Literatura japonesa,

Entre duas línguas

Novo romance da escritora japonesa Minae Mizumura impôs desafios atípicos de tradução literária

01maio2021

Em 1963, Minae Mizumura, então com doze anos, trocou 東京 por Nova York quando seu pai foi transferido para o escritório estadunidense de sua empresa. 美苗 , sua irmã  奈苗 e sua mãe se mudaram para um subúrbio de Long Island.

Estou tentando transmitir um pouco da sensação de ler a recém-publicada tradução para o inglês de An I-Novel (Um eu-romance), o relato ficcionalizado de Mizumura sobre sua vida americana. No Japão, onde o texto dos livros costuma ser impresso em linhas verticais da direita para a esquerda, a versão original foi publicada em 1995 da maneira como você está lendo agora: horizontalmente, da esquerda para a direita. Ela também incluiu diversas palavras, e até diálogos inteiros, em inglês. Isso criou o efeito de um livro dividido entre dois mundos, dois idiomas, duas maneiras de ser — exatamente como Mizumura se sentiu durante os vinte anos que passou nos Estados Unidos.

Ao trazer esse livro para os leitores anglófonos, ela e sua renomada tradutora, Juliet Winters Carpenter, enfrentaram um desafio atípico. Se fosse traduzido para qualquer outra língua, as palavras em inglês poderiam ser mantidas nesse idioma, para preservar seu caráter estrangeiro. Contudo, para a tradução estadunidense, elas encontraram outra solução: destacar essa parte do texto em negrito. Isso criou um efeito engraçado, chamando a atenção para os ecos tão locais de palavras que não costumam soar estranhas a ouvidos americanos. 

Terra prometida

No romance de imigração tradicional, os Estados Unidos são a terra prometida. Neste, essa terra fica em outro lugar. Mizumura se mudou para Nova York quando já havia passado um pouquinho da idade em que o inglês poderia se converter em língua natural. Esta, ela já tinha. “Eu amava o idioma japonês”, ela escreve, “e, acima de tudo, a literatura escrita em três sistemas distintos de escrita: o gracioso hiragana ひらがな , o espartano katakana カタカナ e o denso kanji  漢字 .” Ela chegou aos Estados Unidos nos anos 1960, antes de tudo ficar “multicultural”, antes de haver um restaurante de sushi em cada esquina, antes de o Japão virar sinônimo de sofisticação.

Não demorou para que a ideia de voltar para casa se tornasse uma obsessão. Ela só se sentia bem nos romances que havia levado consigo, embora estes se passassem em um Japão que — como ela estava dolorosamente ciente — só existe na literatura. Conforme os anos passavam, ela sentia que estava encurralada: pela inércia, pelo iene cada vez mais caro, pela necessidade de terminar a faculdade, pela doença de seu pai, pelo casamento fracassado dos pais, por ser velha demais para se casar. (A idade-limite para uma garota japonesa decente era 25 anos.) Sua própria mãe zombava dela quando manifestava seu desejo de se tornar uma escritora japonesa, dizendo que a filha nem sequer pôde escrever japonês direito.

Mizumura sabe que pode. Mas não sabe como ou quando voltar. An I-Novel transcorre durante um único dia: uma sexta-feira 13, apropriadamente o vigésimo aniversário de seu exílio. Está sentada em seu apartamento em uma lúgubre cidade universitária (New Haven) quando o telefone toca. Sua irmã, Nanae, pergunta se sabe que dia é, mas ela não tem ideia. Fica chocada por ter esquecido de um aniversário tão crucial. Entende que é o momento de tomar algumas resoluções que há muito vem adiando. Encerrará seu trabalho na universidade e voltará para casa. “Não sei se há um cenário em que voltar para casa é uma boa ideia”, diz uma professora israelense. Mizumura também não. Suspeita que as coisas seriam mais fáceis se simplesmente se deixasse levar pelo turbilhão do cotidiano. Mas dentro dela existe uma recusa ferrenha a abdicar de sua identidade. Por mais cafona, moderno e desenraizado que seja, ela pertence ao Japão.

Em uma era de livros sobre identidade, An I-Novel se destaca pelas questões difíceis que aborda. Não é difícil de ler. Mizumura é uma escritora fluente e divertida. Embora a obra não revele, ela voltou, de fato, há quase quarenta anos. Virou exatamente o que sua mãe duvidava que ela pudesse ser: uma romancista respeitada em sua própria língua, além de uma best-seller. Obteve notoriedade em 1990 com sua estreia, Light and Darkness Continued (Luz e sombras: continuação), cujo título deriva da obra final e inconclusa de Natsume Soseki, Light and Darkness, que Mizumura “continuou” e completou. Seu domínio do refinado japonês clássico de Soseki surpreendeu especialmente os leitores que ficaram sabendo que os estudos dela ocorreram em Nova York, Massachusetts e Connecticut.

Como o grande feito desse romance foi a reprodução do estilo de Soseki, Light and Darkness Continued era impossível de traduzir. Suas obras subsequentes, incluindo o melhor livro que já li sobre tradução e multilinguismo, The Fall of Language in the Age of English (O declínio das línguas na era do inglês), refletem sobre o que um escritor perde quando começa a escrever para um público internacional. Os livros podem se tornar parecidos com Uma questão pessoal (1964), de Kenzaburo Oe, em que o protagonista tem um nome em inglês, bebe uísque Johnnie Walker, dirige um carro MG e cita Shakespeare. O Japão é uma nota de rodapé. Como tantas outras obras internacionais, o livro confunde “inglês” com “universal”, uma omissão do caráter local ainda mais perniciosa por às vezes dar certo. Oe acabou ganhando o prêmio Nobel.

Os livros de Mizumura reivindicam a particularidade, o intraduzível de sua própria língua. E fazem isso sem o menor resquício de nacionalismo. Ela fala com ternura da bondade que encontrou nos Estados Unidos, e já disse que a literatura japonesa moderna que admira surgiu a partir do contato com o Ocidente — seu instigante A True Novel (Um romance verdadeiro) foi inspirado em O morro dos ventos uivantes. A dificuldade de sua obra reside nas questões que levanta. Como ser nacional sem ser chauvinista? Como ser local sem ser provinciano? Como usar a identidade como ponto de partida em vez de um argumento final? Nas obras de Mizumura, essas questões permanecem sempre em aberto. Ela sabe que os Estados Unidos não são a terra dela, que o inglês não é a sua língua. Mas uma coisa é se dar conta disso. Outra, bem diferente, é saber como voltar para casa. (Tradução de Bruno Mattos)

Este texto foi feito com o apoio da Japan House São Paulo.
Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Benjamin Moser

Escritor e historiador norte-americano, publicou Clarice, uma biografia (Companhia das Letras).