A Feira do Livro, Literatura,

Uma história de mulheres

Em romance de estreia, Yara Nakahanda Monteiro recria o período de guerra civil em Angola e suas consequências sob a perspectiva feminina

25maio2022 | Edição #58

A primeira memória de Vitória é uma árvore. A segunda, uma onda. São também as vagas escoando pela areia da praia das Maçãs, em Sintra, Portugal, a reminiscência mais antiga de Yara, que, assim como Vitória, nasceu no fim da década de 70 em Huambo, cidade no planalto central de Angola. Aos dois anos, ambas migraram com a família para a Europa, fugindo da guerra civil. Adultas, aliança no dedo, prestes a casar, trocaram o altar pelo regresso ao país de origem.


Essa dama bate bué!, de Yara Nakahanda Monteiro

A primeira, instigada pela necessidade de encontrar a mãe, Rosa Chitula, uma combatente que a abandonou bebê e de quem guarda apenas “o aroma intenso a leite azedo” e “o gosto de suor salgado”. A segunda aterrissou em Luanda no pós-guerra, numa tentativa de reconectar-se com seus ancestrais e atraída por um sonho que se desfez ao descobrir que a terra natal de sua infância era uma utopia. A história de Vitória Queiroz da Fonseca é fictícia; suas lembranças, nem tanto. Foi a partir de sua própria trajetória que a escritora Yara Nakahanda Monteiro criou a protagonista de seu primeiro livro, Essa dama bate bué!

Yara faz um texto feminista ao desvelar machismo, racismo, misoginia e violência de gênero

Lançada em 2018, a obra, publicada no Brasil pela editora Todavia, entrelaça diversas camadas que vão se revelando, algumas, óbvias; outras, sutis. Ainda que seja ficção, Essa dama bate bué! é um livro de recordações da autora, que remete ao estilo da francesa Annie Ernaux. Vive-se a agitação da protagonista Vitória graças à minuciosa descrição de suas descobertas e percepções. Não à toa, assim como Annie (que Yara nunca leu), a escritora define-se como uma observadora, que coleciona fotografias e conversas para conceber suas personagens. A publicação é também a jornada de uma heroína que atravessa as estruturas desse modelo narrativo para, ao final, deparar com o fato de que a verdade que ela busca não existe. As verdades, assim como as histórias, não são únicas, mas múltiplas. Ao escolher contar os bastidores da Guerra Civil Angolana (1975-2002) e suas consequências sob a perspectiva das mulheres, Yara faz um texto feminista, seja na escolha de suas intérpretes (negras, de diferentes classes sociais, combatentes) ou na minúcia com que desvela machismo, racismo, misoginia e violência de gênero.

Luanda

No romance, Vitória narra suas origens desde a traumática partida de Angola à chegada a Portugal, descrita a partir dos relatos de seus avós maternos e suas tias, com quem vive desde que a mãe a deixou. É também sob a perspectiva de Vitória que percorremos Luanda, atravessados pelo espanto de quem tenta, mas não se reconhece no lugar de onde veio. Metrópole de extremos, a capital angolana contrasta carros de luxo conduzidos por muito ricos, sacudindo em ruas esburacadas, lado a lado com candongueiros (nome popular de veículos de transporte de passageiros) abarrotados, em que se espremem os muito pobres. É um local onde a cor da pele designa a classe social. Uma cidade que tanto se parece com as brasileiras e, ainda assim, desperta fascínio.

Luanda é a personagem vibrante, em oposição à pacata Vitória, espectadora atenta mas que se deixa levar, como na dança que encena numa boate luandense. Luanda é a dama que bate bué. “Eu não poderia falar de Luanda no início do século [21] sem tratar dos contrastes sociais e arquitetônicos, da herança colonial que criou uma hierarquia entre tons de pele, privilegiando os de cor mais clara. A pobreza na rua é algo que invade teu olhar. Não há forma de escapar. São todas consequências da guerra”, explica Yara à Quatro Cinco Um. “Por outro lado, também quis me afastar da África exótica e mostrar sua versão cosmopolita, o afropolitanismo. Em Luanda, fui às melhores festas, frequentadas pelas meninas mais bem-vestidas que conheci na vida. Não vivemos todos em cubatas, na savana. Há uma estética negra, africana, que pode ter influências brasileiras ou americanas, mas tem originalidade.”

É pelos olhos de Yara que desvendamos Luanda, numa mistura de sensações e emoções que ela experimentou quando se mudou para a capital angolana, aos 25 anos, após o fim do conflito. “A súmula de minha ida para Angola é uma tentativa de reconexão. De reencontro com minha história passada, com a memória de minha família”, diz. “Quando cheguei, foi um choque social, moral e até físico, de coisas simples, como a temperatura do país. Senti que ele me rejeitou e eu o rejeitei. Nem toda a gente me via como angolana, pois eu tinha sotaque 100% português e hábitos aportuguesados. Fui estrangeira na minha própria terra. Tivemos que aprender a nos aceitar e amar.”

