Literatura japonesa,

Um feminismo deslocado

Autoras japonesas contemporâneas abordam a estranheza de viver em um mundo moderno que ainda é ditado pela tradição

01fev2022

Em uma entrevista para a Japan House São Paulo e para a revista Quatro Cinco Um, Sayaka Murata, de 43 anos, a premiada autora de Querida konbini e Terráqueos, conta que nas livrarias japonesas as estantes são separadas por gênero: de um lado autores homens; de outro, mulheres. A marca de um passado fortemente patriarcal ainda a deixa perplexa, especialmente porque diversas autoras mulheres são tão reconhecidas no Japão quanto os homens. Não só vendem tanto quanto eles como superam em número, nas últimas décadas, os ganhadores do prestigioso prêmio literário Akutagawa, importante índice de sucesso: treze mulheres e dez homens. 

Isso não quer dizer que sejam igualmente conhecidas fora do Japão, pois as obras disponíveis em outros idiomas não se comparam, em número, àquelas dos autores homens, como Akutagawa, Tanizaki, Mishima, Kobo Abe, Kawabata e Kenzaburo Oe, sendo os dois últimos ganhadores do Nobel. Com o crescente interesse dos brasileiros pela literatura japonesa a partir dos anos 90, estimulado pelas obras de Haruki Murakami, surgiu uma leva de tradutores, como Andrei Cunha, Jefferson José Teixeira, Rita Kohl e Shintaro Hayashi, e editoras interessadas nessas obras, com destaque para a Estação Liberdade, que tem um amplo catálogo dedicado aos autores japoneses. 

Originalidade

A literatura de autoria feminina no Japão data de muitos séculos, sendo que A lenda de Genji (Genji monogatari), escrita no século 12 e considerada o primeiro romance da literatura mundial, é de autoria de uma mulher, Murasaki Shikibu, cortesã da era Heian (894-1194). Até então, a literatura japonesa limitava-se à edição de mitologias, poemas e orações, e essa obra destacou-se pela absoluta originalidade. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, em seus escritos sobre o Japão, reafirma o caráter original e precursor de A lenda de Genji, observando que a obra prefigura um gênero literário que a França só viria a conhecer sete séculos depois, com as obras romanescas de Rousseau.

O extenso livro, escrito para o entretenimento das damas da corte que recebiam cada capítulo assim que era concluído, gira em torno da vida de Genji, filho de uma cortesã com o imperador, suas esposas, amantes e descendentes. Como nos romances atuais, o livro tem diversos personagens, principais e secundários, bem caracterizados, que evoluem coerentemente ao longo do tempo. No lugar de um enredo central, o livro narra uma sequência de eventos que se desdobram no tempo em uma trama intrincada, que simula a vida real na corte. Como observou Lévi-Strauss, o livro oferece um olhar penetrante sobre a sociedade e as instituições da época, como o casamento entre primos cruzados (filhos de irmãos de sexo oposto) e o papel dos parentes maternos em uma sociedade ostensivamente patrilinear. No mesmo período, outra mulher, Sei Shonagon, recebeu destaque com a publicação de O livro do travesseiro (Makura-no-soshi), um conjunto de textos, ensaios, poemas e anedotas que, embora não tenha a estrutura romanesca, ainda hoje é referência para a literatura daquele período.

O que se vê em seus livros é um feminismo deslocado, que busca o respeito às diferenças individuais

Nos séculos seguintes, os autores homens tiveram predomínio absoluto, sendo que no período Edo (1600-1868), quando o Japão foi governado por xoguns (senhores feudais e guerreiros), o tema da guerra coexistiu com textos contemplativos de influência zen-budista, como os curtos poemas chamados haicais. 

As autoras mulheres voltaram à cena a partir da chamada Restauração Meiji, em 1868, quando o Japão foi forçado pelos Estados Unidos a abrir-se para o exterior, após mais de dois séculos de fechamento quase completo, dando início a um rápido processo de ocidentalização e modernização. A partir desse momento despontam autoras politizadas e feministas como Shikin Shimizu, Ichiyo Higuchi, Toshiko Tamura, Yaeko Nogami e Akiko Yosano. Uma delas vale destaque: Raicho Hiratsuka, autora de Genshi, josei wa taiyō de atta, traduzido para o inglês como In the Beginning, Woman Was the Sun: The Autobiography of a Japanese Feminist (no princípio, a mulher era o sol: a autobiografia de uma japonesa feminista), e fundadora, em 1911, com outras quatro escritoras, do jornal mensal feminista Seito, no qual se discutiam temas como opressão patriarcal, casamento, sexo livre, emancipação feminina e igualdade de gêneros. Interrompido em 1916, depois de sofrer censura do Ministério do Interior por violar a lei que proibia qualquer crítica ao regime, o jornal continua a ser uma referência para o movimento feminista japonês. 

