Literatura brasileira,

Um poema-travessia

Ganhadora do Jabuti de Livro do Ano, Cida Pedrosa fala sobre o prêmio, a infância e o imaginário em torno do Nordeste

01abr2021

Com uma trajetória de mais de quatro décadas dedicada à poesia e à luta feminista, Cida Pedrosa, vencedora de dois prêmios Jabuti, nas categorias Livro do Ano e Livro de Poesia, lançou no ano passado Estesia, e-book com haikais e fotos produzidos durante a pandemia, pelo selo independente Claranan. Neste ano, a poeta bodocoense tomou posse como vereadora eleita do Recife, pelo PCdoB. Desde o final da década de 1970, ela vive na capital pernambucana, mas a verdade é que Cida nunca deixou Bodocó de vez. Sempre que é possível está por lá, e foi justo em uma de suas travessias pelo sertão nordestino que nasceram os versos de Solo para vialejo (Cepe, 2019), seu premiado livro sobre o qual comenta em entrevista à Quatro Cinco Um. Nessa conversa, a autora fala sobre sua infância, a recepção após a premiação literária e o imaginário em torno da região Nordeste.

Cida, conta algumas de suas memórias da infância em Bodocó, com seus pais, Francisco e Isabel, e seus irmãos.
Sou a 15ª filha de uma família de quinze. Somente um [irmão] morreu aos dois anos, ele era o segundo filho e chamava-se Franklin. Meu pai e minha mãe não tiveram a tristeza de enterrar um filho crescido antes de partirem. Naquele tempo, era comum ver famílias no Sertão que tinham tido quinze filhos, mas que criavam só três ou quatro, porque as crianças morriam de diarreia ou desidratação. Mamãe era uma mulher que entendia de ervas, chás, remédios e cuidados caseiros. Ela era minha bruxa particular. No Sertão de Pernambuco, nós sobrevivemos a essa dramática estatística da época, na década de 1970. Mas tenho 21 irmãos, porque tem também os filhos de meu pai com Isaura. Costumo dizer que tive muitos pais e mães porque sou a mais nova. Quando minhas irmãs mais velhas casavam e saíam, eu sofria muito, convivo com perdas há muito tempo. Talvez uma saudade e uma ausência me comovam o tempo inteiro, porque também tive que partir para estudar na cidade. Em determinado momento, não tinha mais escolaridade no sítio, nem como ir e voltar com meus irmãos. Assim, também afastei-me de mamãe e papai. Isso foi outra grande tristeza, porque só os via nos finais de semana.

Aprendi a ler com minha mãe, que ensinou a todos nós. Ela nunca havia ido para a escola, mas aprendeu a ler com uma tia. Meu pai só fez o primeiro ano primário, mas a leitura sempre foi importante na minha casa. Ele trazia cordel da feira e também nos contava histórias incríveis. Tinha ainda Seu José Pedro, que acho que é a melhor lembrança da minha vida. Ele era carpinteiro, fazia cochos [vasilhas feitas em madeira para alimentar animais] e contava histórias muito bem. Quando ele ia para o sítio, todas as crianças da casa e dos arredores se mobilizavam. Quando chegava a noite, a gente acendia uma fogueira e botava um banco. Ele pulava naquele terreiro, subia e fazia gesticulações para contar as histórias. Era um saltimbanco! Imagina que conheço vários cordéis de Leandro de Barros [grande cordelista paraibano], como A princesa da perna fina, por exemplo, porque ele nos contava. Provavelmente, tinha ouvido em cordel, se apropriava e contava como narrativa, não com métrica e rima. Acho que as melhores memórias da minha infância são as contações de histórias dele. E eu ainda vou contar isso em um poema.

