Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Barbárie acima de todos

O Brasil de 2021 gabarita as características dos regimes descritos em ‘Como funciona o fascismo’, ensaio perturbador que Jason Stanley lançou em 2018

08jul2021

Em 2018, quando o Brasil se deparava com a escolha difícil entre um presidente e isso que aí está, Jason Stanley lançou nos Estados Unidos um livrinho perturbador. Ao mapear e denunciar a extrema direita fantasiada de democrata e suas práticas, Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles” resumia com clareza cada ponto do programa de governo da Aberração. Numa outra encarnação colunística, época que já se foi, chamei a atenção para o que nos ameaçava e tasquei no título: “Diante do fascismo”. A coluna foi publicada numa sexta, o Inominável eleito no domingo e eu demitido na segunda. Melhor para mim, que desde 2019 desfruto de total liberdade aqui na Quatro Cinco Um. Pior para todos nós, lançados no esgoto sob o silêncio obsequioso dos que desdenhavam da análise do professor de Yale, tida como “alarmista”.

Quase três anos depois, a truculência do Cavalão, potencializada na pandemia, virou solução para os imparciais de outrora. A escalada fascista tornou-se poderoso detergente de biografias: quem abjurava a palavra com “F” passou a ganhar dinheiro com ela; quem espalhou, encadernadas, ideias abstrusas que sustentam a aberração, afeta indignação de tribuno provinciano; não faltou ainda quem dormisse Maria Antonieta e acordasse Rosa Luxemburgo, listando adjetivos desairosos ao presidente aos gritinhos de “basta!”.

A proliferação orquestrada das motivações bizarras e secretas do mundo bolsonarista deixou de fazer mal à inteligência para, efetivamente, matar

O fenômeno ainda espanta, mas não surpreende. Em 1950, Aimé Césaire lembrava, no Discurso sobre o colonialismo, que a Europa minimizou Hitler até começar a sofrer, nas mãos do Führer, o que ela própria infligia às suas colônias. Nas palavras do poeta martinicano esse processo terrível ganha tintas literárias emocionantes, mas na sabedoria popular brasileira poderia ser resumido pelo princípio imortal: “passarinho que come pedra…”. Vocês sabem. 

Em dezembro de 2018, Como funciona o fascismo foi lançado pela L&PM e até hoje vendeu cinco edições. O sucesso deve-se, é claro, às suas qualidades, mas está em relação direta com o fracasso da democracia brasileira. Não precisa ser profeta; basta não ser pusilânime ou conivente para identificar nos dez pontos relacionados por Jason Stanley o país em que homens brancos de motocicleta, perversão na cabeça e arminha na mão, circulam empoleirados entre as covas de mais de 500 mil assassinados pela combinação letal de estupidez e propina.

Enquanto se discutem a cor adequada para as manifestações pelo impeachment, a “terceira via” e indigências como “bolsolulismo”, voltemos, ponto a ponto, a cada uma das dez características relacionadas em Como funciona o fascismo. O Brasil de 2021 gabarita, fácil, o teste de Stanley.

Passado mítico O Brasil idealizado e perdido do bolsonarismo é o Brasil da ditadura, a glória, o esplendor do patriarcado, fantasia carnavalesca dos infernos que celebra a autoridade pessoal como signo do poder. “Na retórica de nacionalistas extremos”, escreve Stanley, “esse passado glorioso foi perdido pela humilhação provocada pelo globalismo, pelo cosmopolitismo liberal e pelo respeito por ‘valores universais’, como a igualdade.” Eliminada a hipótese de que o autor tenha dons premonitórios, ouve-se aí, admiravelmente sintetizada, a retórica do Luminar das Trevas, formulador da política externa brasileira que operacionalizou, em seus fundamentos, o genocídio por Covid-19. 

Propaganda O líder fascista está sempre em campanha, tentando “ocultar os objetivos claramente problemáticos de políticos ou de movimentos políticos, mascarando-os com ideais amplamente aceitos”. É essa a missão do asqueroso Gabinete do Ódio: promover interesses particulares travestidos de causas comuns. Escreve ainda Stanley: “Campanhas anticorrupção estão frequentemente no centro dos movimentos políticos fascistas. Políticos fascistas geralmente condenam a corrupção no Estado que querem assumir”. Quem não tiver um pecado que atire a primeira rachadinha.

Anti-intelectualismo A contaminação das políticas públicas de educação por valores religiosos e a razia no fomento à cultura são causa e consequência do país que compra como filósofo um cartomante versado em Aristóteles. “As universidades são degradadas em discursos públicos, e os acadêmicos são ignorados como fontes legítimas de conhecimento e expertise, sendo representados como ‘marxistas’ ou ‘feministas’ radicais que estariam espalhando um plano ideológico esquerdista sob o disfarce de pesquisa”, escreve Stanley. “Ao rebaixar as instituições de ensino superior e empobrecer nosso vocabulário comum para discutir políticas, a política fascista reduz o debate a um conflito ideológico. Por meio dessas estratégias, a política fascista degrada os espaços de informação, obliterando a realidade.”

