A Terceira Margem do Reno,

Ep 6. Metáfora da memória

Os silêncios da vida familiar de Nora Krug, Emmanuel Carrère, Annie Ernaux e Katja Petrowskaja. O luto de Noemi Jaffe. O genocídio de Ruanda por Boubacar Boris Diop. Yoko Tawada e a saga familiar de três ursos-polares. O retorno do Manto Tupinambá

18jan2023

Está no ar o sexto episódio de A Terceira Margem do Reno, o podcast de literatura em língua francesa e alemã, feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.

Ouça o episódio aqui:

Composto por nove episódios publicados quinzenalmente, o podcast narrado por Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, e Paula Carvalho, editora de podcasts da revista dos livros, trata da literatura em língua francesa e alemã e suas pontes com o Brasil. O episódio conta com participações de Mariana Delfini, Gisele Eberspächer, Vinicius Farjalla e Glicéria Tupinambá.

Partimos de um dos rios mais importantes da Europa: o Reno, que faz fronteira com a Alemanha e a França, para tratar de temas importantes para o mundo e a literatura. O rio é um ser sem fronteiras, e por isso não vamos nos limitar a elas. Aqui, autores clássicos convivem com os mais contemporâneos, e a única pátria é a língua, a alemã e a francesa, não importando as fronteiras dos Estados nacionais. 

Inspirado pelo título do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, de 1962 (hoje no catálogo da editora Global), o podcast é guiado pela pergunta: onde será que fica A Terceira Margem do Reno? Para além das fronteiras nacionais, temporais e geográficas? Poderia estar na literatura? 

De onde você veio?

Como saber quem você é, se você não entende de onde veio? É essa a pergunta que guia o romance gráfico Heimat: ponderações de uma alemã sobre sua terra e história, publicado pela Quadrinhos na Cia, com tradução de André Czarnobai.

Best-seller na Alemanha e vencedor de vários prêmios, Heimat, lançado originalmente em 2018, é um relato autobiográfico em que Nora Krug mistura texto, fotografias, documentos históricos, quadrinhos e colagens para descobrir mais sobre o passado da sua família. Mais especificamente, o envolvimento de seus familiares no Holocausto, que exterminou 6 milhões de judeus, entre outros grupos, durante a Segunda Guerra Mundial. 

Ao juntar o meio visual com o textual, ela consegue transmitir como funciona a memória, que não é algo estático, pois muda o tempo inteiro e tem uma natureza fragmentária.

Krug nasceu em 1977, na cidade de Karlsruhe, no sul da Alemanha, em uma casa cujo quintal dava para uma base aérea do exército estadunidense. Assim como muitos alemães das novas gerações, ela sentia uma culpa muito grande pelos milhões de mortes perpetradas pelos nazistas. O silêncio sobre esse período nas memórias da sua família era gritante. Mas ela só passou a questionar mais sobre o que tinha ocorrido depois de viver quase duas décadas fora da Alemanha: primeiro no Reino Unido e depois nos Estados Unidos, onde se casou com um estadunidense judeu, cujos avós fugiram da perseguição na Alemanha.

Krug diz em entrevistas que nunca teria pensado em escrever Heimat se não tivesse deixado a Alemanha. Foi no exterior que se sentiu mais alemã do que nunca, ainda mais quando tinha que lidar com estereótipos negativos sobre os alemães. É irônico, então, notar que ela escreveu o livro em inglês, e não na língua materna. Talvez fosse apenas em uma língua estrangeira que ela conseguisse tratar das feridas da sua família, da sua cidade, do seu país.

Segredos em família

A busca pelo avô foi o que moveu o escritor francês Emmanuel Carrère a escrever Um romance russo, autoficção publicada originalmente em 2007, que saiu por aqui pela Alfaguara, com tradução de André Telles.

Narrado em primeira pessoa, o livro aparentemente traz duas histórias principais que acontecem em paralelo. A primeira são as viagens do narrador para uma cidadezinha na Rússia chamada Kotelnitch, que fica a 800 quilômetros de Moscou, para fazer um documentário chamado Retour à Kotelnitch, sobre a cidade. 

