Desigualdades,

Repensando o desenvolvimento social

Ensaio do economista e professor Mário Theodoro coloca as questões raciais no centro do debate sobre o desenvolvimento social brasileiro

25maio2022

A sociedade desigual é um livro abrangente. Mário Theodoro reflete a respeito da relação entre racismo e desigualdade e destaca que as questões raciais deveriam estar no centro do debate sobre o desenvolvimento social brasileiro. São muitos os argumentos, baseados em uma vasta revisão da literatura, que o autor evoca para justificar sua posição. Em última instância, reside a convicção de que não há ainda força social capaz de gerar uma mudança significativa nos profundos legados deixados pelos séculos de escravidão. Pelo contrário: os grupos dominantes se apropriaram do Estado, naturalizando a desigualdade extrema, e a polícia limita a atuação dos movimentos sociais, o que torna cumulativas as desvantagens dos grupos discriminados.


A sociedade desigual, de Mário Theodoro

O racismo representa uma ideologia que hierarquiza os indivíduos e afeta a organização da sociedade. Até setores progressistas do Brasil acabam propagando a ideia de “democracia racial”, mesmo em um país em que a população negra apresenta as piores posições em quase todos os indicadores socioeconômicos.

Um dos alvos das críticas do livro é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para Mário Theodoro, a questão racial careceu de maior apoio. A lei de cotas, sancionada apenas em 2012, no governo Dilma, teve que ser negociada com o Ministério da Educação e com a bancada do Partido dos Trabalhadores e submetida à exigência de que contemplasse também o aspecto social, e não apenas o racial — algo lamentável, na visão do autor, que contesta a confiança que alguns militantes do antirracismo têm na esquerda. Para ele, grupos da esquerda não serão protagonistas na luta contra o racismo. No máximo, eles podem ser solidários. O protagonismo deve ser do povo negro.

O racismo atua de forma implícita ou explícita. A associação de valores negativos especificamente à imagem negra repercute em oportunidades perdidas e portas fechadas. Desse modo, para Theodoro, a desigualdade racial está diretamente ligada à ótica socioeconômica, mas também se observa no fato de que grupos raciais diferentes têm graus distintos de acesso aos serviços públicos, à segurança e à Justiça.

Em A sociedade desigual, Theodoro se debruça sobre diferentes visões teóricas acerca da relação entre a desigualdade social e as questões raciais. No marxismo, o foco é o antagonismo entre as classes sociais, em detrimento da diferenciação relativa aos indivíduos. Já na abordagem neoclássica mais conservadora, o autor destaca que a sub-humanidade embutida no pensamento racista não encontrava espaço. O economista sueco Gunnar Myrdal constatou essa inaptidão da ciência econômica ao chegar aos Estados Unidos e perceber que o instrumental analítico da época era incapaz de dar conta de uma comunidade em que os negros eram vistos como inferiores.

Segundo o economista, a perpetuação do racismo representa o elemento organizador da sociedade desigual

Demorou algum tempo até que a teoria neoclássica passasse a se dedicar à temática da discriminação, com contribuições de Gary Becker, Kenneth Arrow e Edmund Phelps. Entretanto, segundo Theodoro, essas contribuições sofrem por reduzir a desigualdade racial aos efeitos dos julgamentos individuais dos empregadores e desconsiderar que o racismo é algo mais abrangente, apresentando uma carga ideológica com reflexos sociais generalizados.

A partir da década de 80, houve uma forte expansão nos estudos sobre as grandes fortunas e a desigualdade econômica. Porém, apesar de importantes contribuições de autores como Simon Kuznets e Anthony Atkinson, a desigualdade racial permaneceu ausente nesses estudos. Theodoro critica Atkinson, bem como Thomas Piketty e Joseph Stiglitz, por não darem protagonismo à questão racial para explicar a evolução da desigualdade, mesmo em lugares que tiveram escravidão no passado.

Como, para o autor, a ciência econômica nunca deu atenção ao tema na profundidade que merece, seu próximo passo foi buscar instrumentais analíticos da sociologia e da ciência política que permitissem colocar o racismo no centro dos estudos sobre desigualdade. Theodoro cita as contribuições de Silvio Almeida e Marcelo Paixão. Ambos fazem parte da nova geração de pensadores negros que colocam as questões raciais como chave para entendermos a funcionalidade da desigualdade brasileira.

Projeto de nação

Theodoro afirma exaustivamente, no livro, que o racismo interfere na vida social, se alastra em vários setores e, assim, limita os avanços da população negra. Em determinado momento, o autor enfatiza que a preservação da desigualdade faz parte de certo projeto de nação e que a perpetuação do racismo representa o elemento organizador da sociedade desigual, atendendo aos interesses dos grupos hegemônicos. Desde que se resguardem seus interesses, afirma ele, as elites no Brasil frequentemente optam pela manutenção da iniquidade.

