Jornalismo,

Minority Report

Em longa reportagem, jornalista da New Yorker compõe mosaico com minorias afetadas pelo discurso populista de Bolsonaro

01maio2019 | Edição #22 mai.2019

O repórter Jon Lee Anderson nasceu na Califórnia, mas tem algo de sotaque britânico e usa com naturalidade expressões em espanhol para pontuar o raciocínio. Filho de um diplomata americano, viveu em oito países antes de completar dezoito anos, e a primeira publicação para a qual colaborou foi uma revista peruana de língua inglesa, a Lima Times

Tornou-se correspondente de guerra nos anos 1980 e desde então esteve em quase toda parte: Líbano, El Salvador, Irlanda, Síria, Líbia, Afeganistão, Somália e Sudão, para ficar em alguns. A experiência rendeu seis livros, dois dos quais publicados no Brasil pela Objetiva: Che Guevara: Uma biografia — ele viveu em Havana de 1993 a 1995, durante o período de escassez que sobreveio à dissolução da União Soviética — e A queda de Bagdá, em que retrata o cotidiano de iraquianos comuns afetados pela guerra iniciada por George W. Bush.

Staff writer da revista The New Yorker desde 1998, Anderson também se destacou na produção de perfis, como os dos ditadores Augusto Pinochet, no poder por mais de um quarto de século no Chile, e Charles Taylor, liberiano responsável por inúmeros crimes de guerra na Guerra Civil da Serra Leoa. 

No final de março, Anderson publicou uma reportagem sobre a atual conjuntura política brasileira: “Jair Bolsonaro’s Southern Strategy”(algo como “A estratégia ao Sul de Jair Bolsonaro”), sua primeira apuração in loco no país desde 2009 — quando traçou um panorama do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. 

As 7,5 mil palavras — das 25 a 30 mil anuais que, por contrato, deve à revista — não trazem nenhum grande furo. No entanto, ao percorrer milhares de quilômetros, de um quilombo no Vale do Ribeira a gabinetes de ministros em Brasília, Anderson compôs um mosaico das minorias contra as quais se dirigiu o discurso de campanha bolsonarista, numa tentativa de familiarizar o leitor americano a uma onda populista que, segundo ele, é global — mas que, ao Norte, manifesta-se por meio de signos exógenos, como a imigração, a União Europeia e a China.

Após voltar de Atenas, onde estava para entrevistar o cineasta alemão Werner Herzog, Anderson falou à Quatro Cinco Um de sua casa em Dorset, na costa inglesa do Canal da Mancha. Na pauta, os bastidores da reportagem e os pontos de contato entre Bolsonaro e Donald Trump.

Quatro Cinco Um  Como o sr. planejou a pauta antes de vir ao Brasil?

Jon Lee Anderson  A primeira vez que ouvi falar em Jair Bolsonaro foi em 2016, quando ele dedicou o voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff ao torturador dela. Desde minha última reportagem no Brasil, eu vinha sugerindo pautas sobre o país para o meu editor quase todo ano. Mas surgiam outros compromissos e eu sempre tinha que adiá-la, embora, depois disso, eu tenha ido periodicamente ao Brasil por outros motivos, como festivais. Numa dessas visitas, em junho de 2018, quando Bolsonaro seguia liderando as pesquisas, conversei com muitos amigos, de jornalistas a militantes da causa ambiental, que descartavam as possibilidades de êxito dele. Eu, como americano residente no Reino Unid0, enxergava de outra forma: afinal, vivi a vitória de Donald Trump e do Brexit. Aí, em setembro, ele foi esfaqueado. Não dava mais para esperar. Fui ao Brasil duas vezes, em estadias de algumas semanas — foram cinco ao todo. Uma em novembro, logo após o segundo turno, e outra na virada do ano, para acompanhar a cerimônia de posse. Confesso que não trabalhei como costumo, sobretudo por não ter conseguido falar com ele. Mas fiz o melhor que pude. 

