Psicologia,

Jung e a jornada ao alto astral

Psicoterapeuta e astróloga norte-americana faz estudo original sobre as relações entre astrologia e o fundador da psicanálise analítica

01nov2023

O recente lançamento do livro Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (Contexto), de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, reacendeu a polêmica, tão antiga quanto a própria psicanálise, acerca do estatuto científico da disciplina criada por Sigmund Freud. Para os dois autores, não há dúvida: a psicanálise não passa de uma “pseudociência” que mereceria ser jogada no mesmo lixo que a homeopatia, a antroposofia, a acupuntura e a astrologia.

Não deixa de ser irônico lembrar que Freud, logo nos primeiros anos do movimento psicanalítico, considerava preocupante o interesse, por parte de seu então “príncipe herdeiro”, Carl Gustav Jung, em explorar as conexões entre a psicanálise — um saber sobre dimensões “ocultas” (inconscientes) da alma — e saberes ocultistas, ou esotéricos, em especial a milenar doutrina dos astros.

Em Jung, o astrólogo, que acaba de sair no Brasil, Liz Greene, psicoterapeuta e astróloga norte-americana, esmiúça a profundidade do envolvimento de Jung com o estudo de signos e mapas astrais. Esse tema não é propriamente novidade, embora continue causando constrangimento em junguianos que se esforçam em tornar seu mestre e a disciplina que ele legou mais palatáveis aos critérios do rigor acadêmico e científico. Original é a erudição e a sobriedade com que a autora se debruçou sobre essa problemática.

Jung encarou com paixão as analogias entre a psicologia enquanto ‘ciência’ e o a imaginação mitopoética

Jung, ao contrário do que fez com a religião e a alquimia, não chegou a dedicar livros específicos à astrologia. Mas as referências astrológicas são abundantes em toda sua obra, bem como em numerosas cartas. Numa delas, de junho de 1911, ele contava a Freud:

Minhas noites são, em grande parte, tomadas pela astrologia. Faço cálculos com horóscopos a fim de encontrar pistas que me conduzam ao âmago da verdade psicológica. Há coisas notáveis que certamente não lhe parecerão dignas de crédito. […] Atrevo-me a dizer que na astrologia se poderá ainda descobrir um dia uma boa parcela de conhecimento que foi intuitivamente projetada nos céus.

Jung alude aqui a uma chave importante de sua interpretação das representações mitológicas em geral como formas de “projeção” do inconsciente, manifestando-se, nesse caso, nas configurações do zodíaco, mas também nos metais do alquimista, em nossas idealizações românticas, políticas e midiáticas, nos deuses e até mesmo em discos voadores.

Esse trecho da carta a Freud também indica que Jung sabia do insuperável ceticismo do seu interlocutor. Vale, porém, ressaltar: Freud não era movido por um preconceito tacanho contra as chamadas “superstições”, das quais teve coragem de se aproximar, por exemplo, quando postula que os sonhos tinham um sentido para além da estranheza aparente de muitas de suas imagens e enredos. Mas não queria dar pretexto aos inimigos da psicanálise para estigmatizá-la com esse rótulo, “pseudociência”, que até hoje é usado como espantalho conveniente por quem resiste (no sentido psicanalítico como mecanismo de defesa, inclusive) à possibilidade de que verdades da condição humana possam ser captadas por discursos não limitados à jaula de ferro do mundo tecnocrático e desencantado de que nos fala Max Weber.

Uma “nova era”

Já Jung, mostra Liz Greene, desde cedo encarou com naturalidade e paixão as analogias entre a psicologia enquanto “ciência”, sim, mas sui generis, e o vasto campo da imaginação mitopoética da humanidade. Não por acaso, ele foi resgatado e celebrado, pouco depois de sua morte, em 1961, como ícone hippie e um dos arautos do movimento chamado de New Age, indo parar na capa do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), dos Beatles, ao lado de figuras como o bruxo Aleister Crowley.

Jung de fato foi um dos pioneiros a expor os aspectos psicológicos e astrológicos do advento de uma “nova era” planetária, que antevia para algum momento entre o ano 2000 e 2200 d.C. Em paralelo à precessão dos equinócios da constelação de Peixes para a de Aquário, a humanidade, após 2 mil anos de predomínio cultural do cristianismo, estaria se preparando para uma nova mentalidade, capaz de integrar num patamar de consciência superior os conflitos “piscianos” (vide o símbolo dualístico desse signo, os dois peixes em oposição) entre divino e humano, espírito e matéria, bem e mal, razão e emoção, masculino e feminino.

