Música,

Xande canta Caetano que cita Machado

A música popular brasileira pode ser um terreno privilegiado para discutir as questões raciais brasileiras

01set2023

Em 4 de agosto, Xande de Pilares lançou seu mais recente álbum, um tributo dedicado à obra do cantor e compositor Caetano Veloso. A singularidade do projeto consiste em sua proposta de reinterpretar o repertório de Caetano à luz de ritmos e instrumentações profundamente enraizados nas culturas afro-brasileiras. Acompanhando o lançamento do álbum, um vídeo comovente foi divulgado nas redes sociais, no qual Caetano Veloso, ao lado de Paula Lavigne, do produtor e arranjador do álbum Pretinho da Serrinha e do próprio Xande, aparece visivelmente emocionado ao ouvir a versão da canção “Gente” (1977). A cena ressoou entre artistas, fãs e críticos ganhando rapidamente destaque na esfera digital. A partir de então, surgiram inúmeros textos na internet, buscando esclarecer o significado e a importância de Xande canta Caetano. Este artigo se une a essa discussão.

Seu eixo central é que o álbum projeta a obra de Caetano a outras alturas, ampliando uma discussão em torno dos caminhos de reconstrução da democracia. Enquanto em muitos países a literatura escrita ocupa o centro da cultura, no Brasil a canção popular é central na condução da vida cultural pública. E esta singularidade aponta para uma dicotomia profundamente enraizada na literatura brasileira do século 19 — um conflito entre aquilo que se convencionou chamar cultura erudita, profundamente alinhada à tradição europeia e às práticas letradas, e a cultura popular, que se caracteriza pela oralidade e uma conexão intensa com as manifestações do povo.

A obra de Machado de Assis talvez seja a primeira a tratar desse tema, destacando a música popular como elemento central na representação dessa tensão cultural. No conto “Um homem célebre”, o escritor apresenta a história de Pestana, um compositor com aspirações de criar obras eruditas, seguindo os passos de Beethoven ou Mozart. Contudo, apesar de suas tentativas, Pestana encontra-se involuntariamente atraído pelo gênero popular da polca. Embora impelido por uma ânsia de erudição, sua música invariavelmente voltava a esse estilo popular, levando-o a uma insatisfação profunda.

Embora impelido por uma ânsia de erudição, a música de Pestana invariavelmente voltava a esse estilo popular, levando-o a uma insatisfação profunda

A trajetória do compositor é permeada por um conflito interno pungente, alimentado pelo sucesso que conquistou na música popular em oposição às suas ambições eruditas não atingidas. Nesse cenário tumultuado, a saúde de Pestana declina, levando-o à morte. Na lápide do compositor, inscreve-se um trecho de uma de suas polcas, fixando ironicamente, na eternidade, o gênero musical que ele tanto renegou em vida. O conto de Machado de Assis ilumina as complexidades da fama, da satisfação pessoal e da tensão entre cultura popular e erudita, oferecendo um panorama da realidade artística e social do Brasil do século 19. Contudo, talvez a grande vocação do texto seja o modo como ele representa um conflito entre diferentes projetos de formação de um país.

Outro conto de Machado de Assis mergulha ainda mais profundamente na interação entre esses projetos conflitantes. A história de “O machete” é centrada em Inácio Ramos, um músico amador entusiasta do repertório erudito para o violoncelo, que na narrativa é retratado como a representação da “alta cultura”. A narrativa se complica com a entrada em cena de Barbosa, um estudante de direito e tocador de machete, um instrumento popular semelhante ao cavaquinho. E bem ao gosto do Bruxo, a trama se desdobra em torno de um triângulo amoroso composto por Inácio, sua esposa Carlotinha e o jovem cavaquinista (ou machetista) Barbosa.

Os personagens são inexoravelmente atraídos para a música popular, revelando a potência e a inescapabilidade desta na formação da identidade e da cultura brasileiras

Assim como Pestana, que, embora almejasse a música erudita, se encontra predestinado à polca, Inácio Ramos, um admirador do violoncelo e, consequentemente da “alta cultura”, é literalmente traído por aquilo que escapa à sua consciência e acaba cedendo ao inevitável. A história culmina com a ironia característica de Machado de Assis: ao perceber a inclinação do filho pelo machete, instrumento popular tocado pelo amante de sua esposa, Inácio Ramos profere suas últimas palavras antes de sucumbir à loucura: “Você tem razão; machete é melhor”.

Em resumo, em ambas as narrativas, seus personagens principais, ao buscarem a erudição musical, são inexoravelmente atraídos para a música popular, revelando a potência e a inescapabilidade desta na formação da identidade e da cultura brasileiras.

Wisnik lê Machado

Recorrente nos contos de Machado de Assis, a polca ascendeu como um gênero musical significativo no fim do século 19. Trata-se de um gênero europeu que se adaptou, refletindo a mescla de influências culturais e sonoras locais. O Rio de Janeiro, capital do país na época, era um foco de diversidade cultural africana. Foi nesse contexto que a polca e as musicalidades afro-brasileiras se entrelaçaram em uma rica troca cultural.

