores da Quatro Cinco Um. Veja a lista completa.

O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação 451.
Apresentação: Paulo Werneck
Coordenação Geral: Évelin Argenta, Paula Scarpin e Vitor Hugo Brandalise
Produção: Gabriela Varella e Évelin Argenta
Edição: Cláudia Holanda 
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: João Jabace
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Gravado com apoio técnico do Estúdio Tyranosom (SP)
Para falar com a equipe: [email protected]