Ciências Sociais,

A história que não cabe em um livro

Cantos, encantes e muita farinha: é assim que se faz uma noite de autógrafos na Terra Indígena Tupinambá de Olivença

01mar2020 | Edição #31 mar.2020

“Vou pedir ao meu pai Tupã pra nossa aldeia se alevantar”, entoa uma única voz saída de um grupo disposto em círculo em volta de uma fogueira. A resposta em coro vem logo em seguida: “Levanta, nossa aldeia, levanta. Vai levantar, sem demorar…”. Todos, então, se levantam e andam em círculo em torno do fogo. “Com a força de Deus, vamos trabalhar.” O círculo se desfaz em volteios, entrelaçando umas pessoas nas outras. O ritmo é marcado pelo som dos maracás e dos pés descalços batendo com força no chão de terra. O toré, ritual embalado por cantos e danças tradicionais, celebra o lançamento do livro O retorno da terra: as retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia, de Daniela Fernandes Alarcon, publicado pela editora Elefante.

Glicéria Jesus da Silva, uma das principais lideranças dos Tupinambá da Serra do Padeiro e autora do prefácio do livro, convida Alarcon, outros participantes não indígenas e duas estudantes universitárias Tumbalalá (povo indígena que habita atualmente o extremo norte da Bahia, próximo da divisa com Pernambuco) a entrar na roda, que se expande em torno da fogueira. Trajados com cocares de penas e saiotes de entrecasca de embira, vestimentas usadas em atos políticos e rituais sagrados, os Tupinambá e alguns Pataxó Hãhãhãi e Pataxó (que habitam, respectivamente, o sul e o extremo sul da Bahia) dão prosseguimento aos cantos. Quando entoam um cântico que fala da lua cheia e da lua minguante, o clarão amarelo-escuro da lua cheia emerge por entre as nuvens. Um presságio forte para a sexta-feira 13 do mês de dezembro de 2019.

Glicéria agradece os encantados, entidades não humanas ligadas à terra, que guiam e protegem os Tupinambá no processo de recuperação de seu território. Em 2004, teve início a demarcação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, com cerca de 47 mil hectares, em Ilhéus, Una, Buerarema e São José da Vitória, e onde hoje habitam em torno de 5 mil indígenas, distribuídos por mais de vinte aldeias. No mesmo ano, os Tupinambá começaram a realizar ações para recuperar fazendas em posse de não indígenas em seu território. Até hoje, só na aldeia Serra do Padeiro, foram 95 ações de retomada, possibilitando aos Tupinambá voltar à agricultura, à caça, à pesca, à coleta e à criação de animais em pequena escala. O processo de demarcação ainda não foi finalizado.

Essa falta de segurança jurídica é prato cheio para um cenário de violência: no começo de 2019, foi descoberto um plano para assassinar o cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva), liderança dos Tupinambá da Serra do Padeiro, e outros parentes seus, envolvendo fazendeiros, empresários do turismo, agentes do Estado e outras autoridades locais. A ameaça mais recente à integridade territorial desse povo se deu na virada deste ano, quando o Ministério da Justiça e Segurança Pública, chefiado por Sergio Moro, devolveu à Funai dezessete processos de demarcação de terras indígenas que estavam no órgão à espera dos encaminhamentos do ministro para sua conclusão, entre os quais o da TI Tupinambá de Olivença. O presidente Jair Bolsonaro já havia dito que durante seu governo não fará demarcação de nenhuma terra indígena.

A perda territorial vem desde a chegada dos portugueses no século 16, mas se acelerou no fim do século 19, quando não indígenas passaram a se apropriar das terras dos Tupinambá para o cultivo de cacau. Foi — e ainda é — um processo de muita violência, em que houve a tentativa de extermínio não só físico desse povo, mas também a perda de aspectos dos seus modos de vida, a dispersão das famílias e a falta de alternativas de sobrevivência, a não ser trabalhar para os fazendeiros, muitas vezes em condições de escravidão, ou deixar a região.

Contudo, a resistência entre os indígenas foi se fortalecendo quando passaram a ouvir dos encantados orientações para reaver suas terras. É desse processo que trata justamente o livro de Alarcon, adaptado do seu mestrado, defendido em 2013 na Universidade de Brasília (UnB); o doutorado, realizado no Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dá prosseguimento a esse estudo.

A mandioca é mãe

“A aldeia é muito mais que o chão que você está pisando. A aldeia está sobre nós, é aquela que nos veste, que nos cobre, que nos coloca entre o céu e a terra”, declama Glicéria. “Precisamos de uma aldeia em que a gente se sinta um representado pelo outro. A gente oferece aquilo que nos dão, a gente agradece aquilo que nos dão, às pessoas que nos ajudaram a chegar aqui hoje. Que as folhas, o vento, o fogo, a fumaça que exala e que cura, que Deus permitam a prosperidade e a proteção de cada um, e o acreditar de cada um. Que tenham caminhos abertos, que não tenham entraves.”

“O vento dá, a folha tira. Tudo que é ruim, essa folha retira”, cantam os indígenas, enquanto vária folhas são jogadas no fogo e nas pessoas que formam o círculo. Um perfume aromático exala pelo ar. “É a bênção para vocês. A gente faz essa noite brilhar. É tudo nosso. Se sintam em casa”, fala Glicéria. Ela sobe em um palco de madeira construído para a ocasião, onde estão dispostas cadeiras e uma mesa coberta com um pano florido em que estão colocados alguns exemplares do livro; em frente à mesa estão posicionados vegetais cultivados na aldeia, como banana, cacau e batata-doce; outros exemplares do livro encontram-se mais à frente, dentro de um cesto de palha. Nas cadeiras, sentam-se Ailza Fulgêncio Barbosa, que participa das retomadas desde o início; dona Maria da Glória de Jesus, uma referência na aldeia, além de ser mãe do cacique Babau; Alarcon, a autora do livro; o cacique Ramon Tupinambá, que lidera a aldeia Tucum, também localizada na TI Tupinambá de Olivença; e seu Lírio (Rosemiro Ferreira da Silva), o pajé da aldeia Serra do Padeiro, que é casado com dona Maria.

