Literatura brasileira,

Cronista lírico

Poeta performático das ruas, Miró da Muribeca saiu da periferia recifense para tornar-se referência na poesia urbana nacional

01ago2021

Desde que conheceu a poesia, Miró nunca mais a deixou. Pelo contrário, fez dela sua maneira de enxergar o mundo, seu meio de expressão e de sobrevivência diária. Esse primeiro encontro aconteceu em meados dos anos 80, quando ainda trabalhava na casa do artista Maurício Silva. Lá, foi apresentado a um poema pela primeira vez. Dali por diante, convivendo com a cena artística, não demoraria para que o filho de dona Joaquina também se arriscasse a costurar seus próprios versos, urdindo o que lhe fora mostrado às suas referências e vivências pessoais.

Certa vez, João Flávio Cordeiro da Silva — nome de registro de Miró — estava a caminho do Centro do Recife para, a pedido da mãe, postar uma carta nos Correios. Avistou uma abordagem truculenta da polícia a alguns jovens e aquele episódio de violência urbana o marcaria profundamente. Após enviar a correspondência, sentou-se para refletir e observar a paisagem da cidade, à beira do rio Capibaribe. Logo perceberia que o relógio localizado acima do prédio dos Correios, na avenida Guararapes, apontava com exatidão quatro horas da tarde. Sua mãe, que o esperava em casa, aguardaria mais um pouco. A partir daquela sequência de acontecimentos e de sua verve poética, João Flávio escreveria “Quatro horas e um minuto”, um de seus primeiros poemas. Em seguida, ele correu para mostrá-lo aos amigos.

“Quatro horas e um minuto” faz parte de Quem descobriu o azul anil? (1985), o primeiro livro de Miró da Muribeca, publicado de forma independente. Nos anos que se sucederam, após vários textos escritos e declamados, títulos lançados, oficinas realizadas, viagens, amizades e amores vividos, esse poema chegaria às páginas de Miró até agora (2013), coletânea de poemas do pernambucano com uma seleção de textos registrados até 2012. Com edição de Sennor Ramos, organizador do “ponto de cultura virtual” Interpoética, o livro saiu inicialmente por financiamento público. Em 2016, a obra foi reeditada, tornando-se um dos títulos mais vendidos da editora Cepe, já com cinco tiragens esgotadas, ou seja, mais de 5 mil exemplares nas mãos de leitores.

Elementos que fissuram o tecido urbano, além do amor e outros demônios, habitam os versos de Miró

Quem já assistiu a Miró se apresentando, interagindo com o público ou vendendo seus livros debaixo do braço em ruas ou eventos literários do Recife, de São Paulo ou outra cidade do país, com o seu carisma e performance inesquecíveis, deve imaginar como ele próprio colaborou para que esses números fossem alcançados. Para um artista oriundo da periferia recifense, que escreve continuamente desde os anos 80, publicando a maior parte de seus títulos de forma independente e contando com a colaboração de amigos, esse expressivo número de leitores espalhados pelo país é uma conquista não só para a trajetória do poeta, mas para toda a poesia brasileira contemporânea.

“Miró consegue dar voz a cada canto da cidade. É um poeta necessário para a poesia brasileira. Ele tanto é para dentro, com uma poesia intimista, como também é para fora”, diz a poeta Cida Pedrosa, autora de Solo para vialejo (2019) e amiga do pernambucano. É ela quem assina o prefácio de O céu é no sexto andar (2021), novo livro de Miró, com poemas produzidos entre 2017 e 2018, período em que viveu entre o Hotel Central (construção de 1928 que ilustra a capa), no bairro da Boa Vista, e o Instituto Raid, localizado em Sítio dos Pintos, onde atualmente vive. O lançamento acontece virtualmente em 6 de agosto, dia em que Miró completa seus 61 anos de idade.

Entre os bairros da Região Metropolitana do Recife que Miró já morou, estão Santo Amaro, Bomba do Hemetério, Ibura, Muribeca e Boa Vista. Viveu também em outras cidades, como Fortaleza (CE), Petrolina (PE), Visconde de Mauá (RJ) e São Paulo (SP). Referências à capital paulista – como também a outros lugares por onde passou – aparecem em sua obra em diversos momentos. “Morei em São Paulo durante oito anos, tive um grande amor por lá. Morei do Jardim Miriam à Higienópolis, então, conheci a classe média e a periferia da cidade. Eu me tornei mais urbano, mais feroz com a linguagem urbana, quando fui morar em São Paulo”, afirma.

