Religião,

A voz dos terreiros

Em festa sacra celebrada na Bahia desde 13 de maio de 1889 não se ouve o nome de Isabel, mas se lê os nomes de Marielle Franco e Dandara

15maio2022

Quem adentra a Baía de Todos os Santos e avança sobre os rios Paraguaçu, Jaguaripe ou Subaé vê às margens ruínas que evocam a dor e a rebelião. O doce e o sal das águas que se abraçam no recôncavo da Bahia lambem o massapê, chão de engenhos, e sedimentam memórias e tradições. As casas irmanadas, em geral com duas janelas guilhotinas, são olhos vigilantes que espiam, julgam, mas miram de esgueio. Silenciosas presenças. O beiral do telhado, às vezes reto, às vezes recortado, quase nunca se mostra, escondido na platibanda. A porta alta de madeira talhada se equilibra na calçada estreita e quase abraça a rua. Do lado de dentro, um corredor escuro e alongado, com fotos, crucifixos e beatos, exibe as bandeirinhas do último São João. Mais adiante, ao fundo da casa, uma luz de contraste. Um terreiro de chão batido depois da cozinha é o coração. O recôncavo pulsa. 

Em Santo Amaro da Purificação, a semana é de preceitos: todo ato é sagrado e devocional. A cidade festeja o Bembé do Mercado — bembé sendo uma corruptela de “candomblé”. Trata-se de uma manifestação religiosa, artística e política realizada pelas comunidades de religião de matriz africana desde o treze de maio de 1889. A festa, hoje reconhecida como patrimônio imaterial da Bahia pelo Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural e como bem imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, reúne mais de quarenta terreiros para cantar, dançar e saudar deuses e ancestrais. 

Os africanos escravizados que aportaram no Brasil são originários de distintas etnias, motivo pelo qual a religiosidade de matriz africana é plural. São diferentes cosmogonias, mitos, poemas, músicas, danças e, naturalmente, práticas rituais. A historiografia identifica quatro ciclos do tráfico de escravizados: durante o século 16, o ciclo da Guiné; a partir do século 17, o ciclo de Angola e Congo (bacongos, ambundos, benguelas, ovambos e outros); no século 18, o ciclo da Costa da Mina, centrado no atual Benin, antigo Reino do Daomé (iorubas, jêjes, minas, hauças, etc); e o último ciclo, o período de tráfico ilegal entre 1831 e 1851, que incluiu, além dos já mencionados, o tráfico de moçambicanos.

Se a instituição da escravidão promoveu o esfacelamento dos laços familiares, o terreiro se tornou espaço privilegiado de sua reconstrução

Esse panorama breve ainda é superficial, mas permite vislumbrar a imensa pluralidade linguística, religiosa e cultural da diáspora. Entre os séculos 16 e 19, estima-se que mais de 12 milhões de africanos foram escravizados e vendidos, dos quais mais de 5 milhões desembarcaram no Brasil. Se a diversidade cultural trazida do continente africano já era enorme, é preciso considerar ainda os processos de trocas, intercâmbios e sincretismos, não apenas entre as etnias africanas, mas também entre as culturas indígenas e as europeias. Esse amálgama cultural amplo e complexo resultou em núcleos de sistematização de ritos e mitos que encontram nos corpos negros um lugar privilegiado de inscrição. No treze de maio, pelas ruas de Santo Amaro, entre contas coloridas e panos da costa, desfilam corpos altivos. Como escreveu a poeta e ensaísta Leda Maria Martins: “lugares de inscrições de grafias do conhecimento, dispositivos e condutores, portais e teias de memória”.

No largo do mercado da cidade, a memória do conhecimento é veiculada pelo corpo em procedimentos performáticos. Uma memória incorporada. E, não raro, as imagens são antecedidas pelos sons. Os atabaques abrem um canal e conectam o espaço dos homens ao território dos deuses — Ayê (terra) e Orum (céu). O ritual ocupa o espaço público para se constituir território de circulação dos saberes, ambientes de memória que recriam e transmitem pela fala, pelo canto e pelo gesto. A corporeidade negra ritual, poética e política é afeto e pensamento. É uma episteme. O mercado, anualmente estruturado como um barracão de candomblé, congrega e reverencia. A ancestralidade é o princípio básico e o fundamento dessa congregação. 

Juana Elbein dos Santos, em Os nagô e a morte, escrito há meio século, explica que a força vital que fundamenta o princípio dinâmico da religião de matriz africana é o axé, “que possibilita o acontecer e o devir”. Sua fonte é sobretudo a ancestralidade reverenciada em rituais que transmitem saberes estéticos, filosóficos e metafísicos. Durante o dia, no Bembé do Mercado, o axé emana das conferências, das mesas-redondas, das apresentações de grupos de capoeira e do samba de roda; à noite, a energia vital que anima o povo nasce do barracão. Adornado pelo sacerdote Baba Geri, o espaço ritual do barracão é o ponto alto, cumeeira de um todo contínuo, território em que os repertórios orais e corporais transcriam, resguardam e transmitem saberes. 

Liberdade

Desde o século 19, mais do que um lugar de rituais, os espaços cerimoniais são territórios onde os africanos exilados e os afrodescendentes podem pensar a liberdade, falar sua língua, contar a história de seus ancestrais, entoar seus orikis e novamente encontrar uma condição de humanidade perdida na escravidão. O terreiro é ainda hoje o lugar em que essas culturas foram melhor preservadas. E se a instituição da escravidão promoveu o esfacelamento dos laços familiares, ele se tornou espaço privilegiado de sua reconstrução. 

No mercado de Santo Amaro, às 20h, os alabês (músicos da orquestra cerimonial) percutem o couro dos atabaques. É preciso ouvir a boca grande dos tambores. Pai Pote, o babalorixá responsável pela organização da festa, toma a frente e entoa um canto em iorubá, a língua cerimonial: “Ibarabô, agô, mojubá…”.. É um pedido de licença e proteção. É o início do xiré, a festa dos deuses que dançam. Babá Sérgio e Mãe Manuela de Ogunjá assumem os microfones. No mercado fincado entre encruzilhadas, todos os orixás serão evocados. 

Em nenhum momento da festa se ouve o nome de Isabel, mas lê-se nos muros da cidade o nome de Marielle Franco e Dandara. Dentro do barracão enfeitado com o machado de Xangô, o orixá da justiça, adeptas iniciadas exibem no peito ao lado das contas coloridas e do pano da costa um adesivo roxo com a frase: “Respeitem as minas”. Os corpos negros devolvem a dimensão política ao ritual esvaziado pela chibata do branco. O chicote virou baqueta; a cruz, aguidavi. No domingo, último dia do festejo, Oxum e Iemanjá, divindades das águas, receberão um presente na praia de Itapema. Em troca, pede-se força e proteção para mais um ano.  Mas segunda é dia de Exú, e o povo de santo seguirá em vigília.    

Quem escreveu esse texto

Marcos Ramos

É professor na Universidade Nacional da Colômbia. Publicou Balaio de Gato (Artigos, 2022) e Anatomia da elipse: escritos sobre nacionalismo, raça e patriarcado (Cousa, 2018).