Literatura,

Quando se tropeça na história

Em viagem de Berlim para Kiev, escritora de origem soviética fala sobre se deparar com as catástrofes do século 20 em 'Talvez Esther'

13jul2019

Nascida em Kiev, na atual Ucrânia, Katja Petrowskaja lança na programação paralela da Flip o seu primeiro romance Talvez Esther, em que conta a sua própria história em busca da história da sua família, que foi perseguida tanto durante o nazismo ao longo da Segunda Guerra Mundial. Para tal, ela viaja de Berlim, onde reside atualmente, para Kiev, e se confronta com os horrores do passado que ainda se mantêm vivos no presente.

Por isso, ela afirma que se livro fala sobre a violência. “Como manter a memória ativa sem destruir sua alma e a dos outros? Como contar esses fragmentos que falam de forma não violenta, não voyeurística? Como falar de brutalidade de forma terna?”, questiona ela em entrevista a Quatro Cinco Um.

Ela também falou sobre facilidade de acesso a documentos históricos pela internet, identidade judaica, como a “honra” é um conceito datado e como superar o desafio do segundo romance.

Talvez Esther é um livro difícil de classificar, o que geralmente é um bom sinal. Parece ser autobiográfico, mas de uma forma ensaística – poderíamos pensar numa autoficção, ainda que a busca por certa ideia de verdade seja a base dele. Como você definiria seu livro para o público brasileiro? A imprevisibilidade é um dos principais prazeres e uma das principais razões de se ler, mas eu definiria meu livro como “romance”, gênero que já é misto e experimental há tempos. Posso dizer que escrevi um “humilde romance”. Em alemão, eu dei o subtítulo “Geschichten”, o que significa “estórias” e “histórias”, ou seja, estórias que refletem uma “grande História”. Talvez Esther é sobre uma pessoa “moderna” que está na estrada, a heroína está cruzando a assim chamada Europa e, o tempo todo, tropeça no passado, na “História”, nas catástrofes do século anterior. É algo entre um travelogue, uma pesquisa histórica, delírios e lendas familiares: cada pequena história demanda seu próprio jeito de ser contada. Eu lembro, restauro ou experimento, digamos, apenas os fragmentos de um épico perdido, como se o mundo estivesse despedaçado e eu só encontrasse os pedaços. Essas “histórias” são apenas achados, estilhaçados através de um espaço desconhecido.

Eu começo uma viagem pela Europa na estação de trem de Berlim, viajando de volta para casa, no leste, rumo a Kiev, através de lendas familiares, pesquisa histórica, documentos e línguas, através da violência mesma das palavras. E novamente: cada fragmento de memória, cada documento ou sensação demanda seu próprio método de narração – seja um encontro na estação, o ficus que salvou a vida de meu pai em 1941, a beleza da paisagem austríaca, a história de meu tio-avô judeu que atirou num diplomata alemão em 1932, em Moscou, ou a receita de uma bebida estranha, que herdei de minha tia. E, claro, houve o encontro em Babi Yar, a ravina onde todos os judeus de Kiev foram assassinados durante a Segunda Guerra Mundial. Essa ravina não é apenas uma catástrofe num lugar qualquer, é uma topografia da minha infância, de uma cidade de mais de 3 milhões de habitantes. Como falar disso? Talvez Esther é, em parte, sobre perdas sem precedentes, sobre como falar disso – eu até perdi minha língua materna e escrevi o livro em alemão! Afinal, se você estiver procurando realmente pela verdade, por uma voz clara, a incerteza se torna seu melhor amigo.

Na sua opinião, como história pessoal e tecnologia se tornam mais conectadas e interdependentes nos dias de hoje? Ferramentas modernas (Google, iPhone, mapas virtuais etc.) permitem o tipo de pesquisa sobre o passado que você desenvolve no livro. Ele seria possível, digamos, duas décadas atrás, sem elas? Não sei ao certo o que seria possível vinte anos atrás. Talvez eu devesse ter escrito um livro sobre a primeira geração de amantes que experimentaram a correspondência por e-mail. Isso mudou completamente a percepção da espera. Mas eu perdi a oportunidade! Eu geralmente sou muito cética a meu respeito. Mas, para ser honesta, as tecnologias modernas trazem oportunidades incríveis de pesquisa histórica. Muitas bibliotecas e mesmo arquivos têm acesso virtual. A facilidade é incrível e, às vezes, assustadora. Essa acessibilidade causa um impacto nas pessoas. Eu estou lá, de pijama na cama, lendo cartas de prisioneiros de guerra soviéticos de 1941, cartas de homens que sobreviveram, e estou o tempo todo questionando a situação desse nosso encontro. Eu posso entrar no terreno de campos de concentração (e posso fazer uma ligação telefônica para lá!) através do meu computador.