A literatura, então, chegou através da oralidade e depois veio a escrita?
Foi sim, tanto que acho que toda a minha literatura tem uma pegada oral. Escrevo e leio em voz alta, para ver se está cabendo no ouvido. Quando um poema e um verso não cabem no ouvido, eu os modifico. Seja um verso com ou sem métrica, com rima ou sem, tenho uma necessidade enorme de escutá-lo em voz alta. Isso tem a ver com a tradição oral da literatura, que chega para mim primeiro. Minha irmã Flor Pedrosa mandava para mim caixas de livros, através de umas carretas que iam e vinham [entre Recife e Bodocó] levando algodão e mantimentos. Eu recebia dez, doze livros de uma só vez e também gibis. Então, sempre tive acesso à leitura. Quando fui crescendo, a biblioteca da minha escola também era muito boa. Nas férias de julho e de final de ano, que a gente ia para o sítio e ficava o tempo inteiro lá, eu não chegava com menos de dez livros debaixo do braço. Não tinha energia, nem televisão, as brincadeiras eram com as bonecas de sabugo. As notícias chegavam pelo rádio, que tinha um lugar privilegiado na sala. Ele ficava em uma mesinha com uma toalha bem bonita bordada em ponto de cruz. Todos ouviam rádio juntos. Então, tenho uma vivência muito antiga. Mais antiga do que muita gente que hoje tem setenta anos no Recife, porque não tive acesso cedo à televisão. Em Bodocó, TV só foi chegar depois que eu saí de lá, em 1979. A vivência lúdica da contemplação, do viver cada dia por vez, do aprender a paciência, do não ter altos desejos de compor, é muito a minha formação. É a coisa que eu mais gosto de mim.

Como é para você, mulher, nordestina, sertaneja e comunista, vencer o Prêmio Jabuti de Literatura nas categorias poesia e livro do ano com o Solo para vialejo?
Primeiro, fiquei muito abismada porque achava que estava concorrendo à [categoria] de poesia, mas não à de livro do ano. Esse livro me deu muito trabalho emocional e intelectual. Agora, estou em Gravatá (PE), na casinha onde mais escrevi esse livro. Reescrevi uma quantidade de vezes porque queria afinar minhas memórias com uma escrita que não traísse nem aquilo que aconteceu nem a linguagem literária. Tinha que ter a emoção da memória, mas também uma linguagem delicada e tecnicamente harmônica como as memórias ali contadas. Nesse livro, trabalhei conteúdo e estética permanentemente. Foi um trabalho de ourivesaria, de bordado, como se estivesse bordando algo muito delicado. Fiquei muito orgulhosa de nós, porque sou mulher, nasci em Bodocó, sou comunista e é um momento em que as esquerdas estão com muita dificuldade de se organizarem estruturalmente para derrubar o obscurantismo desse governo autoritário.

‘São várias periferias, e é como se o prêmio tivesse saído para a maior periferia’

Fiquei muito feliz porque ser do Sertão é nascer com a boca aberta para beber água com medo de morrer de sede. Já se nasce na luta. Sou a primeira pessoa a ganhar o prêmio [de livro do ano] em Pernambuco, então, queria falar de várias periferias. Existe uma espécie de colonialismo intelectual da Europa com relação ao Brasil; de São Paulo e Rio com relação ao Nordeste; de nós que moramos no Recife, que é na beira do mar, com relação ao Sertão. São várias periferias e é como se o prêmio tivesse saído para a maior periferia. Sou mulher, sertaneja, editada por uma editora pública, que não é do eixo Rio-São Paulo. Sou comunista e uma escritora alternativa, há muito pouco tempo que comecei a publicar por editora. Meus livros sempre foram publicados com as minhas próprias expensas, vendidos mano a mano. É isso que acho bacana.

Como foi participar do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco, que você se refere como a sua “cidadania literária”?
O Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco é, de verdade, a minha “cidadania literária”, porque venho de uma construção coletiva. Alguém que nasce em uma família de quinze irmãos é coletivo por natureza. Escrever é um ato muito solitário, mas, com essa turma, até produções coletivas fizemos. Sentávamos em roda, um começava fazendo um verso, o outro completava com outro. Nessa experiência com o Movimento de Escritores Independentes, o exercício de criação, difusão e impacto da literatura com o público foi fantástico. Até então, tínhamos uma cena bem comportada. Tinha a Academia Pernambucana de Letras, tinha a turma da Geração 65, que era bacana, mas bem comportada. A gente chegava dizendo: “Não, não é isso, a gente tem que levar a poesia ‘onde o povo está’, como diz Milton Nascimento”. Durante seis anos consecutivos, fizemos recitais, aos sábados, na Rua Sete de Setembro [conhecida pela efervescência cultural]. Era uma coisa completamente democrática. Quem passava e queria recitar poesia, também podia. Subia o cordelista, o poeta romântico, a poetisa erótica, todo mundo tinha espaço. O movimento não é uma construção estética, é uma construção sociológica, por isso digo que é minha “cidadania literária”, e também a territorialização da literatura alternativa do Recife.

