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Flores do Mal na caatinga

Uma leitura poético-científico-decadentista da epopeia de Euclides da Cunha sobre a destruição de Canudos

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

Para mim, uma edição perfeita de Os sertões, de Euclides da Cunha, deveria ter o texto apresentado na velha ortografia etimológica. Toda vez que escrevo Euclides da Cunha, sinto como uma traição, porque deveria ser Euclydes.

Explico. Euclides da Cunha era um amoroso dos modos preciosos como se escreviam as palavras. Sua carta a Domício da Gama (15 de agosto de 1907) traz uma passagem bastante conhecida: “Não sei se já aí chegaram notícias da Reforma Ortográfica… (Aí deixo meu espanto e a minha intransigência etimológica!). Realmente, depois de tantos anos de alarmante silêncio, a Academia fez uma coisa: trabalhou! Trabalhou deveras durante umas três dúzias de quintas-feiras agitadas e ao cabo expeliu a sua obra estranhamente mutilada, e penso que abortícia. Há ali coisas inviáveis: a exclusão sistemática do y, tão expressivo na sua forma de âncora a ligar-nos com a civilização antiga, e a eliminação completa do k, do hierático k (kapa como dizemos cabalisticamente na Álgebra)… Como poderei eu, um rude engenheiro, entender o quilômetro, sem o k, o empertigado k, com as suas duas pernas de infatigável caminhante, a dominar distâncias?”. 

Euclides da Cunha sentia que esses preciosismos de escrita manifestavam mistérios profundos vindos das eras mais remotas. Seu amor poético pela espessura complexa das palavras é coerente com seu estilo, que, por se mostrar enérgico, não é menos precioso. Ao contrário, sua força se nutre desse preciosismo, que não é mero ornamento da escrita, mas a investe como seu vetor constitutivo. Estamos nos antípodas das escritas bacharelescas porque, se Euclides da Cunha ama de paixão as formas rebuscadas, faz delas seu alimento substancial graças à precisão do estilo. Para um bacharel pomposo, a palavra “difícil” é um ornamento leviano, destinado a impressionar o leitor e oferecer louros fáceis de cultura ao autor. Para Euclides da Cunha, elas são agentes necessários, indispensáveis para a constituição de um discurso poderoso.

Pulsão rítmica

Os sertões é um épico não no sentido metafórico, mas um autêntico épico poético. Já se disse que é um texto inclassificável, o que é plena verdade. Parece pairar entre a prosa neutra, transparente, e a poesia inspirada e espessa. É poesia pela pulsão rítmica das orações e pelo metamórfico que possuem suas metáforas. Conheço uma tradução de Os sertões que atentou apenas para o sentido básico das frases e não para o estilo. O resultado foi um manual bastante tedioso.

Tomo um exemplo ao acaso, uma passagem da Travessia do Cambaio, que narra o segundo combate:

“Tingira-se a agua impura da Lagôa do Cipó e o sol batendo de chapa na sua superfície, destacava-a sinistramente no pardo escuro da terra requeimada, como uma nodoa amplissima, de sangue…”.1 

Ou, na página seguinte:

“E as balas desciam incessantes, aqui, alli, de soslaio, de frente, pelo centro da legião surpreendida, pontilhando-a de mortos — como uma chuva silenciosa de raios… Um assombro supersticioso sombreou logo nos rostos mais energicos, Volveram, attonitos, as vistas para o firmamento offuscante, varado pelos ramos descendentes das parabolas invisiveis, e não houve, depois, contel-os”. 

É fácil perceber, no primeiro trecho, o papel dos termos longos, a plástica esticada que oferece um ritmo lento à frase: basta ler em voz alta para sentir o andamento compassado e solene.

No segundo, há um começo agitado, que se entrecorta de termos breves (“aqui, alli, de soslaio, de frente,”) e, no final, a formidável força dinâmica e semântica de ascensão e descida, terminando na admirável horizontalidade: “E não houve, depois, contel-os”.