Em outros tempos, essa pesquisa demandaria certa atitude, você tinha de se mover fisicamente no espaço, você tinha de ir até a biblioteca, viajar, para ter a experiência. Mas é uma verdadeira experiência se eu posso fazer tudo isso do meu computador, sem precisar sequer levantar? Eu acho que busca física, dificuldade, hierarquia do esforço são elementos que estamos rapidamente perdendo e, de forma estranha, estamos simultaneamente perdendo uma certa honra. Mas “honra” é, de qualquer forma, uma preocupação datada. Também o termo “impressão”, de imprimir, Eindruck, vem de pressão, de marca (print) – o que acontece agora, se lidamos apenas com uma suave tela de exibição? Uma hora no trem pode nos fazer sentir mal, como se tivéssemos sido separados do seio do universo que nos alimenta. No prólogo do meu livro, “Obrigado, Google”, eu me pergunto que deus é esse. Trata-se de nossa civilização como a concebemos: começamos nossa viagem numa estação de trem, lugar de mobilidade e unidade e, ao mesmo tempo, ela marca o momento mais sombrio da Segunda Guerra Mundial. Nossas “conquistas” são ambivalentes.

Você usa, de forma sarcástica, o termo “judaísmo de internet” para definir seu interesse na religião. Poderia falar mais a respeito? Quanto ao judaísmo, eu estava pesquisando, experimentando a identidade cultural judaica pela internet. Era engraçado. Eu cresci numa típica família soviética de origem judaica. Três gerações sem língua ou religião, mas minha família ainda está na área da história e da interpretação de texto. É uma família judia? Nos tempos soviéticos, a identidade judaica era um tipo de identificação “negativa”: se você era chamado de “judeu”, havia uma identificação com as vítimas do passado. Eu buscava algo distinto para mim. Mas é preciso dizer: identidade não se trata apenas de origem ou língua, mas das coisas que amamos e queremos.

Vivemos numa era de fake news e reinvenção do passado (por razões políticas, isso sempre foi feito, mas agora parece algo ligado também à simples ignorância. Quão importante é, para essa nova geração, o tipo de esforço histórico e mesmo genealógico que você faz num livro como Talvez Esther? Sempre vivemos num tempo de reinvenção do passado. Eu cresci na União Soviética e tenho me posicionado desde sempre contra qualquer tipo de ideologia. Histórias de família são mais ricas que qualquer ideologia ou política, e se opõem, de certa forma, às suas mentiras e déficits típicos. Em cada família há histórias que contradizem a ideologia do Estado, o conceito de nação ou de uma identidade “apropriada”. A história soviética oficial não nos falava nada sobre o Holocausto (nem na cidade onde toda a população judia pereceu!), sobre os 6 milhões [de judeus assassinados pelo nazismo], sobre o gulag [os campos de prisioneiros soviéticos], sobre a grande fome ucraniana dos anos 1930, sobre os crimes soviéticos na Hungria, em Praga, no Afeganistão. Mas nós tínhamos tudo isso nas histórias de família ou na conversa dos vizinhos.

Então, a contação de histórias (storytelling) era uma das melhores formas de manter a alma, a dignidade, de si e da verdade. Para meus pais, era uma espécie de missão manter a história não contada viva, e essa tradição oral é algo muito antigo – não somos os primeiros e não seremos os últimos por causa da internet. Mas meu livro é, em parte, sobre violência, e se você escreve sobre a violência, corre o risco de multiplicá-la. Eu confronto os leitores com sepulturas coletivas e uma série de perdas a serem descobertas. Como manter a memória ativa sem destruir sua alma e a dos outros? Como contar esses fragmentos que falam de forma não violenta, não voyeurística? Como falar de brutalidade de forma terna? Mas não posso forçar ninguém a ler meu livro apenas porque sou contra a violência! Um dos maiores escritores russos, que passou 27 anos num gulag e só conseguia escrever sobre essa experiência, disse certa vez que ninguém tinha de saber a respeito. Ele se envergonhava de confrontar os outros com sua história, mas precisava fazê-lo, por respeito ao mundo de vidas que desapareceriam sem ela.

Como será seu futuro literário: você seguirá no âmbito autobiográfico? Pretende seguir se alimentando de sua história pessoal? Um escritor ou escritora, claro, tem o direito de escrever o que ele ou ela quiser. E há muitas formas de escrever literatura ruim, sendo que a melhor forma de se proteger disso é simplesmente jamais escrever. De qualquer forma, o que se diz é que escrever o segundo livro é, em si, muito difícil. E é mesmo! Eu escrevi meu primeiro romance em alemão e agora comecei a escrever em russo, minha língua materna – eu que nunca fui uma escritora nessa língua, espero que dê certo. O que eu comecei a escrever agora me surpreende muito. Mas ainda é muito cedo para dizer mais. 

Quem escreveu esse texto

Willian Vieira

É jornalista e fez doutorado em letras francesas pela USP.