Estranheza

Os ecos dessas críticas são visíveis hoje nas obras de autoras como Yoko Ogawa, Hiromi Kawakami, Banana Yoshimoto, Mieko Kawakami, Natsuo Kirino, Kanae Minato e a já mencionada Sayaka Murata, todas conhecidas também fora do Japão e que, com exceção de Mieko Kawakami, se encontram disponíveis para os leitores brasileiros. O que se vê em seus livros é um feminismo deslocado. Embora a rigidez das tradições e do regime patriarcal permaneça como o pano de fundo, o que as novas protagonistas reinvindicam não são propriamente a igualdade de gênero e o sexo livre, mas o respeito às diferenças individuais, com destaque para a recusa ao sexo, ao casamento e à maternidade. Não o fazem de forma explícita, mas de um modo contido, sucinto e silencioso, em que as ações em si substituem a verborragia e as ideias prontas. A máxima expressão com o mínimo de recursos.  

Algumas das novas protagonistas, como aquelas criadas por Sayaka Murata, observam o mundo desde fora, passando a vida em uma busca sôfrega por estratégias de sobrevivência. Assim como a autora, Keiko Furukura, a protagonista e narradora de Querida konbini, começou a trabalhar em uma loja de conveniências (konbini) aos dezoito anos. Para a romancista, o trabalho, no qual permaneceu por mais dezoito anos, além de complementar a sua renda, inicialmente como estudante universitária e depois como escritora, dava-lhe rotina e ritmo na escrita, assim como a oportunidade de observar uma grande variedade de pessoas, substrato para os seus romances. Já para Keiko, a personagem, o trabalho na loja era bem mais que isso. Agindo de modo inusitado desde criança, ela causava repulsa e preocupação, optando finalmente por manter-se o mais invisível possível. Tudo muda no dia em que, por acaso, passa em frente a uma loja de conveniências e decide se candidatar ao emprego de funcionária: “Naquele momento, pela primeira vez eu fazia parte do mundo. Acabo de nascer, pensei. Sem dúvida, aquele dia marcou meu nascimento como uma peça no mecanismo do mundo”. A rotina da loja, a organização precisa dos produtos e sobretudo o manual dos funcionários, com instruções minuciosas de comportamento, deram a ela um norte: “Até então, ninguém jamais havia feito essa gentileza de me explicar claramente: ‘Este é o jeito normal de sorrir, este é o jeito normal de falar’”. 

As personagens dão voz a conflitos como a obrigação do casamento e a pressão para a reprodução

Em Terráqueos, Sayaka Murata dá um passo além na percepção do sentimento de estranheza ao criar personagens que se definem como extraterrestres. Inspirada em histórias em quadrinhos, mangás e animes, a autora cria a menina Natsuki, que se vale da magia como forma de suportar viver em um mundo que lhe é hostil e estranho: “Já que eu era uma garota mágica, aprendi com Piyut um feitiço para desaparecer. Não para desaparecer de verdade, mas para ficar bem quieta, de um jeito que ninguém repara em você”. Tratando de temas delicados, como estupro, incesto e canibalismo, Terráqueos nos permite acompanhar a trajetória de Natsuki, seu primo Yuu e, mais tarde, de seu marido Tomoya, também extraterrestres que veem o mundo como um local opressor, que denominam “Fábrica”. Nele, os terráqueos têm a função específica de gerar novos seres, como em uma linha de produção. Embora Natsuki inicialmente lute para encontrar um meio de pertencer a esse mundo, ela não tem sucesso: “Então o jeito é tentar ser discreta e levar a vida como uma terráquea. Eu esperava que, conforme crescesse, o mundo me programasse, mas a lavagem cerebral não funcionou comigo”. Junto a Yuu e Tomoya acaba por conformar-se com o seu lugar como imigrante de um planeta para o qual nunca poderão voltar e decidem viver de seu estranho modo, rompendo com todos os tabus e regras. 