“O que mais me chamou a atenção na posse foi a tímida presença da imprensa internacional e de líderes de outros países”

451  Como o sr. delimitou o artigo?

JLA  A ideia foi retratar amostras dos grupos diretamente atingidos pelo discurso que o elegeu. Falei com gente da comunidade LGBTQ no Rio, uma cidade tida como liberal nos costumes. Também visitei uma aldeia xavante no Mato Grosso e um quilombo próximo a Eldorado (SP), cidade natal de Bolsonaro.

451  E quais desses personagens pareceram mais apreensivos?

JLA Os LGBTQ estão com o mesmo receio que pude perceber em outros países atingidos por essa onda populista conservadora. Um dos entrevistados, por exemplo, me levou à academia onde ele e amigos começaram a praticar Krav Maga [técnica de combate israelense usada para defesa pessoal]. O quilombo onde estive, Ivaporunduva, foi particularmente beneficiado por programas sociais dos governos do PT: a eletricidade só chegou lá há pouco tempo; o líder comunitário que me recebeu, um jovem e inteligente professor da rede pública, só conseguiu ter condições de estudar por causa do Bolsa Família; e mesmo a ponte que dá acesso ao lugar, aonde só se chegava por canoa ou balsa, foi uma promessa de campanha do Lula. A preocupação em perder o pouco que têm é natural. Mas talvez a coisa mais admirável que testemunhei na apuração tenha sido a resiliência dos Xavante. Até chegar à reserva indígena que visitei, em Canarana (mt), foram horas de carro atravessando campos intermináveis de soja, todos pertencentes a um só homem [o ex-ministro da Agricultura e senador Blairo Maggi].

451  O sr. também foi à Rocinha.

JLA Sim. Falei com um microempresário da região, um homem negro de meia-idade, eleitor convicto do Bolsonaro. Era um sujeito de uma franqueza brutal, totalmente desiludido com relação às questões raciais no Brasil. E tinha conquistas para mostrar, que atribuía exclusivamente a si: ele organizou um sistema de entrega de correspondência em pontos da comunidade aonde os Correios não chegam, e com isso conseguiu acumular algum patrimônio e dar estrutura para que o filho entrasse na universidade. 

451  Quais as impressões que o sr. teve da cerimônia de posse? 

JLA  Duas coisas me chamaram muito a atenção. A primeira foi a quase completa ausência da mídia internacional. Consegui reconhecer só um colega estrangeiro em meio aos profissionais que cobriam o evento. A segunda, o fato de pouquíssimas autoridades de outros países terem ido prestigiar Bolsonaro. Evo Morales, o que me surpreendeu, Viktor Orbán [primeiro-ministro da Hungria], que ninguém do público parecia saber quem era…

451  Os jornalistas brasileiros reclamaram do tratamento que receberam na cerimônia, como a proibição de acesso ao salão nobre do Palácio do Planalto. 

JLA É, assisti ao discurso e às outras solenidades do telão. No meu caso, não fez muita diferença, porque o plano era acompanhar a cerimônia em meio aos bolsonaristas. Escondi minha credencial, é claro. Não cobri os comícios de campanha de Trump em 2016, mas sei da hostilidade aberta que os seus apoiadores tinham à imprensa tradicional. E isso também parece se replicar no Brasil.

451  E o sr. encontrou resistência da parte do governo durante a apuração?

JLA Eu tenho muitos colegas em redações brasileiras, e sei que o governo não está sendo prestativo. Mas seria injusto dizer que as dificuldades que encontrei se deveram à má-vontade da equipe de Bolsonaro. Os períodos em que estive no Brasil foram especialmente ruins nesse sentido, já que eles estavam dando início à transição. Até consegui agendar uma entrevista com o Flávio Bolsonaro, mas ele desmarcou de última hora. Acabei conseguindo falar com o vice-presidente Hamilton Mourão — na época as declarações dele ainda não tinha começado a se distanciar do discurso bolsonarista — e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Também conversei com o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e com o deputado federal Alberto Fraga, numa tentativa de retratar a força política dos evangélicos e da bancada da bala. Dos estrangeiros, falei bastante com Steve Bannon [ex-estrategista-chefe da Casa Branca] e  com o financista Gerald Brant, um divulgador do Bolsonaro nos EUA.

