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A sintaxe de Euclides

Após ter obra poética reunida, volume traz ensaios e outros textos em prosa do autor de "Os sertões"

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

E pensar que as primícias da prosa ensaística de Euclides foram identificadas pelos autores como procedentes do ano de 1883, datando de seus dezessete anos: umas poucas linhas, encimadas, significativamente para quem seria tão preocupado com o estilo, pelo título “Sobre a sintaxe”….

Esta é uma das muitas revelações desse livro, que é o resultado, ainda parcial, de uma pesquisa exaustiva de três dedicados euclidianistas vasculhando arquivos d’aquém e d’além-mar, fazendo o levantamento de manuscritos e fragmentos de versões descartadas. 

Esse volume prendeu-se a um duplo critério. Primeiro, estampar os inéditos em prosa que ficaram em manuscritos ou que não chegaram às páginas de livros publicados: estes ocupam a primeira parte, sob o título “Dispersos”. Segundo, trazer os esboços que foram descartados dos três volumes em que o próprio Euclides compilou seus ensaios, e que são Contrastes e confrontos, Peru versus Bolívia e À margem da história: estes ocupam a segunda parte, sob o título “Reunidos”. Os autores voltaram às cadernetas de anotações em que Euclides registrou a maioria dos materiais que iriam compor esses três livros, após boa parte ter passado por publicação em periódicos.

A substanciosa “Introdução” explicita critérios, discute partidos tomados e avança hipóteses, movendo-se à vontade pelas fontes preexistentes e seus arredores. A ela se soma o aparato bibliográfico cobrindo 24 páginas, embasando o trabalho dos autores.

Essa vem a ser a segunda realização de um projeto de publicação das obras completas de Euclides — e, esperamos, definitiva. A primeira — e até agora única — publicação sistemática de inéditos em prosa de Euclides foi feita pela edição da Obra completa (1966) da Aguilar. Em seu conjunto, fruto de uma plêiade de intelectuais dos mais capacitados à época, quem se encarregou da tarefa de preparação dos inéditos foi um grande euclidiano, Olímpio de Souza Andrade. 

A tarefa não poderia caber a melhores mãos que as suas, pois ele já era o autor de um livro que abriu caminhos com base justamente em pesquisa de inéditos, História e interpretação de “Os sertões” (1960). Depois publicaria em separado alguns poucos inéditos restantes, inclusive a famosa Caderneta de campo, apetrecho profissional de engenheiro em que Euclides fez as primeiras anotações ao vivo, à vista de Canudos, em 1897, que resultariam em Os sertões

Preciosidades 

Encontram-se no Volume 1 da Aguilar as seguintes partes, com a chancela de Olímpio: “Outros contrastes e confrontos”, “À margem da geografia” e “Fragmentos e relíquias”, ocupando as páginas de 388 a 533 — ou seja, cerca de uma centena e meia de páginas. Os títulos atribuídos parafraseiam pelo menos dois dos livros publicados por iniciativa de Euclides: Contrastes e confrontos e À margem da história. Foram agrupados por afinidade, portanto, enquanto o terceiro título se mantém mais impreciso. Em todo caso, é uma quantidade impressionante de páginas, em que se encontram tanto manuscritos quanto publicações em periódicos ou ainda versões descartadas. Seria interessante saber o que não é ao pé da letra inédito, porque já saiu na Aguilar, como também o que já foi antes aproveitado parcialmente por Euclides, como é o caso das “sobras” daqueles três livros por ele mesmo preparados e que saíram nos “Reunidos”. Ou quem sabe essa será a missão de uma futura edição crítica. 

Essa é a segunda realização de um projeto de publicação das obras completas de Euclides — e, esperamos, definitiva

Mas, como sabem todos os que se aventuram por tais paragens, a edição da Aguilar deixa muito a desejar. Por um lado, somos-lhe gratos porque recolheu uma enorme quantidade de material perecível, que, por ser aparentemente de escassa importância, tende a desaparecer. Quem trabalha com inéditos e esparsos lamenta deparar com essas lacunas, que nem precisam de tanto tempo assim para se instalar. Mofo, traças, cupins, goteiras, umidade, má qualidade do papel, péssimas condições de preservação, descaso, inconsciência, às vezes mesmo uma tesoura — caso de uma crucial carta de Euclides, escrita em seus últimos dias de vida — isso para não falar em vandalismo e roubo deliberado. E por aí vai. 

Tudo conspira contra a permanência dessas frágeis preciosidades que só estudiosos sabem apreciar e que podem parecer frivolidades para o leigo. Assim, agradecemos a empreitada da Aguilar, que teve o mérito de salvar tanta coisa da destruição certa. Mas, por outro lado, como não é segredo, a edição é falha, cheia de elipses e de superposições: não são gralhas minúsculas, são problemas editoriais de amplo porte. Em suma, com todas as suas insuficiências, a edição da Aguilar é aquela com que contamos até agora. Por isso somos obrigados a trabalhar com ela e, ainda mais, a ser-lhe gratos por existir.

São problemas que esta edição finalmente vem sanar, ou está em vias de sanar, porque os autores já enfrentaram a poesia e agora com esse volume começam a enfrentar a prosa. Descortina-se muito trabalho, mas a competência dos autores se vai sair com galhardia. É o que todos esperamos, para ter enfim as bases para uma edição crítica do restante da obra de Euclides, que não é só o autor de Os sertões. Essa parte restante é uma espécie de “prima pobre” a merecer maiores cuidados, que, com esse livro que se segue à obra poética, começam a dispensar-lhe.

Os autores já estavam bastante enfronhados nos inéditos de Euclides, como demonstraram ao publicar sua Poesia reunida (2009). Assim, prestam enorme serviço aos estudos brasileiros e ao conhecimento da obra de um de nossos mais relevantes escritores.  

Quem escreveu esse texto

Walnice Nogueira Galvão

Organizou a edição crítica de Os Sertões (Ubu), de Euclides da Cunha.

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.