As mais de seiscentas páginas desse livro são, assim, maravilhosas de invenções poéticas. Os sertões é o grande, o imenso poema épico brasileiro.

Essa escrita poética está ancorada no seu tempo. Um período em que a literatura tomou inflexões de sensibilidade suntuosas e perversas — suntuosidade e perversão que não podem ser concebidas uma sem a outra.

Estamos nas águas do decadentismo e do simbolismo. A nódoa amplíssima de sangue no pardo escuro da terra é assustadora, porque é sangue de trezentos mortos ou mais, mas é também de formidável beleza pictórica. É evidente aqui o parentesco com Baudelaire (que, por sinal, se reitera ao longo de todo o texto): 

Delacroix, lac de sang hanté des mauvais anges, 
Ombragé par un bois de sapins toujours vert.

(Delacroix, lago de sangue assombrado por anjos maus/ Sombreado por um bosque de pinheiros sempre verdes.) O mundo visual de Euclides da Cunha é o de Delacroix, Baudelaire, Gustave Moreau, de O jardim dos suplícios, escrito por Octave Mirbeau, mundo das barbáries suntuosas, em que o sangue e o rubi se confundem e a violência tinge-se de sádico prazer estético. Não há melhor exemplo que o modo como se concluiu a expedição Moreira César. É uma das passagens mais prodigiosas desse livro prodigioso. Vale transcrevê-la. Os jagunços haviam vencido e se viam diante dos inúmeros cadáveres inimigos.

“Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginaes mais altos, dependuraram o resto de fardas, calças e dolmans multicores, sellins, cinturões, kepis de listas rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas…

“A caatinga, mirrada e nua, appareceu repentinamente, desabrochando numa florescencia extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dolmans e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscillantes…”

Volúpia estética

Como flores do mal, a caatinga floresce com os despojos coloridos dos mortos. Mallarmé, no poema “Hérodiade”, invoca a splendeur fatale, a embriaguez de uma volúpia estética, sensual e corrupta. São universos que compartilham da mesma natureza.

E compartilham, além do espírito simultaneamente pictórico, erótico e cruel, da mesma sonoridade que prevalece sobre o sentido. Mallarmé dispunha o sentido das palavras por trás de uma cerrada bruma sonora. Em sua poesia, a beleza dos sons, a interrogação do termo raro, cuja decifração é difícil, a contorção da frase, sua força de matéria espessa e colorida, superpõem-se às significações, que captamos de modo embaçado ou fragmentário. Quando, em Os sertões, deparamos com uma passagem assim:

“É um assalto subitaneo. O cataclysmo irrompe, arrebatadamente na espiral vibrante de um cyclone. Descolmam-se as casas; dobram-se rangendo, e partem-se, estalando, os carandás seculares; ilham-se os morros; alagoam-se os plainos…”

Sentimos que o fluxo musical nos chega antes do que a compreensão conceitual. Nisso percebemos melhor o ponto do qual parti, o amor de Euclides da Cunha pela grafia rara. Ela também age como instrumento de perturbação e estranhamento. 

Quando, a partir de 1866, Leconte de Lisle inicia a tradução dos clássicos gregos (Ilíada, Odisseia, os trágicos), não apenas rebusca o estilo, como procura formas arcaicas para denominar personagens, que já possuíam nomes consagrados na cultura moderna: Akhilleus, em vez de Aquiles (Achille, em francês), ou Iphigénéia, no lugar de Ifigênia (Iphigénie, em francês). É toda uma sensibilidade fin-de-siècle que impera nesses desejos de estranhamento. (Penso, e cabe aqui, pois pertence ao mesmo universo, nas observações que Borges faz aos refinamentos bordados por Mardrus em sua tradução de As mil e uma noites: “Nos risonhos parágrafos de Mardrus convivem Salammbô e Lafontaine, O manequim de vime e o balé russo”).

