As Cidades e As Coisas,

Terreiro do samba em disputa

Jornalista escreve sobre dimensão religiosa na escola de samba e comenta sobre o sítio arqueológico descoberto sob sua quadra

01jan2023

Na casa da jornalista paulistana Claudia Alexandre, o samba sempre foi afeto e também educação: aos fins de semana, seu pai reunia a família em torno da vitrola para ouvir os enredos das agremiações de São Paulo e do Rio. “Cresci em um ambiente de muito amor, mas, quando ia para a escola, eu via como o mundo era racista. E as escolas de samba mantinham o afeto que eu via em casa e não via no mundo”, conta ela.

O samba seguiu presente em sua carreira na comunicação e na trajetória acadêmica — do primeiro estágio na Rádio Gazeta AM, no programa de Evaristo de Carvalho (1932-2014), transmitido entre 1980 e 2000, até suas pesquisas de mestrado e doutorado em Ciência da Religião na PUC-SP nos últimos dez anos. Uma dessas pesquisas foi publicada como livro em 2021 e lançada na última edição da Flip, em novembro de 2022.

Orixás no Terreiro Sagrado do Samba: Exu e Ogum no candomblé da Vai-Vai é uma etnografia da agremiação paulistana fundada em 1930. No aspecto cultural, ela evidencia a cosmovisão africana que fundamenta as escolas de samba, onde sagrado e profano não se separam. Uma compreensão que Claudia — filha de candomblecista, seguidora da umbanda desde os anos 80 e posteriormente iniciada na mesma família de santo de seu pai — sempre teve.

Já no aspecto urbano, a pesquisa destaca a negritude do Bixiga, bairro central de São Paulo, e a importância da escola como continuidade do Quilombo Saracura, que existiu ali no século 19. Falar de ambos os aspectos — interligados — é disputar a história: o primeiro, diante de visões que entendem o Carnaval apenas como espetáculo; o segundo, frente à chegada do metrô no terreiro do samba, deslocando a quadra e gerando um movimento — Mobilização Estação Saracura/Vai-Vai  — pela memória e pelo futuro negro do bairro. Durante as escavações do metrô, em 2022, o sítio arqueológico do quilombo foi encontrado sob o chão da agremiação. “As escolas de samba e a religiosidade foram resistência ao racismo, com outro olhar”, diz Claudia.

O sistema despreza a possibilidade de proteger marcos negros nos espaços urbanos

Como o olhar fragmentado do qual você fala no livro dificulta o entendimento da escola como terreiro, separando sagrado e profano?
A cultura das escolas de samba sofre impacto a partir do interesse da mídia pelos desfiles. Do final da década de 90 para cá, com a transmissão ao vivo, o espetáculo passou a sofrer interferência em horários, eventos, estética, gestão e até regulamento. Você hoje assiste aos desfiles e os comentários são mera leitura de fichas técnicas, não são especialistas e gente que vive dessa cultura. Leci Brandão seria a grande mestra nesse quesito. Na década de 90, como comentarista, ela mostrava as origens e exaltava a escola de samba como um produto da cultura negra e da comunidade. Mas foi tirada porque a empresa argumentou que era político demais, quando na verdade era pedagógico, porque ela falava dos valores e abria a possibilidade de se entender o fator histórico — cultural e religioso — que as escolas de samba, principalmente as mais tradicionais, carregam. Hoje a televisão só é capaz de nos mostrar um fragmento do que as agremiações carnavalescas representam.

A urbanização que desvaloriza territórios negros atinge com força a escola de samba Vai-Vai, com a chegada do metrô na quadra. No entanto, no caminho foi encontrado um sítio arqueológico. Como observa esse momento?
Eu tenho observado esse episódio a partir de duas dimensões do racismo sistêmico. A primeira é problematizar como o sistema historicamente despreza a possibilidade de proteger patrimônios, lugares de memória e marcos negros nos espaços urbanos. Aquele território é exatamente onde estava instalada a Vai-Vai, uma das maiores organizações carnavalescas do Brasil, com mais de noventa anos de existência (e resistência). Fico sempre pensando: se ali fosse a igreja Nossa Senhora Achiropita, uma mesquita ou templo budista, alguém em sã consciência projetaria um caminho do metrô que destruísse um patrimônio deste? A Vai-Vai ficou na rua São Vicente por cinquenta anos, transformou-se em referência cultural e turística e simplesmente foi desalojada sem nenhuma proteção institucional ou patrimonial.

A segunda parte dessa dimensão é pela lógica ancestral daqueles sambistas. O acontecimento dos achados arqueológicos de alta relevância, exatamente no local onde haviam os assentamentos de Exu, de Ogum e os altares da escola Vai-Vai, me remete à devoção aos orixás que dá a certeza para eles de que Exu, o orixá das encruzilhadas, da comunicação, do movimento e do axé também está em disputa por aquele chão, protegendo e à espreita, até que haja garantia de que a obra do metrô não destrua a memória negra do Bixiga.

É um lugar de disputa há muitos anos, sempre foi incômodo ter uma escola de samba negra — em contingente, história e gestão — que ocupasse aquele espaço de uma forma politicamente negra.

A dimensão do Carnaval-espetáculo que afasta os desfiles de suas origens contribui para que as escolas  de samba sofram com processos de especulação imobiliária, tornando-se mais vulneráveis?
Quando você pensa nas transformações que a cultura das escolas de samba de São Paulo (e do Rio também) sofreram ao longo do tempo, você percebe o quanto elas impactaram no jeito do povo negro ser e estar na festa comercial hoje em dia. Muitos sambistas como Cartola e Candeia, no Rio, e Geraldo Filme e Talismã, em São Paulo, preconizaram que o esvaziamento dos valores negros de uma escola de samba custaria caro para a própria história do povo negro. Observamos que a espetacularização inclui interesse pelo produto que atende à mídia, e a escola de samba até precisa dessa fatia, mas não é só isso. O interesse pelo entretenimento definiu uma relação de frieza e desprezo pelo patrimônio cultural escola de samba.

Quem escreveu esse texto

Adriana Terra

É jornalista e mestra em filosofia.