Mal-estar na civilização, Memória,

O legado de uma luta

Ministra da Igualdade Racial, a jornalista e professora Anielle Franco fala de seu livro de memórias sobre Marielle

01fev2023

O Palácio do Planalto ainda tinha sinais do vandalismo promovido pela manifestação golpista de domingo, 8 de janeiro, quando Anielle Franco tomou posse como ministra da Igualdade Racial. Naquela quarta-feira, 11 de janeiro, a jornalista, mestre em relações étnico-raciais e professora de linguística assumia o cargo ao lado de Sonia Guajajara, empossada como ministra dos Povos Indígenas.


Anielle lançou Minha irmã e eu (Planeta), memória e homenagem à Marielle Franco

Na cerimônia, Anielle leu um poema da escritora mineira Conceição Evaristo, “Vozes-Mulheres”, no qual a autora fala de silenciamento, revolta e afirmação das mulheres negras na história deste país. E afirmou estar assumindo o cargo em nome de sua irmã, Marielle Franco. Poucos meses antes, Anielle havia lançado Minha irmã e eu (Planeta), memória e homenagem à ativista e vereadora assassinada em 2018. Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, Anielle fala do livro, de sua relação com a escrita e com Marielle e de luta política.

Quem tem medo de Marielle?
Com certeza quem é contra os direitos humanos, os direitos das mulheres, dos favelados. Os que são oposição [ao governo] agora. Ainda tem muita gente assim, ganhamos [a eleição] por pouco. Acho que serão quatro anos com um sentimento diário de disputa eleitoral, com pessoas que pensam diferente da gente e que precisamos respeitar, tentar dialogar.

Você espera que o caso Marielle seja finalmente resolvido pela Justiça?
Esperança sempre tenho, mas acho que será tudo muito difícil; há resistência, os ânimos estão acirrados. Óbvio que o Lula ter ganhado, a gente ter saído desses quatro anos retrógrados, dá esperança, mas isso é algo que a gente tem que cultivar diariamente.

Como o verbo esperançar, usado por Conceição Evaristo?
A Conceição Evaristo é literalmente a autora da minha vida. Um dos temas do meu mestrado era a “escrevivência”, que, para mim, é sinônimo de ressignificação. Foi por meio da experiência das dores e dos amores que meu livro floresceu.

Por isso Minha irmã e eu fala muito mais de vida do que de morte?
Sim. Tem uma coisa que hoje entendo, mas me incomodou muito no começo: a contagem de dias de morte da Mari. Prefiro falar dela viva. Fortalecer uma vida através de mil e não sei quantos dias da morte, para mim, é massacrante e desnecessário.

Como foi e tem sido viver publicamente o luto?
Por um lado, as pessoas pensam que eu não posso sorrir, não posso fazer mais nada da minha vida. E confesso que fiz isso em 2018 e por um bom tempo em 2019. Primeiro pela raiva que eu sentia, segundo por ter que dar conta de coisas que jamais imaginei na vida. Mas teve um momento em que virei a chave, no aniversário dela em julho de 2019, segundo ano da morte. Eu pensei: “Cara, minha irmã não é isso, ela era alegria, luta, determinação. Não posso ficar parada chorando e aceitar o que está acontecendo comigo”. Daí entendi que esse meu luto público tinha que ser transformado em agilidade.

‘Acho que serão quatroanos com um sentimento diário de disputa eleitoral, e precisamos dialogar’

Escrever o livro ajudou?
De várias maneiras. A escrita e a leitura sempre me acalmaram, junto com a atividade física e o mar. Costumava ir de manhã para a praia com a Mari, eu ficava jogando vôlei e ela lendo ou escrevendo. Fazer o livro me ajudou a botar para fora coisas que eu não sabia que sentia. E aprendi errando: escrevia uma frase, outra, apagava tudo. E fazia de novo, e de novo. O livro surgiu assim.

E como lidou com a dor?
Normalmente consigo controlar meus sentimentos ligados à dor da perda e à preocupação de proteger a minha família. Vivo o dia a dia, mas não sei como lido com a dor — talvez com muita terapia e muito colo de mãe, de filha, do meu companheiro.

Essas relações familiares e de afeto estão muito presentes no livro.
Desde que voltei dos Estados Unidos, todo o tempo que eu tenho livre fico com minha família. Com a Mari, toda quarta a gente se encontrava para tomar um café, um lanche. Justo na quarta-feira em que a mataram, não nos encontramos, porque eu estava com conjuntivite. E daí, na quarta da semana seguinte, eu pensei: “Ela não me ligou”. A minha ficha não tinha caído. No livro, tento passar um pouco dessa relação que ela tinha comigo e com as outras pessoas. O cuidado, o mimo de família, “vamos fazer uma comidinha?”. Quando ela morreu, a maioria das pessoas só conhecia a Marielle vereadora, então eu precisava perpetuar a Mari pessoa, tia, madrinha. O que mais aprendi com ela e aquilo de que sinto mais falta é o cuidado, o afeto com as pessoas ao redor.

E o que fazer para levar adiante o legado político da Marielle?
Olha, amiga, isso começa a ser feito quando as pessoas percebem que a gente merece um país mais humano. Da minha parte, desde que fundei o instituto [Marielle Franco], tento criar um lugar melhor, principalmente para as mulheres negras, que sofrem muito todo tipo de violência. Mas não só para elas, quero um lugar melhor para todas as mulheres. Acho que o nome da Mari chega com esse texto de esperança em dias melhores — como dizem: “Dias mulheres virão”. Tem sido muito duro, mas espero ter saúde por muito tempo para poder dar às nossas filhas tudo o que queremos e tudo com que sonhamos. 

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)