Literatura brasileira,

Ninar para acordar gente grande

Em entrevista, Conceição Evaristo fala da solidão do homem negro e das maneiras de amar das mulheres

15dez2022

Fio Jasmim estava com 44 anos, casado desde os vinte com Pérola Maria, grávida de seu nono filho, e tinha mais um punhado de filhos com outras mulheres quando a narradora de Canção para ninar menino grande começa a contar sua história por meio das vozes das mulheres que cruzaram os caminhos do protagonista e de Conceição Evaristo, autora do romance lançado pela Pallas.


Canção para ninar menino grande conta uma história por meio das vozes das mulheres que cruzaram os caminhos de Conceição Evaristo, autora do romance

A escritora, nascida em 1946 em uma comunidade no alto da avenida Afonso Pena, o eixo norte-sul de Belo Horizonte, levou vinte anos para publicar seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, em 2003. Seu livro mais recente teve uma primeira versão em 2018, ano em que foi feita a campanha para que ela fosse a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras — o que, sabemos, não aconteceu.

‘Escrevi preocupada em perceber em que momento a dor do homem é explicitada’

Insatisfeita com a primeira versão do romance, a autora tentou rearrumar os fatos narrados, no “esforço de ser fiel ao que me contam”. É sua escrevivência, conceito criado por ela para “agarrar a vida, a existência, e escrevê-la em seu estado de acontecimentos”. Uma escrevivência cúmplice com as vozes de tantas outras mulheres e, neste romance, com a solidão do homem negro.

Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, Evaristo fala deste romance de amores , de feminismo, racismo, identitarismo e utopias.

Seu livro é para ninar ou para acordar o menino grande?
As [personagens] mulheres ninam ao contar as relações amorosas que tiveram com Fio Jasmim e, por meio dessas mulheres, ele acorda para o grande vazio que foi sua vida. Meu intuito era colocar o homem no centro da cena, mas esse homem central acaba sendo narrado pelas mulheres que contam sua história.

E assim elas também contam suas próprias histórias?
Sim, e isso cria uma espécie de cumplicidade. Há duas personagens narradoras: a mulher que sai da vida desse homem e a narradora que escuta e reconta o que ouviu dessa mulher e das outras que passaram pela vida de Fio Jasmim. Falo muito da solidão das mulheres negras, mas vejo que os homens negros também passam por um processo de solidão muito grande. A diferença é que nós gritamos as nossas dores umas com as outras. Não sei se os homens fazem isso entre eles. Escrevi preocupada em perceber em que momento a dor do homem é explicitada. Fui caminhando com esse desejo, mas fui apanhada de surpresa, porque esse personagem é construído sob o olhar das mulheres. Vamos ver o que vai dar, como os homens lerão esse livro.

Narrar o protagonista por meio de personagens mulheres tem a ver com o processo de escrevivência?
Agradeço a vida por me deixar misturar vivência e escrita. A narrativa se confunde em alguns momentos com a minha experiência pessoal. Eu poderia ter sido uma dessas mulheres de Fio Jasmim, como ele poderia ter sido meu pai. As pessoas às vezes perguntam se já vivi todas as histórias que escrevo, e respondo: “Só se tivesse mil personalidades”. Mas em toda escrita sempre vaza alguma coisa subjetiva de quem escreve. A escrevivência está em Canção para ninar na medida que é um texto que traz como as mulheres se relacionam. Uma coisa que gosto muito de fazer é criar uma cumplicidade com a personagem narradora, confundir o leitor: “É a Conceição Evaristo que viveu isso ou ela está inventando essa vida?”.

Canção para ninar menino grande fala também de ausências, abandono, do homem amado, do pai…
Faço esta pergunta: “O que é o macho? Onde está a centralidade ou não centralidade desse sujeito?”. Na vida, a gente observa mulheres perderem seus grandes amores e, de modo geral, conseguirem levar a vida e se reconstituírem quase sozinhas. Os homens não, precisam de outra mulher.

Uma experiência que coloco no livro é a ausência do pai. Fui criada por mulheres, essa ausência me marcou muito também. O homem provoca essa ausência, mas paga o preço por excesso de solidão. Temos pensado nisso no caso do homem negro. Um estereótipo muito comum é que os homens negros são irresponsáveis, não assumem os filhos, mas esse imaginário também é racista, vem daquela ideia de que os homens negros são preguiçosos. Tem uma questão muito complicada na formação das famílias negras brasileiras. Nas culturas tradicionais africanas, a família não é nuclear, não são só pai e mãe os responsáveis pela educação da criança, é a comunidade inteira, o clã.