De onde vieram as primeiras ideias desse poema-travessia que é Solo para vialejo?
Gosto muito do que você disse, de ser um “poema-travessia”. No prefácio, Mariana Ianelli chamou-o um “livro-poema” e achei perfeito. É uma travessia mesmo. Um atravessamento na memória e na história. É uma diáspora ao contrário. Viajo muito para o Sertão e sempre levo papel e caneta no carro porque, às vezes, vem uma ideia e anoto. Estava indo de Bodocó para o Crato (CE), e, no meio do caminho, tem Exu, terra de Luiz Gonzaga. Tive um alumbramento, peguei o papel que estava no porta-luvas e anotei dez páginas de um fôlego só! Quando cheguei ao Recife, passei tudo para o computador e li para o meu filho, Francisco, e para André Monteiro, que já está no céu dos poetas. André me disse: “Tia, isso dá palco. É um poema para a gente ler”. Francisco me disse: “Mainha, isso dá pano para manga para ser um longo poema”. Quando escrevi a primeira parte, minha ideia por muito tempo era que o título seria Canto para Muddy Water. Só que quanto mais escrevia, mais achava esse título redutor. Era mais do que a minha relação com o blues. Como é um poema único, tem essa ideia de solo mesmo e também de um instrumento que meu pai tocava, e que eu ganhei dele. Esse é um instrumento-síntese desse livro para mim, porque para tocar gaita, você usa os lábios e as mãos o tempo inteiro. Esse é um instrumento que cabe quase dentro da boca. É quase uma coisa física o que um tocador de vialejo tem pelo seu instrumento. Eu tive uma relação física ao escrever esse livro, de exaustão e horas a fio. Levei o livro para a gráfica mudando, aprimorando. Até que chegou um momento que Wellington [de Melo, poeta e editor] disse: “Vamos editar!”.

Como a fotografia da capa se relaciona com Solo para vialejo?
A relação da fotografia com o livro é bem forte. Muito antes de escrevê-lo, eu já a procurava, porque um amigo tinha me dito que existia uma jazz band em Bodocó. Então, endoidei querendo saber sobre isso. Várias vezes fui à casa do filho do maestro e, em uma das vezes, ele disse que tinha essa foto. Peguei o álbum de fotografias dele e, no lugar dessa foto, estavam aquelas cantoneiras de fotos antigas. Ele fez: “Não sei a quem entreguei, mas ela existe”. Naquela mesma viagem que fiz para o Crato, estava indo para Nova Olinda, que é a terra de Espedito Seleiro [artesão, mestre da Cultura no Ceará], para ver os fósseis da Chapada do Araripe. Aquele lugar já foi ligado à África quando os continentes eram um. Escrevi essas dez páginas numa vibe de estar indo para um lugar original, seminal.

Quando saio do Crato e vou para Petrolina, na casa de Virgílio Siqueira, um grande poeta nascido em Ouricuri que mora lá, contei essa história de busca da foto. Davi, o filho dele, que por acaso é neto de Raimundo Maciel, um dos músicos da banda, disse que tinha a foto. Eu e meu companheiro, que éramos curadores, fomos lá para contratá-lo para o evento Jornada Literária do Sesc. Veja as coincidências mágicas! Juntei as dez laudas escritas do poema com a foto e, em alguns momentos, descrevo a história da foto no poema. Falo dos “três cavaleiros emplumados” e faço a denúncia que ninguém sabe a linhagem dos músicos negros que tocam banjo na fotografia.