Ao contrário de sua protagonista, no entanto, Yara não ficou longe por tanto tempo. Na infância e na adolescência, passava férias em Angola com o pai, que não migrou para Portugal. Nesses períodos, convivia com jovens angolanos das classes média e alta que estudavam na Europa e estavam por ali, como ela, em veraneio. Sentia-se deslocada. “Minha realidade portuguesa era muito diferente daquela, tão luxuosa. Não consegui me integrar.”

Ser filha da diáspora proporciona uma existência distinta da dos africanos de camadas sociais privilegiadas que sabem estar de passagem por terra estrangeira — ainda que estes também vivam a experiência de “ser negros” ao deixar a África. Antes da guerra, o avô de Yara era fazendeiro, sua avó, professora, e sua mãe, estudante de educação física. Na fuga para a Europa, perderam tudo. Sua avó teve de se virar lavando escadas. Sua mãe, trabalhando como babá.

O ambiente, contudo, era protegido, de amor, felicidade e boas lembranças. No apartamento do segundo andar onde a família morava, na periferia de Lisboa, reproduzia-se “uma mini-Angola”. Nos almoços e jantares de fim de semana, as histórias contadas eram sempre as mesmas, todas sobre os bons tempos no país natal. Da porta para fora, a regra era se assimilar. “Minha avó, por exemplo, se sentiu obrigada a abandonar as cores de suas vestes, os amarelos, os vermelhos, as flores… Passou a usar tons neutros, marrons, cinzentos. Tudo para ser aceita socialmente”, diz Yara. “O processo de assimilação foi entendido desde o início como algo necessário e crítico. O importante era baixar a cabeça e garantir nossa sobrevivência.”

No livro, essa passagem é representada por uma cena bela e triste: a da cerimônia do esquecimento, realizada pela família de Vitória antes de deixar Angola. Sob a orientação de um kimbanda (curandeiro), o avô, a avó e as tias dão nove voltas em torno de uma árvore repetindo: “O que fica, fica aqui”. Por ser bebê, Vitória não toma parte. Para ela, é indicado um mergulho nas águas da terra de chegada, para “acordar um novo espírito”. É dessa imersão a lembrança que a protagonista carrega do mar. A mesma que Yara traz da chegada a Portugal.

O trecho foi inspirado em uma descoberta da escritora sobre um procedimento realizado no Senegal, com as pessoas capturadas e escravizadas. Antes de entrarem nos navios rumo ao martírio, eram instadas a fazer a volta do esquecimento. Mas, assim como a avó Elisa diz a frase sem convicção, pois se recusa a esquecer a filha mais velha que fica, Rosa Chitula, e seu país, os herdeiros da diáspora, mesmo “assimilados”, vivem um presente carregado de passado.

‘Senti que Angola me rejeitou e eu a rejeitei. Tivemos que aprender a nos aceitar e amar’

No caso de Yara, essa percepção se materializou, primeiro, ao deixar a proteção do ambiente familiar para ingressar no ensino básico; e adulta, ao morar no Brasil. “Na escola, sofri bullying e discriminação, pois não era vista como idêntica pelo tom da minha pele, pelo sotaque. Diziam coisas como ‘preta, vai para tua casa, para tua terra’”, lembra. Esses e outros episódios fizeram dela uma garota exemplar. “Achei que com notas altas seria uma criança amada. Mas sempre me dei mais com adultos do que com os de minha idade.” Apegada à avó, religiosa e muito católica, a escritora foi educada para ser uma menina bem-comportada. E assim o fez, formando-se em recursos humanos, pois “seguir uma carreira artística ou de escritora” estava fora de questão. “Sempre escrevi contos, poesia, mas, como dizia Virginia Woolf, a mulher precisa de uma renda e de um quarto só para ela”, reflete Yara. Vitória também é uma garota exemplar. Tanto que a viagem para Angola é organizada às escondidas, com a cumplicidade das tias e da avó. Torna-se uma noiva em fuga do casamento e da possibilidade de decepcionar o avô.

Ligação com o Brasil

Mas, enquanto Vitória se reapropriou de sua identidade como mulher negra em Angola, Yara o fez no Rio de Janeiro, cidade onde viveu com o marido por dois anos. “O Brasil para mim foi bastante transformador. Foi quando comecei a ler sobre negritude. Em livros como os do antropólogo Kabengele Munanga, conheci o movimento negro e iniciei minha transição capilar, que é a demonstração física de uma transição da alma”, diz Yara. “Naquela altura, econômica e socialmente, eu tinha tudo o que poderia ser considerado uma vida feliz e estável, mas estava descolada da minha essência. Então, decidi arriscar, sair da zona de conforto e me dedicar à literatura.”

