Flip,

Clamores urgentes

A antropóloga Aparecida Vilaça, autora convidada da Flip, alerta para o abandono dos índios e do Museu Nacional pelo governo federal

11jul2019

Aparecida Vilaça abre a programação principal desta quinta na Flip em mesa com o colunista da Quatro Cinco Um Paulo Roberto Pires. Em conversa com a revista dos livros, a antropóloga fala sobre sua atuação no Museu Nacional — consumido por um incêndio em setembro do ano passado — e a convivência com os índios Wari’, detalhada no recém-lançado livro Paletó e eu (Todavia).

Você vê algo de positivo na aproximação entre os Wari’ e os brancos que integravam as chamadas equipes de pacificação? Nada, a não ser pelo fato de que eles estavam muito ameaçados na época, sendo assassinados por seringueiros, numa situação de fuga, tendo que deixar suas roças, sem ter muito o que comer… Já começavam a sofrer de doenças trazidas pelos brancos, pelas aproximações indiretas. Neste aspecto, foi importante a aproximação. 

Eles perderam muito de sua identidade e cultura? São termos delicados, porque sempre tiveram uma identidade e uma cultura muito fluidas, muito abertas aos outros, muito maleáveis. Mas podemos dizer, em termos gerais, que sim, perderam muito. Os velhos praticamente não contam mais os mitos aos jovens e eles não fazem mais as festas e os rituais tradicionais, principalmente por causa da influência dos missionários evangélicos, que começaram a condenar e criticar suas práticas como coisas do diabo, coisas ruins, dizendo que iam para o inferno.

Acha que essa perda é algo irreversível? É irreversível no sentido de que cada vez mais a situação impossibilita que eles reconstituam sua vida tradicional. Até porque seu território foi muito reduzido com a demarcação. Eles estão cada vez mais distantes das terras boas para o plantio de milho, que é a base de sua subsistência, e tem toda a questão das doenças novas, do cristianismo, do evangelismo. Neste momento, não vejo possibilidade de se afastarem disso. Mas dizer que é irreversível também é muito difícil porque, nos anos 1960, antropólogos diziam que os índios estavam perdendo tudo, e eles se refizeram, revigoraram-se. Então vejo como uma mudança irreversível num certo sentido, mas eles estão se refazendo de outro modo, reconstituindo a vida deles a partir de outras bases. 

Pode nos falar um pouco sobre a prática de canibalismo entre os Wari’? Eles ficaram muito conhecidos pelo canibalismo funerário nos anos 60 porque os agentes governamentais e missionários tentaram de todo modo fazer com que parassem com a prática. Os Wari' a tinham como uma forma de fazer desaparecer o corpo do morto, porque eles não aguentavam vê-lo. A ideia com a qual eles têm que conviver hoje, à qual acabaram sendo levados e obrigados, de o corpo ser enterrado, era uma ideia terrível para eles, porque a alma da pessoa ficava debaixo da terra, e a pessoa ficava presa. 

O canibalismo era também uma forma de destruir completamente o corpo, liberando a alma para o mundo póstumo, onde ele vivia novamente em família; e, ao mesmo tempo, liberava a memória dos vivos, no sentido de que não ficariam mais pensando no morto. Era uma forma de funeral muito eficaz — uma forma como diversas outras, que eles abandonaram com a chegada dos brancos. Foi feita muita pressão na época, aquilo aparecia em manchetes de jornal, e eles a abandonaram. Hoje, enterram os mortos.

A situação dos índios no Brasil deve piorar com o atual governo? Não é nem mais um prognóstico: isso já está acontecendo. O governo está fazendo uma confusão absurda, editando medidas provisórias e decretos que são incompatíveis com os direitos constitucionais dos índios. A ideia do Ministério da Agricultura de mudar a demarcação das terras indígenas defende o interesse dos ruralistas e dos proprietários de terra, que são os inimigos principais dos índios hoje. É um descalabro.

Mesmo essas atitudes do governo sendo vetadas pelo Congresso, elas dão às pessoas a ideia de que têm autoridade, de que, a partir da palavra e dos interesses do presidente da República, podem invadir essas terras. As invasões já estão acontecendo. Em todas as áreas indígenas está havendo uma enorme quantidade de invasões ilegais. É um absurdo, um desrespeito completo aos direitos indígenas que foram garantidos na Constituição de 1988.

Como você vê o progresso do Brasil em relação ao preconceito com tribos indígenas? Em certo sentido, se mantém estável. Mas houve um marco importantíssimo na legislação brasileira, que foi a Constituição de 1988 — os direitos dos indígenas à sua identidade, sua cultura, suas práticas e sua língua estão assegurados por ela. Foi um passo enorme, fruto de uma luta de vários agentes. Desde então, tem acontecido uma retomada das demarcações de terra. No governo FHC, houve muitas demarcações; no governo Lula, algumas; no governo Dilma, praticamente nenhuma. Evidentemente, no governo Temer, também não. 