Irrealidade Esse ponto poderia ser resumido pelos brasileiros que deixam de se vacinar para evitar a implantação de um chip chinês de controle, bem informados que são por grupos de WhatsApp. A proliferação orquestrada das motivações bizarras e secretas do mundo bolsonarista deixou de fazer mal à inteligência para, efetivamente, matar. Uma vez ainda, há pouca novidade da estratégia: “O que acontece quando as teorias da conspiração se tornam a moeda da política e a grande mídia e as instituições educacionais estão desacreditadas é que os cidadãos não têm mais uma realidade comum que possa servir como pano de fundo para a deliberação democrática”.

Hierarquia Para os fascistas, há que se respeitar uma hierarquia “natural”: homens, brancos e ocidentais detêm imemorialmente a régua pela qual se mede o mundo, dividem-se suas riquezas e se estabelece quem delas é merecedor. O ministro da Educação que não podia ouvir falar em “povos indígenas” e o quilombola que o candidato do PSL sugeria pesar em arrobas dão pistas de quem, no topo, decide quem fica na base dessa pirâmide de darwinismo social. Para Stanley, “os fascistas argumentam que hierarquias naturais de valor existem de fato e que sua existência desfaz a obrigação de considerar as pessoas iguais”.

A cereja do bolo bolsominion é a recorrente vitimização dos truculentos, que ecoa na sofrência congênita da direita brasileira

Vitimização A cereja do bolo bolsominion é a recorrente vitimização dos truculentos, tese que não é nova e sempre teve ecos, antes tímidos, na sofrência congênita da direita brasileira, que há séculos domina o país lamentando-se das bordoadas da esquerda malvada. Sob o fascismo, esse sentimento se potencializa e perde-se a vergonha de defender teses repulsivas, como a de que cada pessoa negra admitida na universidade pelo sistema de cotas está roubando a vaga de uma pessoa branca. O racista e o homofóbico indignados, os ofensores ofendidos, saíram do bueiro. 

Lei e ordem Policiais incorruptíveis e juízes implacáveis são a fachada de políticas de extermínio e lawfare no mundo fascista. Se fosse um filme, o Brasil de hoje seria uma mistura de Tropa de elite com O mecanismo. A diferença sensível é que os mortos são reais, assim como os perseguidos e os resgatados pela “justiça”, com minúscula e aspas obrigatórias. “A retórica fascista de lei e ordem é explicitamente destinada a dividir os cidadãos em duas classes: aqueles que fazem parte da nação escolhida, que são seguidores de leis por natureza, e aqueles que não fazem parte da nação escolhida, que são inerentemente sem lei”, observa Stanley.

Ansiedade sexual Para o patriarca real ou simbólico, todas as pessoas LGBTQIA+ são uma ameaça. É preciso, portanto, neutralizá-las simbolicamente ou, como se tem visto, exterminá-las. A ansiedade que poreja na família numerada estende-se à valorosa equipe do governo. A questão, diz Stanley, é mais funda e não pode ser circunscrita ao domínio dos “costumes”: “Quando a igualdade é concedida às mulheres, o papel dos homens como únicos provedores da família é ameaçado. O destaque do desamparo masculino diante das ameaças sexuais a sua esposa e filhos acentua esses sentimentos de ansiedade perante a perda da masculinidade patriarcal. A política da ansiedade sexual é uma forma poderosa de apresentar a liberdade e a igualdade como ameaças fundamentais, sem aparentar explicitamente rejeitá-las. A presença marcante de uma política de ansiedade sexual talvez seja o sinal mais evidente da erosão da democracia liberal”.

Sodoma e Gomorra As cidades bíblicas são aqui uma metáfora para a intolerância do fascismo à diversidade e à variedade social das metrópoles e sua dinâmica de funcionamento. No Rio de Janeiro, a favela é o depósito de criminosos que pode e deve ser atacado de quando em quando. Com o mesmo prazer com que elogia chacinadores, o presidente fez questão de publicar nas redes sociais cenas de um golden shower, prova supostamente irrefutável da decadência dos costumes durante o Carnaval. Ao territorializar o preconceito, o fascismo mapeia e organiza a execução da violência.

Arbeit macht frei O dístico “O trabalho liberta”, que encimava o portão de Auschwitz, é uma das formas de o fascismo produzir divisão na sociedade: aos que trabalham nos termos vistos como produtivos (trabalho intelectual, nem pensar), a honra; aos demais, nada — ou a morte. Assim, milhares de cidadãos foram empurrados para a contaminação pela Covid-19, sendo o isolamento social, condição fundamental no combate à pandemia, associado aos “preguiçosos”.  

Em Como funciona o fascismo, Naro não era citado, pois, ainda candidato, desfrutava de um pouco provável benefício da dúvida. Hoje seu governo é consagrado internacionalmente. Seu nome figura em uma lista de dezessete (número sem dúvida cabalístico) líderes analisados em Strongmen – Mussolini to the Present (2020). O livro da historiadora norte-americana Ruth Ben-Ghiat entroniza o líder brasileiro, “conhecido por piadas com estupro e por saudar torturadores”, em um panteão que inclui Hitler e Pinochet, Putin e Duterte, Idi Amin e Berlusconi. Oito deles levados ao poder por eleições — com as instituições funcionando na normalidade e, provavelmente, analistas equilibrados menosprezando as infundadas advertências sobre novas encarnações do fascismo.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).