A impressão que se tem, ao ler esses romances, é que o conflito de mundos, o tradicional e o moderno, mantém-se com força para a geração que tem trinta e quarenta anos no Japão urbano, criando uma espécie de não lugar, como se não se soubesse mais o que fazer e como agir, levando a opções radicais de vida. Filmes e artigos jornalísticos tratam do boom da assexualidade no Japão, que apontam para uma diminuição considerável da população no futuro próximo, de pessoas que pagam para “desaparecer”, contratando firmas especializadas em apagar seus traços no mundo, e do grande contingente de homens jovens ou de meia-idade que decidem se fechar em casa e nunca mais ir às ruas, dedicando-se a jogar video game e olhar para o teto. Exatamente o caso dos maridos de Keiko e de Natsuki, retratados nos dois romances de Sayaka Murata, cujos personagens têm um descaso explícito, ou mesmo aversão, ao sexo. 

O conflito de mundos, o tradicional e o moderno, mantém-se com força, criando uma espécie de não lugar

Yoko Ogawa (nascida em 1962) aborda o desajuste por um outro viés, aquele do desaparecimento e da memória. Em A fórmula preferida do professor, a narradora trabalha como faxineira na casa de um professor de matemática de 64 anos, sem memória do presente: “Toda a sua memória termina no ano de 1975. Ele não consegue acrescentar novas memórias além desse ano. Por mais que tente, elas se desfazem. Ele se recorda dos teoremas que formulou há trinta anos, mas não se lembra do que jantou ontem à noite. Ou seja, é como se tivesse na cabeça uma fita de vídeo com oitenta minutos de duração. Todas as gravações feitas além desse tempo vão apagando as anteriores. A memória dele só dura exatos oitenta minutos, uma hora e vinte minutos”. 

A sua vestimenta diária, um terno coalhado de pequenos bilhetes mnemônicos presos por clipes, não deixa de lembrar um traje extraterrestre. Desligado dos afazeres da vida cotidiana, todo o seu interesse gira em torno dos números. Como observa a faxineira, “não obstante o caráter insólito do objeto, o amor que o professor lhes devotava era bem ortodoxo. Tratava-os com todo o carinho, com dedicação desinteressada, não esquecia o respeito, às vezes os acariciava, outras se ajoelhava, e nunca se distanciava deles”. O amor pelos números acaba por contagiar a faxineira e seu filho de dez anos, que, com o professor, formam um inusitado triângulo cuja linguagem gira em torno de números e jogos de beisebol. Os números e as equações fazem, para o professor desmemoriado, o mesmo papel da konbini para Keiko: eles dão ordem a um mundo percebido como caótico. “Tudo se encaixava no lugar correto, sem artifícios ou ajustes, como se lá estivesse desde tempos remotos, para assim continuar por toda a eternidade”. A matemática oferece ainda ao professor o meio para uma espécie de protesto contra aquilo que Natsuki, a extraterrestre, chama de “Fábrica”, a engrenagem do mundo que quer fazer de todos nós peças úteis e reprodutivas: “A perfeição matemática é bela porque não tem utilidade na vida prática.”

Os outros livros de Ogawa publicados no Brasil, O museu do silêncio e A polícia da memória, tratam novamente da questão da memória e do esquecimento, embora ali não digam mais respeito às pessoas, mas ao mundo. No primeiro livro, um museu é construído para abrigar a memória das pessoas mortas, por meio de insólitos objetos, como, por exemplo, um olho de vidro como memória de uma pessoa cega. A polícia da memória fala de um mundo em que seres vivos, como pássaros, e objetos, como perfumes, frutas e fotos, desaparecem de tempos em tempos, sem deixar traços, nem mesmo na memória das pessoas. Aqui, não são as pessoas os deslocados, mas o mundo que teima em se fazer estranho. A tal polícia, composta de homens truculentos em uniformes militares, paradoxalmente, funciona para punir não aqueles que se esquecem, mas os que se lembram. Tudo se passa como se a ilha retratada no livro de Ogawa de algum modo nos remetesse a essa outra ilha, o Japão, que também vai se tornando poroso com os muitos desaparecimentos.

