Literatura,

Tóquio é um deserto

Bestseller de autora japonesa se torna fenômeno mundial com uma história de amor às avessas

26out2019

Uma mulher passa metade da vida trabalhando numa konbini, uma típica loja de conveniência japonesa. Antes disso, era como um peixe fora d’água: as regras implícitas ao pacto social, absorvidas intuitivamente pela maioria, soam completamente obscuras para ela. Já o trabalho, repleto de diretrizes e automações, traz a impressão da normalidade tão buscada. A experiência, a princípio temporária, acaba se arrastando por quase duas décadas, quando a mulher e a konbini se tornam uma espécie de unidade indissociável. 

Com essa premissa simples, o romance Querida konbini, de Sayaka Murata, tornou-se um best-seller no Japão e foi traduzido para mais de dezoito idiomas. É o décimo livro da autora, que recebeu o prestigioso prêmio Akutagawa em 2016. No Brasil, foi publicado pela editora Estação Liberdade, com tradução de Rita Kohl. O texto soa muito bem em português, mas também carrega ecos estrangeirizantes que ajudam a nos transportar para outra ambiência. 

Narrado em primeira pessoa pela protagonista Keiko, o romance tem sido elogiado pela forma como retrata a sociedade contemporânea japonesa e a vida nas grandes cidades. Em uma crônica de 1942, Carlos Drummond de Andrade argumenta que o mosaico de casas e ruas de uma cidade aparenta certa solidariedade enquanto “esconde a sua estranha composição de milhares de almas opostas e inconciliáveis, vegetando orgulhosamente em ilhas inacessíveis”. Nesse sentido, conclui que seria justo afirmar, como fez o poeta Yvan Goll, que Paris é um deserto. Pois a Tóquio de Murata é um deserto ainda maior. 

Multidão de ilhas

A região metropolitana de Tóquio é a área urbana mais populosa do mundo, com cerca de 40 milhões de habitantes. Em Querida konbini, aqueles que não se adaptam à sua engrenagem acabam expelidos, ficando cada vez mais isolados. Uma multidão de ilhas.

Um estudo recente do Instituto Nacional de Pesquisa Populacional e Previdência Social do Japão aponta um crescimento da população que se mantém virgem na idade adulta: 42% dos homens e 44% das mulheres. O estudo indica também um aumento do número de pessoas solteiras e informa que, entre elas, a maioria não está em busca de um relacionamento: 60% das mulheres e quase 70% dos homens, por ora, preferem permanecer assim. Os dados se referem apenas a relações heterossexuais, pois a motivação da pesquisa foi a queda na taxa de natalidade do país, uma das mais baixas do mundo.

Keiko engrossa as estatísticas: aos 36 anos, nunca se relacionou sexualmente, nem parece interessada nisso. A despersonalização que o trabalho oferece também apazigua uma espécie de apatia da personagem, que não parece ter sonhos ou qualquer libido para vivenciar ou para reprimir. 

Com a chegada de Shiraha, novo funcionário da loja, a história acena para um ponto de virada. Ele é indolente e misantropo, um exemplar diferente de pária. Os dois acabam firmando um acordo improvável, a partir do qual a autora poderia ter seguido o caminho de outras narrativas em que os deslocados encontram no amor e na amizade uma espécie de redenção. Mas essa é uma história diferente.

A despersonalização que o trabalho oferece também apazigua uma espécie de apatia da personagem

Para Shiraha, a dinâmica da vida no Japão está estabelecida desde a pré-história. Em uma de suas ofensas, diz à narradora: “Sinceramente, você é a personificação da ralé. Seu útero já deve ter passado da validade, e, com uma aparência dessas, você não serve nem para aliviar o desejo sexual de ninguém. Poderia compensar isso ganhando tanto dinheiro quanto um homem, mas também não é o caso. Longe disso, nem emprego fixo você tem, só trabalha como temporária, recebendo por hora. Sinceramente, você é só um peso para a aldeia, um lixo humano”.

Par perfeito 

Keiko reage à agressão com pragmatismo. Ela não se assemelha em nada a outras figuras ingênuas ou incompreendidas com as quais poderíamos equipará-la, pois não há propriamente uma sensibilidade negligenciada. Ela é o par perfeito para o trabalho automatizado na loja de conveniência — essa é a história de amor que o romance de Murata tem a oferecer: “Meu corpo pertencia à konbini, mesmo nas horas em que não estava em serviço. Se eu dormia, me mantinha em forma, me nutria, era para poder trabalhar com saúde. Tudo isso fazia parte do ofício”. 

Quando passa um período afastada do trabalho, Keiko lembra que toda água do corpo humano é substituída a cada duas semanas e se pergunta: “Será que a água das garrafas que eu comprava todas as manhãs já tinha deixado meu corpo? Será que agora a umidade da minha pele e a membrana líquida que cobria meus olhos já não eram mais da konbini?”. 

Ao contrário do que ocorre em outras histórias, o trabalho que despersonaliza também funciona como o único contorno que organiza e orienta a personagem, dando a ela uma identidade e um sentido, ainda que seja a identidade de funcionária da konbini e o sentido de servir bem aos “Senhores Clientes”. Oscilando entre a melancolia e o humor, Querida konbini radicaliza temas que a literatura contemporânea tem se dedicado a investigar.

Mas, se o romance foi recebido como uma crítica à imposição de uma ideia opressora de normalidade, também é possível afirmar que sua heroína torta tem comportamentos e pensamentos extremos, que poderiam de fato colocar em risco qualquer pacto civilizatório. Dos episódios de violência na infância à dificuldade em criar laços afetivos na vida adulta, Keiko encontra na konbini a possibilidade de um pertencimento vazio e de uma autonomia chocha. Diz, com orgulho, que lá não existe discriminação de gênero, porque todos são apenas funcionários. É uma lógica em que diferenças não são administradas, mas sim aniquiladas pela desumanização. 

Quem escreveu esse texto

Fabiane Secches

É psicanalista e pesquisadora de literatura na Universidade de São Paulo.