 

O livro também acaba funcionando como uma espécie de making-of desse filme. A outra história é do seu namoro turbulento com Sophie. Mas a verdadeira história da obra é a revelação sobre o passado e a morte do seu avô, um segredo bem guardado pela sua mãe.

A ida de Carrère a Kotelnitch é, portanto, uma forma de elaborar o luto pelo fantasma do avô nessa cidade, porque, na sua visão, é como se os desaparecidos fossem para lá, por causa de uma reportagem que ele fez sobre um soldado húngaro que ficou décadas perdido na cidade depois do fim da Segunda Guerra e foi reencontrado. O fantasma do seu avô é, portanto, uma herança da qual não pode escapar.

Fragmentos

Em Os anos, publicado pela Fósforo em tradução de Marília Garcia, a francesa Annie Ernaux traz um relato autobiográfico, mas sem usar o pronome individual “eu” — que, aliás, é uma palavra que não aparece em nenhum momento no livro. O “eu” é substituído por um “nós” desde o início, para marcar que se trata de uma história coletiva. Ainda que bastante pessoal, é a história da sua família, a história da França do pós-guerra.

A própria estrutura do romance, desde o começo, parece fragmentada, como a memória. Várias das partes do livro começam com a descrição de uma fotografia que, deduzimos, pertencem ao álbum de família da autora.

Essa busca por compreender as próprias origens familiares surge também no livro Talvez Esther, lançado pela Companhia das Letras, com tradução de Sergio Tellaroli, de Katja Petrowskaja, que nasceu em Kiev, na então União Soviética, hoje capital da Ucrânia. Na obra, ela tenta descobrir o que aconteceu com seus familiares durante a Segunda Guerra. Até mesmo o nome de alguns parentes permanece desconhecido, como o de sua bisavó, que talvez fosse Esther. 

Petrowskaja parte da Alemanha, onde reside desde 1999, em busca de seus antepassados. Passa por campos de concentração, ruas pavimentadas sobre túmulos judeus, edifícios reconstruídos, cemitérios, arquivos públicos e memoriais judaicos. Ela escreve uma versão da história vista sob as angústias do presente. Afinal, toda reconstrução do passado é, se não ficcional, subjetiva.

Essa reconstrução passa também pela língua. Petrowskaja escolhe, diferentemente de Krug, escrever essa busca em alemão e não em russo, que é o seu idioma materno. O hebraico também surge aqui e ali, como uma língua que precisa ser recuperada para criar um novo elo com a herança judaica da família. 

Na edição 24 da Quatro Cinco Um, Willian Vieira escreveu uma resenha sobre esse livro. Ele também publicou uma entrevista com a autora: “Talvez Esther é sobre uma pessoa ‘moderna’ que está na estrada, a heroína está cruzando a assim chamada Europa e, o tempo todo, tropeça no passado, na ‘História’, nas catástrofes do século anterior”.

Um caminho parecido, mas diferente, percorre Noemi Jaffe na obra O que os cegos estão sonhando?, lançado pela Editora 34 em 2012. Dividido em três partes, o livro traz o diário da mãe da autora, Lili Jaffe, de quando foi presa pelos nazistas e levada ao campo de concentração de Auschwitz. Em abril de 1945, ela foi salva pela Cruz Vermelha e levada à Suécia, onde escreveu esse diário em sérvio, contando suas experiências no campo, assim como a experiência da libertação. Nas outras duas partes, Jaffe, sua filha e Leda Cartum (convidada do episódio anterior), escrevem como a experiência de Lili influenciou a vida de cada uma.

Ela morreu em fevereiro de 2020 e, para tratar do luto, Noemi Jaffe escreveu Lili, publicado pela Companhia das Letras em 2021). Nessa novela, a autora tenta lidar com o luto da morte da mãe, aos 93 anos. Sobrevivente do Holocausto, a mãe de três filhas e viúva morreu por uma banal "infecção nos pés”, “pés gangrenados”, o que leva Jaffe à sensação de descrença diante da perda dela.