Comida e família

Como contou Sayaka Murata na mencionada entrevista: “No Japão você tem que ser graciosa, tem que ser uma boa menina para ser uma boa esposa. Era uma pressão que eu sofria”. Murata diz que sempre se sentiu restringida por ser uma menina. A sua mãe queria que ela aprendesse piano, usasse vestidos arrumados, estudasse em uma universidade feminina tradicional e conseguisse que um homem adequado se apaixonasse por ela à primeira vista: “Havia uma grande pressão sobre como as meninas deviam ser”. Ainda na escola, pensou em se suicidar por ter sido rejeitada por sua única amiga, lembrando-nos de um fenômeno igualmente presente no Japão: a alta taxa de suicídio de jovens em idade escolar.

O suicídio é o tema de um dos livros de Banana Yoshimoto, Moshi-Moshi (“Alô, Alô”), outra conhecida autora japonesa, nascida em 1964. No caso, o pai da protagonista e narradora suicida-se junto com a sua amante, dentro de um carro, deixando para trás a esposa e a filha. A partir daí esta procura entrar em contato com o mundo do pai, constituído por músicos de jazz, especialmente com um de seus parceiros. Em seu livro mais conhecido, Kitchen (Nova Fronteira, 1995), atualmente fora de catálogo no Brasil, a protagonista e narradora, também uma mulher na casa dos trinta anos, ao perder a avó vai viver na casa de um jovem e de uma mulher transgênero, espécie de mãe e padrasto do rapaz. O livro, como diz o nome, gira em torno da comida, pois é unicamente na cozinha que a jovem se sente segura e confortável. É a sua konbini.

As comidas constituem outro tema essencial nos livros, e não só das autoras mulheres, como os leitores de Haruki Murakami podem constatar. Descrições detalhadas dos pratos e do seu preparo alternam-se com cenas de pessoas comprando comida pronta em konbinis, como os conhecidos noodles em copos de plástico, a serem esquentados no micro-ondas. As sofisticadas comidas tradicionais são parte central do romance A valise do professor, de Hiromi Kawakami (nascida em 1958), mais uma das autoras de sucesso hoje. No livro, a protagonista, Tsukiko, também é uma mulher no final de seus trinta anos, tão solitária, que, durante um passeio na floresta, surpreende-se com o excesso de seres vivos: “Era estranho estar cercada de tantas criaturas vivas. Na cidade estou sempre só”. Vive em bares a partir do entardecer e em um deles reencontra um professor do colégio, trinta anos mais velho, a quem trata somente por Professor. Daí em diante ambos passam noites a beber e a petiscar as mais variadas comidas no balcão do bar, descritas em detalhe no livro. Do encontro entre duas pessoas idiossincráticas e tão diferentes entre si surge uma relação amorosa, embora assexuada, com pouca troca de palavras, baseada em pequenos gestos, olhares, silêncios, constituindo um exemplo claro da capacidade japonesa de concisão, de dizer o máximo com o mínimo. 

É tentador aproximar o professor de Kawakami do professor de matemática de Ogawa. O costume desse novo professor de guardar pilhas usadas, cada qual com uma etiqueta identificando o objeto a que servia, poderia ser facilmente atribuído ao homem da matemática, com os seus lembretes pregados no terno: “O professor sentia pena em descartar logo as pilhas que trabalharam a seu favor. Era cruel jogar fora, tão logo morriam, as pilhas que até então acenderam luzes, emitiram sons e movimentaram motores”. Bilhetes e etiquetas que nos transportam diretamente ao mal-estar causado pelos desaparecimentos onipresentes nos diversos livros, e exacerbados no caso dos personagens de A polícia da memória.

As famílias de origem das protagonistas, quando surgem no enredo, são fonte de conflito

Como era de se esperar em tramas que têm como pano de fundo a rejeição à imposição das regras sociais, as famílias de origem das protagonistas, quando surgem no enredo, são fonte de conflito: Keiko não visitava a sua família nem no Ano Novo, importante data do calendário local, optando por dedicar todo o seu tempo à konbini; Natsuki, a extraterrestre, está segura de não ser um membro da família, que a rejeita desde sempre e por quem ela desenvolve aversão; a faxineira do matemático é mãe solteira, motivo que a levara a romper relações com a mãe, único membro da família mencionado no livro; a moça desmemoriada de A polícia da memória é órfã. Tsukiko, de A valise do professor, expressa de modo sutil e claro o sentimento de inadequação à vida familiar, após uma visita de fim de ano: “O problema é que de alguma forma pareço me sentir insatisfeita. É como, por exemplo, quando você encomenda alguns vestidos, mas, no momento em que os veste, um deles está curto demais, outro de tão longo arrasta a barra pelo chão”.