No ensaio “Machado maxixe”, José Miguel Wisnik defende que a incorporação do ritmo sincopado, uma característica marcante das musicalidades centro-africanas, causou uma transformação profunda na sonoridade da polca. Essa mudança não se restringiu apenas ao ritmo, mas alterou significativamente a atmosfera musical. A partir dessa fusão a polca aos poucos se transformou em maxixe.

Essa transformação aconteceu em um contexto de conflito: como incorporar símbolos culturais africanos em uma identidade marcada por racismo e exclusão. Na interpretação de José Miguel Wisnik do conto de Machado de Assis, as dificuldades de Pestana em compor sonatas, sinfonias e réquiens não devem ser atribuídas unicamente a uma falha individual de suas habilidades de composição. Ao contrário, Pestana deve ser compreendido como uma expressão vívida da cultura ao seu redor — um reflexo da vida coletiva típica de sua época.

Wisnik sugere que Machado oferece uma análise aguda e única da vida musical brasileira no final do século 19, formulando uma equação complexa cujos elementos antecipam o curso futuro da música popular urbana no Brasil.

Ampliando sua reflexão sobe o problema, Wisnik introduz na análise do conto um termo derivado da psicanálise: recalque. Na psicanálise, o termo refere-se a um mecanismo de defesa inconsciente que o indivíduo emprega para lidar com pensamentos, sentimentos ou impulsos perturbadores ou inaceitáveis, afastando-os da consciência para áreas inconscientes da mente. De acordo com Sigmund Freud, o recalque ocorre quando nos deparamos com pensamentos que consideramos inaceitáveis e os relegamos ao fundo da mente. Embora recalcados, esses pensamentos não desaparecem completamente. Eles podem ressurgir indiretamente em sonhos, atos falhos, ou até mesmo se manifestar como sintomas físicos ou psicológicos.

O recalcado não desaparece, mas permanece influenciando de formas indiretas e, muitas vezes, inesperadas

No conto “Um homem célebre”, o conceito de recalque é usado para referir-se à música afro-brasileira e, de modo mais amplo, à influência cultural africana na sociedade brasileira. Durante a escravidão e por muitos anos depois, a cultura africana foi frequentemente marginalizada, suprimida e até proibida, sendo “recalcada” no imaginário social. Contudo, semelhante ao conceito freudiano, o recalcado não desaparece, mas permanece influenciando de formas indiretas e, muitas vezes, inesperadas.

Desde o início do conto de Machado, somos apresentados à luta de Pestana. Contudo, em um contexto de distração total, contrapondo a tensão do esforço de composição, um momento significativo ocorre durante um diálogo entre o protagonista e seu escravizado. Segundo Wisnik, a conversa informal desencadeia uma série de associações que culminam em uma polca, certamente amaxixada, inesperada: um retorno do recalcado que, momentaneamente, “transforma o ciclo vicioso em virtuoso”.

Embora o dilema apresentado por Wisnik possa, à primeira vista, parecer distante das questões frequentemente abordadas pela canção popular brasileira contemporânea, é interessante observar como o retorno aos impasses machadianos ecoa na obra de Caetano Veloso. Wisnik nos lembra que o artista baiano, no encarte do álbum Circuladô (1991), faz referência justamente a uma frase do mesmo conto machadiano: “Mas as polcas não quiseram ir tão fundo”. Tal menção sugere uma ligação deliberada e explícita com a temática machadiana, destacando a contínua relevância das problemáticas do conto para a música brasileira contemporânea.

Sublimação coletiva

Indo além da análise de José Miguel Wisnik, é possível afirmar que, frente a um contexto em que o recalcado teimava em emergir, a sociedade brasileira adotou outro mecanismo de defesa: a sublimação. Freud define essa como o processo pelo qual impulsos perturbadores, frequentemente carregados de sexualidade ou agressividade, são transformados em atividades socialmente aceitáveis e até admiradas. Embora esse conceito seja tipicamente aplicado à dinâmica individual, é crucial compreender sua relevância e aplicação em um nível coletivo e social. A sublimação pode atuar como uma maneira de uma sociedade lidar com traumas e conflitos coletivos, transmutando-os em manifestações culturais, políticas ou artísticas.

No Brasil, a música popular é justamente um exemplo tangível dessa dinâmica, um espaço onde as tensões e intersecções raciais e culturais são não apenas expostas, mas também questionadas, reformuladas e reinterpretadas. A sublimação também pode funcionar como um catalisador para canalizar de forma produtiva o impacto traumático, da colonização e da escravidão, no nosso caso, permitindo que uma sociedade encontre significado, propósito e até mesmo beleza em suas adversidades.

A construção do conceito de democracia racial no Brasil é um exemplo, por excelência, do que pode ser um processo de sublimação. Esse conceito, que propõe a ideia de um país racialmente harmonioso, serviu como meio de sublimar a realidade do racismo, convertendo a opressão racial em um relato de convivência pacífica entre diferentes raças e culturas. É crucial ressaltar que a construção do discurso da democracia racial envolveu uma mercantilização das culturas autóctones e afro-diaspóricas.