Ao lado dos mortos

A obra Murambi: o livro das ossadas, lançada pela Carambaia com tradução de Monica Stahel, trata do chamado último genocídio do século 20: o de Ruanda, em que hutus exterminaram tutsis e hutus considerados “amigos” de tutsis. Muitos dos carrascos hutus eram amigos, vizinhos, pais e cônjuges de tutsis e se voltaram contra eles de um dia para o outro. O senegalês Boubacar Boris Diop, um dos escritores mais respeitados do continente africano, valeu-se da ficção para contar a história de como fica um país que acabou de passar por um dos maiores traumas possíveis. 

O protagonista é o professor de história Cornelius Uvimana, que retorna a sua Ruanda natal em 1998, depois de 25 anos vivendo no exílio, quatro após o genocídio perpetrado em 1994. Ele volta com a ideia de montar uma peça de teatro sobre os massacres ocorridos na cidade de Murambi, onde morreram entre 40 mil e 50 mil tutsis que estavam refugiados na Escola Técnica. Seus corpos foram enterrados em valas comuns sobre as quais foi construída uma quadra para que tropas francesas pudessem jogar vôlei. 

Ele acredita que toda a sua família foi morta no massacre de Murambi, com exceção de seu tio, Siméon Habineza. Filho de pai hutu e mãe tutsi, Cornelius descobre segredos devastadores sobre seu pai durante o extermínio na Escola Técnica. Gérard, um dos sobreviventes, o guia pelo local, narrando as lembranças do massacre.

A trajetória do protagonista segue, de alguma forma, o caminho percorrido pelo autor, que viajou para Ruanda em 1998, junto com outros escritores africanos de língua francesa, a convite do Fest’Africa — festival de literatura e artes da África e da diáspora negra criado em 1992, na França — para realizar a residência “Ruanda: escrever por dever de memória”. Desconhecendo as complexidades que levaram ao genocídio que matou 800 mil pessoas entre abril e julho de 1994, Diop foi desconstruindo a ideia de que os massacres ocorreram a partir de “conflitos étnicos” entre hutus e tutsis, como divulgado pela imprensa internacional, ao conversar diretamente com sobreviventes dos massacres, assim como com seus carrascos. Por meio desses relatos individuais, o autor criou o romance Murambi, publicado originalmente em francês em 2000.

A editora de podcasts da revista, Paula Carvalho, escreveu sobre o livro na edição 47 da revista dos livros.

Hibernação

Memórias de um urso-polar, publicado pela Todavia, com tradução de Lúcia Collischonn de Abreu e Gerson Roberto Neumann, não é um livro de memórias convencional. É uma ficção escrita pela japonesa Yoko Tawada, que imagina uma saga familiar com ares de fábula a partir da história de três gerações de ursos-polares, que termina no ursinho Knut, que nasceu em 2006 no zoológico de Berlim e se tornou uma celebridade até morrer afogado, em 2011. 

O romance é dividido em três partes. A primeira é narrada por uma ursa, nascida na União Soviética, que escreve uma autobiografia de sucesso em alemão e se exila no Canadá. A segunda parte tem a voz da domadora de Toska, filha da primeira narradora, Ambas trabalham num circo na Alemanha Oriental e praticam um número famoso no país, chamado “o beijo da morte”, em que o humano e o urso encostam a boca um no outro. É nesse momento que elas trocam de alma, e a ursa passa a narrar a história de sua domadora e amiga.


O urso-polar Knut, no zoo de Berlim, em 2007 [Jens Koßmagk/Creative Commons]

A terceira é protagonizada por Knut, que desde o princípio virou uma celebridade mundial ao ter sido rejeitado pela mãe. O ursinho vai aprendendo a lidar com o mundo à sua volta, com os flashes das câmeras, a atenção dos visitantes e da imprensa e a sentir saudades do cuidador, que vira a sua mãe.

A autora foi entrevistada por Ricardo Domeneck na edição 25 da Quatro Cinco Um: “Eu gosto do escuro, do frio. São propícios para a minha escrita. É claro que outros escritores preferem o sol e o calor. Isso tudo torna a literatura mais interessante”.