Outra autora importante, Mieko Kawakami (nascida em 1976), infelizmente não foi traduzida para o português, mas espera-se a publicação de seu maior sucesso, Breasts and Eggs (“Seios e óvulos”), uma trama que discute o direito ao próprio corpo e às decisões sobre a vida reprodutiva. Uma das duas protagonistas organiza a sua vida em torno de um desejado implante de seios, e a outra reflete sobre a opção de gerar uma criança a partir do esperma de um desconhecido.

Crime e suspense

Há outro gênero de literatura escrita por mulheres de sucesso, o de crime e suspense. Duas das autoras mais conhecidas são Natsuo Kirino (nascida em 1951) e Kanae Minato (de 1973), cujos livros disponíveis em português são fruto de tradução indireta, a partir do inglês, o que torna a leitura menos fluida. Neles, as mulheres, também protagonistas e quase sempre narradoras, são, poderíamos dizer, menos estranhas, embora com traços evidentes de deslocamento. 

Dentre os diversos livros publicados de Kirino, somente dois foram traduzidos: Do outro lado e Grotescas. O primeiro trata de mulheres de meia-idade que trabalham na linha de montagem de uma fábrica de bentôs (refeições prontas embaladas) no período noturno, permanecendo horas a fio de pé e terminando exaustas o turno ao amanhecer. Vivem com sua reduzida família, composta de marido e filhos. Uma delas vive em um pequeno apartamento com uma filha e a sogra moribunda, que ficou aos seus cuidados com a morte do marido, retratando mais um drama vivido pelas mulheres casadas no Japão tradicional: a coabitação com a família do marido e a obrigação de servir aos sogros. O livro tematiza ainda o contraste entre as obrigações femininas com a família e a liberdade dos homens, que passam as noites nos bares, têm amantes e, embriagados, são violentos com a esposa. Esse é o mote que leva à ação central do livro, o assassinato de um desses maridos e a cumplicidade entre as mulheres para promover um outro tipo de desaparecimento, aquele do cadáver. Grotescas tematiza a relação entre duas irmãs a partir das perspectivas cruzadas de uma e outra e termina com dois assassinatos a serem averiguados. Ambas são também mulheres solitárias, com relações conturbadas com os homens. 

Kanae Minato tem três livros disponíveis no Brasil: Confissões, Entrelaçadas e Penitência, que tratam de assassinatos envolvendo segredos e mulheres. Neles, as mulheres solitárias surgem em conflito com suas famílias e amigas casadas e tornadas mães, que querem lhes impor esse caminho, tal como o faziam as colegas de escola de Keiko, da konbini e de Natsuki, a extraterrestre, personagens de Murata. O desabafo de uma das narradoras de Entrelaçadas nos remete diretamente à fala de Murata em sua entrevista, mencionada acima: “Quando completei 25 anos, um desconforto permanecia desde então. Gostaria que minha mãe parasse de se preocupar com o fato de que eu tinha entrado em uma idade na qual, em alusão ao vinte e cinco de dezembro, as moças eram vistas como bolos decorados que perdem o seu valor após o Natal”.

Em suma, trata-se de uma literatura abundante, de altíssimo nível, de leitura agradável e envolvente. As personagens dão voz a uma série de conflitos, que provavelmente foram ou são vividos pelas próprias autoras e por muitas outras mulheres japonesas: a obrigação do casamento, a pressão para a reprodução e a submissão ao marido e à sua família. Nos livros, elas reagem com transgressões de todo tipo: isolamento, repulsa ao sexo e às relações amorosas, assassinatos e a opção por trabalhos mecânicos que oferecem uma renda mínima, além de rotina e um norte para o comportamento. São, evidentemente, temas caros a todas nós, mulheres daqui e de lá, mas a leitura desses livros nos dá a impressão de que esses problemas se condensaram de modo agudo no Japão contemporâneo.

Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.
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