Para o autor, a mentalidade racista corrobora para que a pobreza e a miséria não tenham tanta visibilidade como problemas sociais. A hierarquização operada pelo racismo ordena os indivíduos de acordo com seu fenótipo, e aqueles com biótipo caucasiano branco possuem privilégios. Desse modo, a ideologia racista torna aceitável que indivíduos vistos como superiores alcancem posições privilegiadas, enquanto aos demais, considerados inferiores, restam os lugares subalternos. Mesmo no convívio diário, os negros são submetidos a uma série de tratamentos diferenciados. Atitudes discriminatórias podem se esconder na forma de “brincadeiras” que, muitas vezes, representam uma expressão do incômodo do agressor com a quebra da hierarquia racial.

Existem muitos processos sociais que levam à construção preconceituosa da imagem negra e que são passados de geração a geração, de modo que não é incomum encontrar crianças brasileiras de seis ou sete anos que expressam o racismo em falas e atos. Avanços substantivos poderiam ser atingidos se a Justiça brasileira não visse, recorrentemente, o racismo apenas como injúria racial.

Theodoro denuncia ainda que, apesar de ampla divulgação a respeito das desigualdades raciais, há pouco engajamento dos brancos. Além disso, aponta que negros que ascendem na escala social são discriminados simplesmente por estarem fora do lugar que lhes seria “natural”, tornando muitas vezes difícil para um negro se afirmar no cenário nacional.

Silêncio

Em vários momentos do livro, Theodoro questiona o grande silêncio em relação às consequências do racismo na sociedade brasileira. Desaparecem tantos negros brasileiros em dois anos quanto o número de soldados norte-americanos mortos em dez anos de guerra no Vietnã. Nos Estados Unidos, houve indignação quanto à guerra, e isso cindiu a sociedade. No Brasil, o que se tem é apenas silêncio — silêncio que também se observa sempre que a polícia invade casas nas favelas, sem mandado de busca, com tiros e violência.

Em A sociedade desigual, são comentadas também as importantes conexões entre as desigualdades no mercado de trabalho e o racismo. O Brasil foi o último país do continente americano a abolir a escravidão, e esse legado marcou a estrutura do mercado de trabalho. Em parte, isso ocorreu devido ao tratamento que foi reservado à população negra liberta. Um século antes da abolição brasileira, a Revolução Haitiana espalhou medo sobre as elites e governantes de países escravocratas das Américas, já que uma de suas marcas foi a eliminação de milhares de brancos. Assim, no Brasil pós-abolição, uma parcela da elite nacional via nas sanções econômicas impostas aos negros uma forma de forçá-los a voltar para a África.

Deu certo. Enquanto muitos negros com recursos financeiros voltaram para o continente africano e deram impulso à economia local, o Brasil renunciava a incluí-los na sociedade e, logo, impossibilitou a criação de uma classe média negra. A imigração europeia foi incentivada. Além de contribuírem para o ideal de branquear a população brasileira, os imigrantes ocuparam diversos postos de trabalho que antes eram destinados aos negros. Estes, por sua vez, foram para o subemprego e a informalidade. No início do século 20, os imigrantes representavam 90% dos trabalhadores da indústria de São Paulo, o que inclusive levou o governo Vargas a criar um decreto estabelecendo cotas de ao menos dois terços de trabalhadores brasileiros na composição dos quadros de empregados. Outro fato interessante lembrado por Theodoro é que, até poucos anos atrás, anúncios de emprego no país exigiam trabalhadores de boa aparência, algo que, no imaginário coletivo, tende a ser associado à fisionomia branca.

De forma geral, A sociedade desigual apresenta um bom encadeamento entre a análise dos desdobramentos históricos e as diversas reflexões teóricas. Um dos pontos positivos do livro é justamente o esforço realizado pelo autor de apresentar e discutir uma literatura bastante ampla. Isso ajuda o leitor a se informar sobre diversas visões relevantes para o debate racial brasileiro e nos faz refletir sobre aspectos sociais fundamentais. Adicionalmente, deve-se destacar que o autor usa uma linguagem acessível que toca o leitor em vários momentos da obra.

Negros que ascendem na escala social são discriminados por estarem fora do lugar que lhes seria ‘natural’

A estrutura do livro, contudo, talvez merecesse mais cuidado, já que há repetição em algumas partes e a linha argumentativa por vezes se torna um tanto difusa. Um pouco mais de objetividade na hora de desenvolver alguns argumentos deixaria a obra mais atraente. Entretanto, essa não seria uma tarefa trivial, dada a quantidade de autores com que Theodoro procurou dialogar.

Nos agradecimentos, Mário Theodoro destaca que sem música não há vida. Concordo, e não poderia deixar de destacar que, em vários momentos da leitura do livro, eu me lembrei do incrível álbum O canto dos escravos, interpretado por Clementina de Jesus, Tia Doca e Geraldo Filme.

Quem escreveu esse texto

Michael França

É doutor em teoria econômica e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper.