História, Política,

O poder do silêncio

Historiadora inglesa volta às origens clássicas da relação entre mulheres e poder e da violência que calou Marielle Franco

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

O livro Mulheres e poder: um manifesto, da feminista inglesa Mary Beard, 63 anos, foi publicado no Brasil no mês em que a vereadora Marielle Franco foi assassinada no Rio de Janeiro.

Nas duas palestras que compõem a publicação, a professora de clássicos na Universidade de Cambridge discorre sobre a milenar tradição ocidental de silenciar mulheres. A frase mais batida a respeito da trágica execução política que abalou o país é: quiseram silenciar sua voz. 

“No que diz respeito a silenciar mulheres, a cultura ocidental tem milhares de anos de prática.” A hipóteses de Beard é de que, para pensar o machismo e a violência de gênero na política, é preciso ir além do simples diagnóstico de misoginia: é necessário reconhecer a longa história por trás de tudo. A autora volta ao berço da democracia: a Grécia. Foi lá que Aristóteles definiu que a pólis pertencia aos homens e, às mulheres, crianças e pessoas escravizadas, cabia a oikos, o espaço doméstico. Seguimos ótimos em conservar a democracia para poucos. 

No espaço público grego predominava a abominação da presença e do discurso femininos. Beard apresenta isso usando a cena da Odisseia, de Homero, em que Telêmaco diz a sua mãe, Penélope, que “sua voz não é para ser ouvida em público”. Em seu último discurso na Câmara dos Vereadores, Marielle teve que afirmar, apesar dos seus 46.502 votos, que era uma vereadora eleita e não seria silenciada. Acabou sendo.

“O discurso público e a oratória não eram apenas coisas que as mulheres antigas não faziam: eram práticas e habilidades que definiam a masculinidade como gênero. (…) Na maioria das circunstâncias, uma mulher que falasse em público não era, por definição, uma mulher”, escreve Beard.  

A forma clássica de lidar com esta espécie de coisa que rompe o código social é a violência. Presente, por exemplo, nas Metamorfoses, de Ovídio, na qual Filomena, depois de ser estuprada por Tereus, tem a língua cortada para não ousar denunciar seu algoz. Presente nos quatro tiros que perfuraram o rosto de Marielle. 

A segunda maior população negra do mundo vive no Brasil, mas Marielle era a única vereadora preta do Rio de Janeiro. Foi morta na noite de 14 de março de 2018. Ao longo de todo o 15 de março, 93% do volume gigantesco de fluxo nas redes brasileiras — maior que o histórico dia da votação do impeachment na Câmara dos Deputados — foi de postagens comovidas que celebravam sua memória. 

Diante do fato de uma mulher negra, favelada, bissexual e feminista se tornar um símbolo capaz de unir pessoas de todos os campos ideológicos, no Brasil e no mundo, na defesa de uma linha democrática fundamental que havia sido cruzada rumo à barbárie, os milicianos contra-atacaram. Programaram robôs para saírem pelo Facebook disseminando mentiras. 

Modelo e reputação 

Uma das premissas básicas de Beard na segunda palestra é de que: “o modelo mental e cultural de uma pessoa poderosa continua a ser absolutamente masculino”. No caso brasileiro, poderíamos incluir: e branco, e rico. Os tiros contra a reputação de Marielle reproduzem a lógica do preconceito intrínseco aos que vivem numa sociedade machista, classista e racista, que olha uma mulher negra e favelada no poder e entende que ela só poderia ter chegado lá pela via criminosa, não por mérito próprio aliado a uma construção política coletiva potente. 

“As mulheres no poder são vistas como tendo ultrapassado os limites ou se apossado de algo a que não têm direito”, afirma Beard. Como é o caso das personagens Medeia, Clitemnestra e Antígona. A autora continua: “na maioria das vezes, são retratadas mais como agressoras que como detentoras de poder. Elas o tomam sem legitimidade, de forma que levam ao caos, à ruptura do Estado, à morte e à destruição. E a lógica inabalável de suas histórias é que devem ser desautorizadas e postas de volta em seus lugares”. Este parágrafo parece uma sinopse de um filme a que assistimos recentemente no Brasil. 

No espaço público grego predominava a abominação da presença e do discurso feminino

Além da posição em Cambridge, Mary Beard é autora de quinze livros, edita a seção de clássicos do Times Literary Supplement e escreve para a London Review of Books desde os anos 1980. Um currículo de respeito. Mas não foi ele que a tornou muito conhecida, e sim uma treta de internet. 

Numa manhã de julho de 2013, enquanto Beard falava em um popular programa de rádio inglês sobre ofensas que lhe dirigiam nas redes sociais, um usuário do Twitter enviou à professora uma mensagem pública: “Sua velha vagabunda imunda. Aposto que sua vagina é nojenta”. 

Mary Beard observa que, em casos de ataques virtuais, como o que sofreu, é comum ouvir a seguinte recomendação: “Não lhes dê atenção, é isso que eles querem”. Para ela, esse conselho não só é uma repetição do velho “cala a boca”, como “deixa os agressores em um lugar incontestado no debate”. Por isso ela não se calou. Naquele dia, retuitou o comentário ofensivo para seus 42 mil seguidores (hoje já são 147 mil). A repercussão foi devastadora para o autor da mensagem, um rapaz de vinte anos, que acabou apagando o comentário e pedindo desculpas.

A história dos ataques a Beard e à memória de Marielle é sintomática. Os haters, via de regra são homens (96%), brancos (80%), a maioria é jovem, de 18 a 34 anos (86%), e mais da metade pertence à classe média alta. 

“Não se pode, com facilidade, inserir as mulheres numa estrutura que já está codificada como masculina; é preciso mudar a estrutura. Isso significa pensar no poder de outra maneira”, escreve a autora. Para isso às vezes é preciso chutar a porta. 

No bojo da dor e comoção que tomou o país, notei duas atitudes entre os que estavam nas ruas. De um lado, a radicalidade da estrutura do poder tal como ela é, que engendra um mindset masculino de que, se há microfone, é para um homem branco falar e depois outro e outro. E reação do povo preto a isso: as vaias radicalmente pedagógicas de um povo duplamente ferido de morte — excluídos da democracia, são eles a morrer nas favelas, e quando chegam aos espaços de poder, acabam executados. 

Beard se pergunta: “deveríamos, então, ser otimistas em relação à mudança quando pensamos no que é o poder, no que ele é capaz de fazer e no engajamento das mulheres?”. O fato de Marielle ter sido uma exceção que morreu como regra gerou comoção por tudo o que ela representa. Essa comoção nasce do desejo de que a estrutura de poder milenarmente masculina tenha outra cara: menos cinza, mais colorida. Em outubro teremos a chance de transformar o corte epistemológico que a morte da vereadora engendrou: votando em mulheres que ampliem o sentido da experiência democrática. 

Quem escreveu esse texto

Antonia Pellegrino

Roteirista, é curadora do blog #AgoraéQueSãoElas, hospedado no site da Folha de S.Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.