Agora, todo o discurso é para que não haja mais — isso que há muitas demarcações para as quais estudos técnicos já foram feitos, que comprovam a ocupação ancestral dos indígenas nessas regiões e que estão prontas para serem assinadas. O que significa que os índios estão sofrendo todo tipo de pressão. Mato Grosso do Sul, por exemplo, é uma matança geral. Em regiões fronteiriças, onde os índios constituem o foco dos interesses por terras, o preconceito é muito grande. Em regiões urbanas, onde há pessoas mais escolarizadas, há menos preconceito, no sentido de que se entende mais, se conhece mais, se respeita, se admira. 

Fora isso, os índios hoje estão de fato muito ativos nas lutas pelos seus direitos. Entraram em universidades, estão se formando. Eles serão os agentes principais para diminuir esse preconceito, porque estarão eles mesmos colocando a sua voz a favor das suas especificidades culturais.

Qual foi a coisa mais impactante que você aprendeu no convívio com os Wari’? Aprender sobre o modo deles de ser — o modo específico, diferente do meu. Foi impactante saber que se podia viver de maneira muito diferente da minha, e muito bem-sucedida. Existem outras formas de sociedade, de cultura, que não envolvem, por exemplo, a escrita, o dinheiro ou a chefia, e que funcionam perfeitamente, em que as pessoas crescem, são saudáveis, se alimentam bem, riem muito. Os Wari' sempre foram muito risonhos.

Outra coisa impactante foi a centralidade da família na vida deles. Para os Wari', a coisa mais importante é fazer gente, como eles dizem, ou seja, produzir filhos. Aprendi que entender os Wari' e viver com eles é também me fazer parente deles. Fazer parte da vida deles e fazer com que fizessem parte da minha foi justamente uma das coisas importantes que aconteceram: trazer o meu pai Paletó e o meu irmão Abraão ao Rio de Janeiro para conhecer a minha família, e levar meus filhos para conhecer os Wari'. Eles se relacionam assim, construindo laços afetivos.

Passados quase dez meses do incêndio no Museu Nacional, que sensação fica? Muita tristeza.Foi um lugar onde trabalhei por trinta anos, ao qual eu ia diariamente. A sensação é de perda de um pedaço meu que não consigo recuperar. Até hoje ando com a chave da sala do museu na minha bolsa. Tenha a sensação física mesmo de como se pudesse virar a maçaneta da porta, entrar na sala e olhar a vista na janela. A sensação do susto do primeiro momento, do pós-incêndio, da dor aguda, não é mais a mesma. Mas sim a de perda, de tristeza. 

E até hoje não temos um lugar de fato para trabalhar. O mais antigo programa de pós-graduação em antropologia do Brasil, um programa nota 7 [o maior nível de avaliação] na CAPES desde sua criação , tem um bando de professores que não tem salas, não tem departamento. E essas condições precárias do Museu Nacional datam de muito tempo. As diversas direções do museu sempre pediram auxílio para reconstrução — o último tinha sido pedido ao BNDES justamente para refazer todas as instalações elétricas. Esse pedido, mesmo aprovado, demorou para ser liberado, por várias questões burocráticas, e houve o incêndio.

Agora se sabe que um dinheiro que estava prometido ao museu, a partir de emendas parlamentares de deputados federais do Rio de Janeiro, acabou sendo contingenciado também, pelo novo governo. A mais antiga instituição de pesquisa do Brasil sofre um incêndio por condições precárias que já tinham sido diagnosticadas e, mesmo assim, a reconstituição está ameaçada também por falta de comprometimento público.

Que tipo de conhecimento foi perdido na biblioteca de antropologia, que continha 27 mil volumes? A biblioteca da antropologia, a mais importante e mais completa do Brasil, foi construída ao longo de cinquenta anos. Ela foi 100% queimada. Foi uma perda absurdamente grande. Havia coleções completas de vários autores, de revistas científicas. Mas foi feita uma campanha grande para a sua reconstituição, com doações de diversas editoras dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França, além de coleções particulares de antropólogos. 12 mil volumes já chegaram, 8 mil estão chegando e mais alguns estão prometidos, então a expectativa é de que possamos reconstituir uma biblioteca do mesmo nível. 

Qual a sua expectativa para a participação na Flip? Estou muito feliz, é a minha primeira vez na Flip. Acho importante que eu possa divulgar o livro Paletó e eu, porque é um livro por meio do qual eu posso atingir um público de pessoa leigas, que não são antropólogas, mas estão interessadas em assuntos indígenas. O retorno que tenho tido é que esse livro está sendo bem-sucedido em falar dos índios para essas pessoas. Acho isso importante para os Wari', particularmente, para que se tornem conhecidos e tenham mais chances de ter seus direitos respeitados, e para os povos indígenas como um todo.

Achei muito gratificante falar livremente das coisas que vivi e experimentei, das minhas sensações e emoções, coisas que muitas vezes ficam fora de livros acadêmicos, construídos a partir de uma linguagem mais dura, restrita, delimitada. Esse livro fluiu. Sempre tive vontade de escrever outro tipo de texto que não o acadêmico. Eu sou uma contadora de histórias. A Flip me situa no meio de pessoas que estão fazendo isso. Estou no meio de autores de ficção, poetas, pessoas que admiro muito. Gosto dessa localização.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).