Acrescente-se a já mencionada fé nos poderes opacos da palavra. O celebérrimo soneto das “Vogais”, de 1871 ou 1872, escrito por Rimbaud  é uma bela chave para as “estridências estranhas”, pelos silêncios que mundos e anjos atravessam. Compreende-se assim o amor de Euclides da Cunha pelas consoantes duplas, pelos th, ph, pelos pobres k, y e w banidos do alfabeto. Compreende-se também sua afeição pelas palavras raras e difíceis.

‘Os sertões’ não é um romance. Quer-se história, sociologia, geologia, geografia, botânica, climatologia, antropologia: uma síntese científica 

Podemos juntar a tudo isso o fascínio de Euclides da Cunha pela ciência. Monteiro Lobato, em seu ensaio sobre Euclides da Cunha, ressaltava:

“A enxertar na pobreza do vocabulário beletrístico uma quantidade de termos técnicos de alto efeito analógico — imprimadura, jusante, a montante, incoercível… A introduzir todas as ciências na literatura — até a Geologia, coisa que os nossos antigos vates de cabeleira desconfiavam ser alguma irmã esquecida do velho lote das musas gregas. A arremessar à cara do leitor incauto nomes-bombas: Maudsley, Gumplowicz…” 

Os sertões não é um romance. Quer-se história, sociologia, geologia, geografia, botânica, climatologia, antropologia: uma síntese científica. Estão lá os aspectos físicos e humanos de uma região. A fôrma do pensamento — mas é preciso dizê-lo? — é o positivismo francês, é Comte e Taine. Ocorre que no espírito literário da época as ciências penetravam como instrumento artístico. Esses amálgamas são complexos, e o que acabo de afirmar parece contradizer as classificações dos manuais, sempre pressurosas em distinguir os “movimentos” literários em compartimentos estanques. 

Falei em simbolismo e decadentismo: não são eles movimentos que recusam o racionalismo científico? Mas basta a leitura de qualquer obra de Zola, produto de seu projeto científico, para percebemos o quanto tudo isso se contamina e, de outro lado, o quanto a écriture artiste dos Goncourt penetrou os decadentes e simbolistas.

No caso de Euclides da Cunha, a ciência possui três papéis distintos.

O primeiro é o impulso explicativo rigoroso. Euclides da Cunha vai para Canudos enviado por um jornal. Seu papel seria fazer um relato de acontecimentos. Mas esses mesmos acontecimentos o interpelam: como compreendê-los? Volta-se então para um arsenal teórico que era o de seu tempo. Busca o fundamento dos autores, que lhe confirmam garantias científicas de suas interpretações.

O segundo é o aparato linguístico que lhe oferece a ciência. Ele se insere no próprio espírito da escrita. As palavras científicas ou técnicas, raras, esdrúxulas, que Lobato já assinalara, são fonte suplementar para essa poética da sonoridade e do estranhamento a que me referi: “Estereographa-se, nas placas rigidas dos afloramentos geneissicos…” . Acrescentam-se os nomes dos sábios, eles próprios com sonoridades “bárbaras”: Maudsley, Gumplowicz, mas ainda Buckle, Huxley, Hartt, Wollaston, e o que mais seja, de fato “nomes-bomba” que explodem no espanto e na ignorância do leitor.

O terceiro é o distanciamento do cientista. A rudeza franca e sem pudores da ciência, sua insensibilidade objetiva e fria proporcionam alimento para as volúpias cruéis, legitimadas por verdades implacáveis: basta ler a passagem dos “Higrômetros singulares” na terceira parte de “A terra”.

Condensador de civilizações

Temos, portanto, uma epopeia poético-científico-decadentista, em sua fenomenal complexidade deitando raízes no universo mental de seu tempo. Euclides da Cunha, porém, com esse material amalgamado, cria uma obra-prima que não possui equivalente nas literaturas internacionais. É um unicum, um livro imenso, pelo seu alcance analítico e pela especificidade literária. Decerto, existiram livros que se quiseram grandes instrumentos interpretativos, lembremos de Facundo, escrito por Domingo Faustino Sarmiento, que Euclides da Cunha conhecia bem, e desses admiráveis projetos condensadores de civilizações, como A civilização da renascença italiana, por Burckhardt, ou O outono da Idade Média, por Huizinga.