O escritor Wellington de Melo está em processo de produção de um perfil literário de Miró, que será “menos um registro de fatos de uma vida do que a tentativa da captura da memória”, a ser publicado pela Cepe, mas ainda sem data de lançamento. “Conheço Miró pessoalmente desde 2010. A gente se aproximou quando fiz a edição do aDeus (2015)”, conta o autor de Estrangeiro no labirinto (2013) e editor da Mariposa Cartonera. “Miró tem uma visão muito apurada da realidade e uma capacidade de transformar isso. Ele quer brincar com a linguagem e consegue fazer isso muito bem”, complementa.

Corporalidade

Elementos que costuram e fissuram o tecido urbano, além do amor e outros demônios, habitam os versos de Miró. Ele, inclusive, se reconhece mais enquanto “cronista lírico do cotidiano” do que propriamente poeta. “A minha poesia é da rua, porque me apresentava na rua. Quem me lê não precisa ir buscar no [dicionário] Aurélio. O gari, o engenheiro civil, a enfermeira, o dono de bar entendem a minha poesia. Ela está aqui, na tua cara, na tua frente, na avenida”, diz ele.

Para além de seus escritos que estão em livros como São Paulo é fogo (1987), Onde estará Norma? (2006), dizCrição (2012) e outros, a relação com a performance também tece parte relevante de seu fazer artístico. A corporalidade com que dá forma a seus textos, ele conta ter sido impulsionada por uma apresentação do poeta e compositor Manuca Almeida, radicado em Juazeiro (BA), que veio declamar, no palco do Teatro Valdemar de Oliveira, na Boa Vista. A partir disso, Miró, que já tinha ritmo de leitura, decidiu aprimorar seu potencial cênico para quando pusesse os poemas na voz. Essa sempre foi uma de suas alternativas poderosas para conquistar leitores e vender livros.

“Lembro que Manuca pegou o teatro inteiro e tomou nas mãos dele. E sem microfone. Eu fiquei encantado. Quando o vi, pensei: ‘É isso! Vou me soltar’. Naquela época, ele entregava uma seda Colomy carimbada com os dizeres: ‘Se alguém lhe amar como eu, não é alguém, sou eu’. Ganhei uma”, conta Miró.

Fã de Djavan, Fernando Mendes, Tim Maia, Reginaldo Rossi, Miró também é grande admirador da poesia de Drummond, Mário Quintana e Ignácio de Loyola Brandão, que diz ter modificado sua “forma”, após ler o romance Não verás país nenhum (1981).

Em sua juventude, pensou em seguir carreira como jogador de futebol ou como jornalista. A maneira como Miró colhe acontecimentos urbanos, compreende seus personagens e leva isso para o corpo de seus textos acaba sendo seu modo de reportar fatos e instigar reflexões sociais a quem os lê ou escuta. Essa forma de trazer o que ocorre nas frestas da urbe para o que escreve acessa, muitas vezes, mais a sensibilidade sobre a nossa sociedade do que diversos textos jornalísticos. Do lado futebolístico, embora seja torcedor do Sport, o apelido com que ficou conhecido veio de um jogador do Santa Cruz, time adversário. Como sempre foi bom de bola, na década de 80 João Flávio era comparado a Mirobaldo, ídolo tricolor nos anos 70. Não demoraria para que fosse apelidado de Mirobaldo pelos amigos e, em seguida, Miró, como assina até hoje seus livros.

“Minha mãe me dizia assim: ‘Cuide bem da única coisa que sabe fazer, porque você não tem coragem de carregar um botijão de água nas costas. Então, cuide dessas coisas que você diz e escreve, meu filho, porque tem gente que gosta’”, conta, entre risos. Dona Joaquina nasceu em São Bento do Una (PE) e criou seu filho sozinha na capital, sem a presença do pai.

Essa foi a primeira entrevista de Miró após sua internação hospitalar, em novembro, por conta de complicações da Covid-19 e outras comorbidades. Foi realizada na Casa Astral, espaço de fomento artístico no bairro do Poço da Panela. Atualmente, ele vive no Instituto RAID, onde está realizando tratamento de saúde e retomando suas atividades relacionadas à poesia, que é o que realmente ama fazer na vida. Com o início da pandemia, ele, que, desde os anos 1980, decidiu viver integralmente de sua literatura, vendendo seus livros e fazendo oficinas, tem precisado de colaboração financeira e apoio para custos como cuidadores diários e itens de higiene pessoal.

Os livros de Miró podem ser comprados no Instagram de autor (@mirodamuribeca). As obras aDeus e O penúltimo olhar sobre as coisas estão à venda no site da Mariposa Cartonera e o mais novo livro O céu é no sexto andar será vendido através da editora Claranan. Para nossa alegria, ele nunca deixou de seguir o conselho de sua mãe e, desde então, vem cuidando da poesia, onde quer que o poeta esteja. Leiam Miró! 

Este texto foi feito com apoio do Itaú Cultural

Quem escreveu esse texto

Erika Muniz

É jornalista cultural.