451  Bannon parece estar apostando alto no presidente.

JLA Sim, ele derrama elogios naquele linguajar característico dele. Principalmente em relação ao Eduardo Bolsonaro, o representante do Movimento [rede de políticos e partidos populistas de extrema-direita idealizado por Bannon] na América Latina: “Ele é impressionante! Um cara excelente!”. Compara muito o Bolsonaro a Trump, principalmente por essa questão de ambos manterem um núcleo de poder muito baseado nas relações familiares. Elogia o Olavo de Carvalho, recentemente tem falado bem do Paulo Guedes — embora, como todo populista, ele se diga um nacionalista na economia. E tanto ele como Brant querem ver Mourão fora do Planalto o quanto antes.

451  Bannon foi demitido da Casa Branca com sete meses de governo e tem acumulado fracassos desde então. Ele vai conseguir ser relevante no Brasil?

JLA  Ele definitivamente vai influenciar esse governo e eu não subestimaria sua capacidade. Pode ser que Bannon seja alguém sem nenhum talento especial, um sujeito que só se aproveitou de determinada conjuntura histórica, mas é certo que Trump não teria sido eleito sem ele. E você tem que considerar que a longevidade na corte de Rei Donald não está ligada à competência: quem começar a aparecer mais do que o rei não vai durar muito. Ele ficou transtornado com o fato de Bannon ter sido fonte de Michael Wolff em Fogo e fúria [best-seller sobre a intimidade do governo Trump]. Outro fator que não pode ser desprezado é que a tendência geopolítica mundial está sendo ditada nos termos desses líderes populistas. Bannon é um supremacista branco, e Trump é a supremacia branca no poder. Bolsonaro está num contexto diferente do americano, mas não tenho dúvidas que ele se acha melhor do que gente como os quilombolas e os indígenas. Seu discurso contempla uma classe que se sentiu alijada nos últimos anos e acho que isso foi determinante para que ele ganhasse.

“Bannon vai influenciar Bolsonaro. A tendência geopolítica mundial está sendo ditada nos termos dele”

451  O sr. acompanha de perto a situação da Venezuela. A guerra é uma possibilidade?

JLA Mourão me disse que um cenário seria enviar tropas em missão de paz, por mais contraditório que isso possa soar num país em meio a uma disputa aberta por poder [a declaração ecoa a campanha de 2018, mas foi refutada por outros membros da cúpula militar]. A guerra me parece uma possibilidade distante, mas a situação geopolítica hoje é tão instável que você tem que considerar todas as cartas sobre a mesa. Lembro até hoje do meu espanto, como correspondente na América Central, ao ouvir Ronald Reagan falar na televisão que os sandinistas eram um perigo para segurança nacional americana [nos anos 80, o governo americano financiou contrarrevolucionários na Nicarágua].

451  O sr. é especializado em reportagens de fôlego, que exigem viagens e longos períodos de apuração. Com um jornalismo sufocado financeiramente, esses formatos tendem a desaparecer?

JLA A New Yorker é uma exceção. Além do meu editor, dois checadores de fatos trabalharam na reportagem, fora uma jornalista brasileira que me ajudou, já que não sou fluente em português. Respondendo à sua pergunta: o modelo é viável financeiramente? Eu diria que não. Mas a New Yorker consegue viabilizá-lo. No Brasil, vocês têm a Piauí. Fora outros veículos independentes que resistem bravamente América Latina afora. Não está fácil, mas ainda tem gente que faz acontecer.  

Quem escreveu esse texto

Antonio Mammi

É editor do Nexo Jornal.

Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.