A diferença de Os sertões para com esses títulos excelsos é que nenhum deles possui a mesma natureza da escrita euclidiana, que coordena beleza estilística e exatidão, unindo-as, fundindo-as. Há algo do rigor presente nos grandes autores latinos, em que a frase surge como que animada por uma incandescente engenharia verbal. 

Um aspecto crucial vem do fato de que essa escrita, assim constituída, subverte as crenças conceituais de seu autor. Euclides da Cunha segue as teorias racistas “científicas” de seu tempo. Sabe perfeitamente onde estão a civilização e a barbárie. Está seguro de seus instrumentos interpretativos, mesmo os mais envelhecidos e odiosos para nós, hoje. 

Mas Euclides da Cunha possui uma língua supremamente heurística. É por ela, de modo insidioso, que ele subverte e se subverte. Sua escrita se nutre de uma fusão sui generis de lirismo e de precisão, que permite ao autor, para além da pura consciência conceitual, atingir uma formidável inteligência analítica. É sua escrita que se revolta contra qualquer definição, ou toda classificação sumária. Os parágrafos inflam até a pausa final, até o silêncio recorrente das reticências, mas o autor move frases agudas, incisivas, em que apenas a palavra do calibre justo pode se encaixar. Isto é essencial: a frase se anima “por dentro”, ao suscitar desde as massas grandiosas da matéria e da humanidade até o menor objeto, graças à exigência daquilo que é suficiente e necessário.

Euclides da Cunha rejeita o fanatismo dos jagunços, mas, ao descrevê-lo, suas frases evidenciam admiração por eles — pela coragem, força e lealdade que possuem. Crê que o exército nasce da civilização, mas ao narrar suas patéticas estratégias, demonstra a estupidez e a ferocidade das forças republicanas. Opõe essa imbecilidade às astúcias, à inteligência e à adequação natural dos insurretos, porque suas frases as constataram, analisaram e se obrigaram pelo rigor. Delineia o Conselheiro com grandeza, e brotam, como malgrado o próprio autor, expressões que assinalam o rigor e a pureza dos ideais daquele líder místico, contrastando com a barbárie civilizada e racionalista de sua exumação e decapitação.

Euclides da Cunha contradiz sua própria percepção da história, levando o leitor a compreender tanto o misticismo fanático quanto a modernidade cega, recusando ambos. Embaralha as categorias que lhe serviam de instrumento, terminando pela reviravolta de seus próprios conceitos mais fundamentais.

Dou um exemplo que me parece ser crucial. Euclides da Cunha opõe aquilo que acredita ser uma raça sertaneja pura (é à sua destruição que se refere como um crime a ser denunciado) à mestiçagem geral do Brasil, que ele condena. Mas insiste sobre a diversidade dos tipos raciais das mulheres prisioneiras em Canudos — e não poderia fazer de outro modo sem desrespeitar a dialética rigorosa entre observação e escrita. Ao contrário, na fase final da luta, quando os soldados se mostram, “immundos, sem bonets, sem fardas, cobertos de chapéos de couro ou de palha, calçando alpercatas velhas…” , torna-se impossível distingui-los dos sertanejos. 

Henri Focillon escreveu sobre a inteligência das mãos. Os sertões demonstra como é poderosa a inteligência das mãos que escrevem, e como ela pode vencer o pensamento abstrato. Em Os sertões a escrita devora o conceito, para impor-se a si mesma como inteligência aguda e dominante.  

Nota 
1. Permito-me transcrever as citações seguindo a grafia original de um velho exemplar que pertenceu a meu avô. cunha, Euclydes da. Os sertões (Campanha de Canudos). 15ª edição corrigida. Edição definitiva de accordo com as emendas deixadas pelo autor. Livraria Francisco Alves, Paulo de Azevedo e C., 1940.

Quem escreveu esse texto

Jorge Coli

É autor de O corpo da liberdade (Sesi-SP Editora)

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.