Você tem mais de quarenta anos de atuação artística e dez livros lançados. Queria que comentasse sobre algumas de suas outras publicações, como Claranã (Confraria do Vento, 2015), As filhas de Lilith (Claranan, 2009) e Gris (Cepe, 2018).
A partir de As filhas de Lilith, decidi que, a cada livro, construiria um conceito em torno dele mesmo. Não tinha tanto essa preocupação antes, conseguia misturar mais. Eu separava por subtítulos, mas As filhas de Lilith me deu esse norte. Nele, decidi escrever um abecedário de mulheres e pude me debruçar sobre duas temáticas muito fortes da minha literatura: o feminismo e o erotismo. Acho esse livro muito adiante do que está acontecendo hoje, porque todo mundo está escrevendo a poesia erótica, o feminismo, mas, quando eu o lancei, em 2009, isso não se discutia.

Claranã foi a construção de todos os sons da minha infância. Ouvi muita cantoria, li muito cordel, ouvi muito a feira. E sou disléxica, por causa da minha dislexia, achava que nunca conseguiria metrificar. É um labor enorme, é muito difícil. Para os cantadores que nascem com aquele dom, não, mas para o poeta de bancada, que é aquele que escreve com o raciocínio, sem ser no improviso, é todo um labor. Em Claranã, eu quis exercitar as técnicas de cantorias e seus gêneros. Fiz vários experimentos, mas queria fazer tudo isso com os meus temas. Alguns cordelistas e cantadores, às vezes, ainda são muito machistas, então, fiz um galope [estrutura poética] gay, por exemplo. Era uma forma de colocar o meu tema dentro dessa métrica, rima e estética, que algumas vezes serve ao machismo, racismo e LGBTfobia.

A cidade sempre foi meu tema predileto. Isso é muito marcado pelo Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco e pelo meu primeiro livro [Restos do fim, em 1982, em parceria com Eduardo Martins]. Em Gris, há vários poemas pequenininhos, muitos falando sobre a cidade. Peguei alguns que havia publicado em revistas, somei a inéditos e fiz aqueles cinquenta poemas para a cidade. Gris é um livro onde exercito a cidade que há em mim.

A arte é uma maneira de complexificar o imaginário em torno da região Nordeste?
Acho que existe, desde sempre – inclusive, isso está no cânone da literatura brasileira –, um “Nordeste imaginado”. Às vezes, isso faz muito bem; às vezes, faz muito mal. O mundo do maravilhoso colocado no cordel e na poesia popular e o mundo do maravilhoso e da aventura em Ariano Suassuna, por exemplo, são incríveis. Ao mesmo tempo, fizeram com que rotulassem a gente de regionalista. Aí, queria dizer: por que é que quando se fala sobre a avenida Paulista não é ser regional? Por que falar de Bodocó é ser regional? Por que o regionalismo, quando se estuda essa corrente literária, só se coloca o Nordeste? O que se escrevia sobre São Paulo também não é regional? Que olhar colonizador é esse? Apesar disso, também queria dizer que essa literatura é muito importante. Se a gente pega Vidas secas, que é um livro para ser lido todo ano, aquilo não é regional nunca, é absolutamente universal. Se você pegar alguns livros de Jorge Amado, que colocam na pecha de regional, Quincas Berro d’Água ou Mar morto, por exemplo, são incríveis como toda a literatura universal. Se você pega Morte e vida severina, que é um auto de João Cabral, aquela saga poderia ser dos ciganos na Bósnia, dos imigrantes na Síria… Basta mudar o lugar e contar de outro jeito.

O que a poeta Cida Pedrosa deseja para o nosso país?
Desejo que a vacina chegue, que caia o obscurantismo, que a gente consiga eleger um governante que cuide da nação brasileira. E queira estar junto de seu povo para enfrentar as dificuldades e tirar o país da linha da miséria. O que estamos vivendo é um dos momentos mais tristes da história jovem do Brasil. O país está abandonado em um dos momentos mais cruéis de sua história, um momento pandêmico de crise econômica, sanitária e social. O Brasil não tem um rumo porque temos um governante que simplesmente aposta no obscurantismo e ainda toma atitudes genocidas. O que desejo para o Brasil é que consiga tirar esse governante do poder.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.            

Quem escreveu esse texto

Erika Muniz

É jornalista cultural.