Infantojuvenil,

Emicida e a irrigação pela palavra

Estreante na literatura, rapper narra a descoberta de identidade sob o olhar de uma criança

29out2018

Quanto mais escuras, mais doces as amoras.

Também vale lembrar que as nuvens não são somente brancas. Quando escurecem as nuvens, sabemos que é aí que vem a água para molhar o chão. E para fertilizar. 

Lendo o pequeno grande livro de Emicida, este Amoras, me veio ao peito essa ideia de irrigação pela palavra. De um pensamento que cresce a partir do olhar de uma criança em volta.

Toda criança nos ajuda a amadurecer. As crianças nos ensinam a apreender. 

“Pai, que bom, porque eu sou pretinha também!”

Amoras, quanto mais escuras mais doces. Foi o pai quem disse. E ouviu logo a resposta acima. Soprada pela menina, tão grandinha. 

Vi, por entre as páginas maravilhosamente ilustradas por Aldo Fabrini, a escritora negra Conceição Evaristo. Vi os reflexos, antigos, de Lima Barreto. Do mesmo espelho de onde chega a poesia atual de Mel Duarte e Luz Ribeiro. Também pensei, no meio de tudo isto, sobre o poeta periférico Miró da Muribeca lá do Recife.

Toda palavra lavra. E colhe. É um canteiro inteiro, todo cheio. Um quintal de coisas boas. Salve, salve. Bom ver este livro colorindo de pretinhas jabuticabas as livrarias. Com este belo Amoras, está lançada ao ar a semente de um lugar para o qual não havia lugar. Nas estantes altas, uma literatura de verdade que demorou a chegar. E, aos pouquinhos, resistindo, ela chega.

Emicida tem imaginação fértil.

Não é de hoje, ao certo, que, como compositor e cantor e poeta das letras, fala a nossa língua.

A esperança, sempre, é que com ele venham ainda mais frutos. Que a criança, a partir desta leitura, depois corra a catar pelo mesmo pomar a escrita de Carolina Maria de Jesus. Venha nos dizer por onde andará o esquecido e luminoso Solano Trindade e o seu Cantares ao meu povo.

Emicida vem, a meu ver, nos dizer isso. De Zumbi dos Palmares, de Martin Luther King. Abrir os olhos de todos e de todas para essas amorosas possibilidades. 

É isso o que nos faz ser e crescer. Amoras dá gosto, assim, de ler.   

Quem escreveu esse texto

Marcelino Freire

Escritor, é autor de Contos negreiros (Record).