Retomada

Ainda que pareça perdida e seja fugidia, a memória também pode ser recuperada. Há formas de tentar retomá-la para si no presente, não só contando histórias, mas também refazendo objetos sagrados. É o caso dos mantos tupinambás, formados por coloridas plumagens de pássaros, levados para as cortes europeias nos séculos 16 e 17, durante a colonização do Brasil, mostrando a intensa interação cultural e comercial entre indígenas e europeus.


Procissão da “Rainha da América”, detalhe, 1599 [Graphische Sammlungen, Klassik Stiftung Weimar]

Esses mantos foram empregados nas cortes europeias em cerimoniais e performances reais, em que novos sentidos foram sendo construídos para os objetos. Um exemplo desse fenômeno é a procissão da “Rainha da América”, de 1599, que aconteceu no ducado de Württemberg, no sudoeste da atual Alemanha. Na cerimônia, os membros da corte andaram pelas ruas de Stuttgart representando indígenas americanos, usando os coloridos mantos tupinambás para um público de 6 mil pessoas. 


Manto Tupinambá, séculos 16-7 [Nationalmuseet Etnografisk Samling, Copenhagen]

Muitos desses mantos foram perdidos com o passar do tempo e, atualmente, restam cerca de dez em museus na Bélgica, Itália, Suíça, Dinamarca e França.

Glicéria Tupinambá, uma das lideranças dos tupinambá da Serra do Padeiro, uma das 22 aldeias da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, fez o manto tupinambá renascer em plena pandemia da Covid-19. É a retomada do manto tupinambá, que volta junto com a retomada do território desse povo, que recupera suas técnicas, sua língua e sua cultura por meio da memória que ainda reverbera no presente.

A retomada de terras dos tupinambá da Serra do Padeiro foi tema da HQ Os donos da terra, de Daniela Fernandes Alarcon, Vitor Flynn Paciornik e da própria Glicéria Tupinambá (Glicéria Jesus da Silva), que foi resenhada por Trudruá Dorrico na edição 42 da Quatro Cinco Um

Também leia sobre como foi o lançamento de um livro na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, em crônica assinada pela nossa editora Paula Carvalho, que saiu na edição 31

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A Terceira Margem do Reno é um podcast feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.
Associação Quatro Cinco Um
Direção geral: Paulo Werneck
Direção executiva: Mariana Shiraiwa
Coordenação geral e tratamento do roteiro: Paula Carvalho
Pesquisa e roteiro: Bianca Tavolari, Marcela Vieira, Odorico Leal, Paula Carvalho, Paulo Werneck e Willian Vieira.
Produção: Ashiley Calvo
Edição, sonorização, trilha sonora, finalização e mixagem: André Whoong
Direção de locução: Tiê
Arte: J. Miguel
Design gráfico: Giovanna Farah e Isadora Bertholdo
Distribuição: Rádio Novelo / Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Comunicação: Gabriela Valdanha
Gravado com o apoio técnico do estúdio Rosa Flamingo.
Na ordem, foram lidos trechos das seguintes obras: “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias, que saiu pela editora Global; Heimat: ponderações de uma alemã sobre sua terra e história, de Nora Krug, da Quadrinhos na Cia e tradução de André Czarnobai; Um romance russo, de Emmanuel Carrère, publicado pela Alfaguara, selo da Companhia das Letras, e traduzido por André Telles; Os anos, de Annie Ernaux, publicado pela editora Fósforo com tradução de Marília Garcia; Talvez Esther, de Katja Petrowskaja, da Companhia das Letras, com tradução de Sergio Tellaroli; Lili: novela de um luto, de Noemi Jaffe, publicado pela Companhia das Letras; Murambi: o livro das ossadas, de Boubacar Boris Diop, lançado pela editora Carambaia com tradução de Monica Stahel; Memórias de um urso-polar, de Yoko Tawada, traduzido por Lúcia Collischonn de Abreu e Gerson Roberto Neumann.