No processo de escravização, as culturas negras passam a assumir uma moral judaico-cristã de família, na qual o homem está no centro. Isso coloca para o homem negro uma responsabilidade que ele não tinha como cumprir no processo de abolição, porque ficou sem trabalho. As mulheres encontraram uma maneira de trabalhar na casa das patroas — teoricamente livres, mas no interior da Casa Grande, servindo aos senhores. Há um discurso velado de que as mulheres trabalham e os homens ficam em casa sem fazer nada, quando deveria ser dito que estão desempregados — e não por culpa deles.

Como essas reflexões convergem para o pensamento feminista?
Fala-se que o único momento em que os homens negros se equiparam aos brancos é na hora de exercer o machismo. Mas a nossa luta feminista não pode ser primeiramente contra o homem negro. Ela começa contra um estado patriarcal, que é justamente simbolizado pelo homem branco e pelas mulheres brancas que não tiveram dificuldade nenhuma em assimilar essa noção de mando e repetir uma situação patriarcal contra as mulheres e os homens negros. Não há como falar de feminismo sem levar em consideração que a luta das mulheres negras é diferenciada em relação à das feministas brancas. Qual é o nosso desejo? É que os homens negros percebam que, quando lutamos contra esse estado patriarcal branco, eles também estão incluídos na luta.

Essa cumplicidade é possível?
A literatura pode colaborar para isso. Canção para ninar coloca o homem negro com suas fragilidades, não como vilão. Um homem que desde criança quer ser o príncipe negro, mas não consegue. Ele se ilude a vida inteira no modo como se relaciona com as mulheres e só no final vai perceber isso. Eu escrevi para uma primeira publicação em 2018, mas não fiquei satisfeita. Resolvi dar voz a mais personagens. É uma forma de dizer que essa história tem várias versões. Também quis colocar uma mulher lésbica como a única que entende a solidão desse homem para quebrar esse estereótipo de que as mulheres lésbicas odeiam os homens, não podem ter um relacionamento com eles.

Como vê o momento atual da literatura negra no país?
Vejo um momento de fertilidade muito grande, e mais do que merecido. É fértil não só para a literatura negra, mas para a literatura brasileira. Se a gente enche os pulmões para dizer que o Brasil é um país multicultural, multirracial, temos que reconhecer que nossa nacionalidade também é múltipla e o discurso literário é um dos lugares de afirmação (ou de negação) dessa multiplicidade. Há também uma valorização do pensamento indígena na literatura: [Daniel] Munduruku, [Ailton] Krenak e Eliane Potiguara estão aí. Essa diversidade não é apenas boa, ela é necessária, é justa. Não se trata somente de visibilizar a autoria negra, trata-se de reconhecer a multiplicidade que é a literatura brasileira. Se pensamos a literatura como o discurso sobre a identidade de uma nação, possibilitar essa leitura da autoria brasileira é reconhecer a diversidade do país.

‘Desejo que os homens negros percebam que estão incluídos na luta contra o estado patriarcal branco’

Há pessoas contra o discurso identitário. Mas a globalização implica em uma massificação, principalmente dos grupos subalternizados. Sabemos muito como sofrem as pessoas que vivem uma experiência sexual que não é hétero; vemos o sofrimento das pessoas negras; em uma sociedade que se organiza por castas, vemos como as pessoas das castas julgadas inferiores sofrem. São esses grupos identitários que estão florescendo. A escrita deixa explícita a fala dos grupos que reforçam a multiplicidade humana.

Isso dá alguma esperança?
Dizem que vivemos em uma sociedade distópica, mas acredito na utopia e acho que ela tem de ser cultivada. A gente tem usado muito o verbo esperançar, mas não é a esperança de mãos cruzadas: é uma que nos torna ativos, que nos diz dos nossos direitos, da nossa dignidade.

No Brasil, ao mesmo tempo em que a juventude negra está sendo sacrificada por uma política eugenista que escolhe o lugar onde pode exercer a violência, há ao mesmo tempo uma juventude negra que está estudando, escrevendo, criando. Apesar das dificuldades, a possibilidade de grupos subalternizados, não só os negros, propor outro tipo de história ou de organização mais democrática da sociedade vai acontecer, sim, não tem volta. A eleição de indígenas, de mulheres negras dá outro caráter à política, à gerência do país. A própria eleição veio aí para nos deixar acreditar na utopia e esperançar a partir de nossas ações.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)