‘O Brasil para mim foi transformador. Foi quando comecei a ler sobre negritude’, conta a autora

O país foi, também, o lugar onde a escritora descobriu as formas mais violentas de racismo, que começaram a se materializar ao chegar ao condomínio da Barra da Tijuca onde morava e deparar com a segregação racial e social concretizada na existência de um “elevador de serviço”. “Fiquei chocada porque, do Brasil, eu conhecia o mito da identidade crioula, do lusotropicalismo. Mas essa imagem vendida na Europa, e também em Angola, é falsa. Há uma ausência completa de pessoas racializadas em espaços privilegiados. Isso é uma nódoa impregnada no dna dos brasileiros, que toda a gente acha normal.”

Ao reapropriar-se de sua individualidade como pessoa, como negra e como mulher, Yara encontrou sua voz. Caminho semelhante segue Vitória, que, ao deixar Luanda rumo ao interior, em busca de pistas da mãe, vive experiências que vão transformá-la. Nesse ponto, o livro deixa de ser narrado em primeira pessoa e passa para a terceira. “As mulheres negras não têm voz. Alguém lhes conta a história, e foi o que eu fiz”, explica Yara. “Isso acontece com Vitória assim que ela faz a escolha consciente por ocupar um lugar socialmente subalterno. Ela podia ter continuado a passar-se por parda —  eu não gosto dessa palavra — ou mestiça. Só agora a mulher negra está a ser empoderada para expor suas histórias. Eu quis reforçar essa questão.”

Por isso, Yara escolheu fazer de Essa dama bate bué! um “livro de mulheres”. É sob a ótica e a experiência delas que Yara reconstrói o período da guerra civil em Angola e suas consequências. Para montar esse quebra-cabeça, além de leituras, viagens e  sua própria experiência, a autora alimentou-se de informações nas longas conversas com sua avó materna, “a guardiã da memória de sua ancestralidade africana”. “Este livro é uma redefinição da história nacional angolana numa perspectiva feminina”, diz Yara. “E ele é também uma redefinição do meu conceito familiar de mulher. Uma rebeldia contra a minha avó, que tem 84 anos e ainda diz ‘o homem é a cabeça do casal’. Eu quis desmontar o sistema ideológico no qual cresci e com o qual concordava, até sentir um desconforto e questionar o conceito de normalização da sexualidade. O que deve ser aceito ou não.” Sob risco de imperdoável spoiler, não há chance de descrever aqui a surpreendente cena de Essa dama bate bué! que adiciona mais uma camada de reflexão às outras presentes no livro.

Passemos, então, para o fato de esta ser uma obra feminista. De um feminismo decolonial, marcado por observações sobre questões de gênero, raça e classe. “Simone de Beauvoir diz que ‘não nascemos mulheres, nos tornamos mulheres’. Eu também me tornei uma. Uma mulher negra [no prisma] da terminologia de Françoise Vergès”, explica Yara, em referência à historiadora e cientista política francesa, uma das principais teóricas do feminismo decolonial.

Na busca por desconstruir a narrativa masculina, heterossexual, branca e colonial, Yara deu aos homens papel secundário, mesmo àqueles cuja presença causa impressão. Já entre as mulheres, há a avó e as tias; Romena e suas filhas, as gêmeas Nádia e Katila, representantes da classe média, que esclarecem as regras da sociedade angolana; ou Juliana, a ex-combatente que revela à heroína o destino de sua mãe. Rosa Chitula, em sua versão rebelde e impetuosa, é o fantasma que acompanha a filha, cuja obsessão é construir uma memória materna a partir do que ouve sobre ela.

Essa dama bate bué! é, por fim, um livro sobre a busca de raízes. Vitória sente isso fisicamente, na dormência que lhe ataca os pés, uma comichão que ela não sabe explicar de onde vem e que só arrefece quando ela chega a Huambo — cidade onde Yara nasceu, em 1979, e “plantou os pés”, em uma visita a Angola. Para Yara, foi preciso primeiro “se desenraizar”, morando em Angola, no Brasil, no Reino Unido, na Dinamarca e na Grécia. Hoje, ela acredita ter criado sua própria base, cravada no Alentejo, onde o marido e ela vivem um processo de descoberta e de novos ciclos. Se não precisa mais “buscar suas raízes”, Yara segue transformando suas lembranças.

Seu segundo trabalho, Memórias, aparições, arritmias, de 2021 (ainda sem previsão de lançamento no Brasil), escolhido melhor publicação de poesia no 10º Prêmio Literário Glória de Sant’Anna, reúne textos “decoloniais e ecofeministas”. “Passei da ficção às recordações. É um livro mais honesto”, define. O novo romance, em fase de edição, trata de amizades, de como elas mudam e evoluem ao longo da vida.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.