A música popular é um espaço onde as tensões e intersecções raciais e culturais são não apenas expostas, mas também questionadas, reformuladas e reinterpretadas

Interpretada como uma dimensão central da sublimação coletiva, a metamorfose das culturas autóctones e afro-brasileiras em mercadorias possibilitou que o Brasil projetasse uma imagem de si mesmo como uma sociedade pós-racial, onde as diferentes raças e culturas coexistem em harmonia. E teve a música popular como palco hegemônico não apenas da divulgação dessas concepções, mas como o próprio resultado dos seus processos. Mas as contradições desse processo, no seio da própria música, são evidentes e nunca deixaram de se revelar.

Em seu ensaio “Don’t Look Black? O Brasil entre dois mitos: Orfeu e a democracia racial”, que faz parte do livro O mundo não é chato (2005), organizado por Eucanaã Ferraz, Caetano Veloso discute a centralidade do termo democracia racial no que ele chama “liberação de uma autoimagem racialmente eufórica dos brasileiros”. Na visão do compositor, a noção de democracia racial tornou-se um alvo recorrente de críticas por parte de cientistas sociais e ativistas políticos. Caetano sugere que essa obsessão em criticar a democracia racial como um mito alcançou um nível surpreendente, o que ele chama de “ quase mito do mito da democracia racial”.

A discussão em torno de se a democracia racial é um mito nos leva a considerar que, na perspectiva de Caetano, ainda existam possibilidades na sociedade brasileira para a construção de uma verdadeira democracia racial. Em suas próprias palavras, “a experiência brasileira deve ser enriquecida pelo mito da democracia racial, não desqualificada por ela”. O tema é delicado e exige discussão mais ampla. Diria, por hora, que a afirmação de Caetano desloca essa noção. Ao invés de um mecanismo de defesa social de sublimação do trauma colonial, para ele a democracia racial seria uma espécie de dissolução do próprio trauma. E não há dúvida, a música popular está no cerne dessa dinâmica. 

Caetano encarna um Pestana sui generis que, inclinado ao exercício acadêmico do ensaísmo e da crítica cultural, consagrou-se como compositor popular

Caetano encarna um Pestana sui generis que, inclinado ao exercício acadêmico do ensaísmo e da crítica cultural, consagrou-se como compositor popular colocando “todos os fracassos na parada de sucesso”, como afirmou, ao subverter o complexo machadiano, na canção “Araçá azul” (1972). E qualquer afirmação sobre o álbum Xande canta Caetano não pode prescindir da informação de que se trata de um encontro entre um dos mais importantes pensadores da cultura brasileira com Xande de Pilares e Pretinho da Serrinha, dois homens pretos nascidos e criados na periferia da democracia brasileira. Dois homens pretos herdeiros não apenas dos recursos técnicos que permitem a constante reinvenção das experiências estéticas diaspóricas, mas também dos recursos existenciais que permitem a enunciação de outros valores civilizatórios.

Muitas análises sobre Xande canta Caetano sugerem que a interpretação do sambista confere uma abordagem mais popular à obra do baiano, frequentemente vista como distante do público geral. Outras opiniões argumentam que a gravação de Xande meramente ressalta o caráter popular inerente à obra original de Caetano. Há ainda críticos que destacam um aspecto relacionado à dinâmica étnico-racial presente na própria inovação dos arranjos, o que resultaria em um processo de enegrecimento do repertório de Caetano.

Todas essas perspectivas sobre o álbum podem ser vistas como complementares e sobrepostas. No entanto, um ponto fundamental é compreender o álbum como um elemento-chave em uma discussão mais abrangente. A dinâmica cultural racista que primeiro recalcou e sublimou a cultura negra como parte da construção de uma identidade nacional, em tese moderna, agora é reorientada, metonimicamente, pelo encontro desses três.

Isso pode significar que, mais do que um processo que tem na música popular seu território privilegiado para sublimação do conflito estruturante nas relações sociais e raciais, aos ouvidos daqueles que sobreviveram ao projeto fascista de Bolsonaro, o álbum explora os limites da inclinação conciliatória do gênero canção e soa como um aprofundamento consciente nas tensões raciais-sociais para emergir como a proposição de um caminho novo. Um caminho que além de pressupor a superação de um complexo de Pestana ou de um bovarismo brasileiro, como já escreveu Maria Rita Kehl, provoca a imaginação estética e política tantas vezes fossilizada pela reiteração acrítica da tradição. Citando mais uma vez Caetano, que por sua vez cita Machado de Assis: “Mas as polcas não quiseram ir tão fundo”.

Quem escreveu esse texto

Marcos Ramos

É professor na Universidade Nacional da Colômbia. Publicou Balaio de Gato (Artigos, 2022) e Anatomia da elipse: escritos sobre nacionalismo, raça e patriarcado (Cousa, 2018).