O público, estimado em cinquenta pessoas, se senta em cadeiras dispostas em frente ao palco, enquanto o restante fica em pé. Glicéria diz: “Declaro aberto o Retorno da Terra!”. O primeiro a falar é o cacique Ramon: “É preciso somar outras pessoas na luta. Estamos protegidos por Tupã, Nhanderu, os encantados da floresta, para ter no papel firmado nosso direito e ter a terra reconhecida”.

Dona Maria toma a palavra: “Estamos aqui com Daniela para apresentar esse livro. Na farinhada, as mulheres se reúnem para conversar, falar o que tem na aldeia do outro. É um encontro para conversar, trocar história, ver a luta de cada um, aprender com os outros”. O lançamento do livro se deu durante a Farinhada das Mulheres, que aconteceu entre 12 e 15 de dezembro e é uma festa local em que mulheres de várias aldeias se reúnem na Serra Padeiro para fazer e compartilhar farinha e outros derivados da mandioca. Com o tubérculo arrancado, as pessoas ajudam a descascá-lo e sevá-lo   (uma forma de sovar a massa) em um triturador. Ensacada, a massa de mandioca é colocada em uma prensa, para a eliminação do líquido tóxico que a compõe. Depois, a massa é levada aos fornos a lenha, para ser secada e torrada. O preparo da farinha se conclui com sua passagem por uma peneira. À parte, algumas mulheres extraem goma, para preparar beiju. Da roça de mandioca ao processamento na casa de farinha, o preparo dos produtos leva dias. No último, o dia da feira, as pessoas aparecem em peso para celebrar e compartilhar os alimentos, distribuídos gratuitamente. Em paralelo à produção, ocorrem debates e articulações políticas. Em 2019 estiveram presentes à Farinhada das Mulheres cerca de 150 pessoas.

“A terra é uma mãe, mas tem que trabalhar nela. A mandioca é mãe também, dá para comer tudo dela, tem a farinha, o beiju, a puba. É uma hora muito boa para apresentar esse livro maravilhoso. Eu não vou ler, porque não sei ler, não, mas vocês que leem peguem esse livro e leiam!”, disparou. Ela cursou recentemente a primeira série, no Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (CEITSP), que atende todas as séries e ensino médio técnico em agroecologia.

Como uma flecha

Já Ailza diz estar ansiosa para ver o que tem no livro, no que Alarcon comenta que ela está lá, ao mesmo tempo que abre uma página com uma foto dela. Emocionada, Ailza solta: “Gostei, adorei!”. Seu Lírio, de cabelos grisalhos e sorriso largo, arremata: “A pessoa só ganha as coisas com a luta. Se lutar e fizer, vai preservar um bocado de coisa. Tem o sol que esquenta e a lua que faz criar e sonhar”.

Alarcon, emocionada, declara: “Para mim, o lançamento do livro, de fato, acontece hoje [a obra já havia sido lançada em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Seguro e Salvador]. Hoje o livro nasce onde ele começou. Ele conta uma parte da história dos Tupinambá, que me acolheram. Ele mostra que teve muito massacre, mas teve muita resistência também. Este é um momento diferente de quando comecei a pesquisa, dez anos atrás. Hoje, os jovens indígenas estão entrando na universidade. O processo agora muda, porque os indígenas têm acesso a coisas que não tinham antes”. Ela agradece quem lhe contou histórias dolorosas, de tortura, de prisão, de humilhação. “Meu papel era fazer circular mais essas histórias. Procurei reunir também fotos, mapas, documentos. Sei que a história de vocês é viva, não cabe num livro, não, ela renasce em cada encontro desses, renasce nos filhos de vocês.”

O público se manifesta: “Vou procurar meu nome!”. “Tem que fazer volume 2!”. Muitos, com o livro na mão, abrem as páginas e procuram por fotos suas e de seus conhecidos. Jéssica Silva de Quadros, neta de dona Maria e seu Lírio, em pé na plateia, declara: “Quem diria isso? A nossa história dentro de um livro. É uma grande felicidade este momento. Antes, éramos sozinhos, nós e os nossos encantados, a nossa religiosidade e os inimigos. Fomos presenteados com nossos aliados, que hoje consideramos como Tupinambá, que se transformaram na nossa família. Vocês fazem parte dessa história nossa. É impossível contar nossa história sem mencionar vocês. Temos muita gratidão por esses presentes que os encantados nos deram”.

Agnaldo Francisco dos Santos, professor do CEITSO e atual presidente da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP), diz: “Vocês não sabem como esse livro é instrumento de luta, é uma flecha. Vamos usar isso contra os nossos inimigos. Nossos povos não vão se acabar, não importa o que o presidente Bolsonaro fale. Não vamos acabar”. Cem exemplares foram entregues de graça aos Tupinambá para serem distribuídos em todo o seu território e em outras aldeias. Começa a garoar. Uma voz diz: “Não é chuva, é bênção”.

Paulo Titiah, dos Pataxó Hãhãhãi, ceramista e ativista pela visibilidade dos indígenas com deficiência física, se levanta e, segurando suas muletas, puxa um canto de toré para passar energia para antropólogos e demais pessoas que ajudam na luta: “Nós conhecemos a argila, fabricamos nossos materiais. Nós somos indígenas e somos um grão dessa argila que ajuda a criar esses livros”.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.