O conceito de sincronicidade foi decisivo para a inflexão psicológica da própria linguagem da astrologia ao longo do século 20

Uma das especulações astrológicas de Jung, aliás, aponta como 29 de maio do ano 7 a.C. a data de nascimento de Jesus. Isso implicava que ele, a imagem ocidental do arquétipo do Self (centro e totalidade da psique, consciente e inconsciente), seria do signo de Gêmeos, portando em si o “tema dos irmãos hostis”, um dos assuntos arquetípicos predominantes na era que está chegando ao fim.

Não devemos confundir a profecia junguiana com o estereótipo festivo que a New Age recebeu em espetáculos como Hair, que estreou no mesmo ano do álbum dos Beatles e se consagrou nos palcos da Broadway. Jung sempre alertou para os riscos e tormentos dessa nova era psicoastrológica, na medida em que grandes parcelas da humanidade permanecem em patamares rudimentares de autoconsciência, tanto mais perigosos por conta do aumento de nosso poderio tecnológico de espalhar ódio e destruição, ao invés de sermos um sapiente “Portador da Água da Vida”, tal como sugerido pelo símbolo aquariano.

Greene articula as reflexões histórico-culturais de Jung sobre a Era de Aquário, em especial no livro Aion, de 1951, às prefigurações do tema em O livro vermelho, experimentação psíquica e artística a que se entregou após o doloroso fim da amizade com Freud em 1913. Jung tinha em seu horóscopo natal a mesma polaridade entre Leão (seu signo solar) e Aquário (seu ascendente) que define a Nova Era. Em uma das primeiras imagens que desenhou em O livro vermelho, ele se vale dos códigos astrológicos para exprimir o insight que se passava no seu mundo interior, sendo esta a mesma transição arquetípica a que o mundo ocidental estava fadado, com os mesmos perigos, inclusive para o equilíbrio mental, na medida em que o “espírito das profundezas” ressurgia para cobrar seus direitos ultrajados pela arrogância do “espírito deste tempo”.

O título da edição brasileira, Jung, o astrólogo, é bem mais provocativo do que o original, Estudos de Jung em astrologia: profecia, magia e as qualidades do tempo. Um dos méritos do livro, conforme salientado no prefácio de Sonu Shamdasani, professor da University College London, é justamente contextualizar os estudos astrológicos de Jung no escopo bem mais amplo de saberes que seu gênio revisita, articula e traduz em um projeto psicológico sincretista, que sonhava curar a cisão entre ciência e espiritualidade, considerada uma das feridas maniqueístas da era de Peixes.

Nesse sentido, Greene evita propor a astrologia como “a chave”, a essência da empreitada intelectual junguiana, nisso se distinguindo de autores como Stephan Hoeller, quando desvenda o “Jung gnóstico”, e F. X. Charet, quando se debruça sobre os supostos fundamentos mediúnicos da psicologia junguiana.

A autora, prossegue Shamdasani, tem o gabarito acadêmico necessário para a gigantesca tarefa a que se propôs: “Situar o lugar da astrologia no trabalho de Jung, e o trabalho de Jung na história da astrologia”.

Para tanto, ela disseca as fontes antigas e modernas do tipo de astrologia que Jung não só estudou como também praticou, ao elaborar horóscopos de amigos, pacientes e até de Freud. Apesar da ojeriza habitual à teosofia de Madame Blavatsky, ele é fortemente inspirado pela perspectiva de teósofos como G. R. S. Mead e Alan Leo, no sentido de privilegiar uma leitura dos astros voltada menos à especulação literal sobre o futuro do que ao mapeamento simbólico da psique individual e coletiva, segundo o princípio da “sincronicidade”, ou convergência de sentido entre eventos não ligados por nexos causais.

Sincronicidade

Afora os paralelos entre os quatro elementos da astrologia e os tipos psicológicos, é especialmente esse conceito de sincronicidade que — conforme o filósofo Renato Janine Ribeiro mostrou em artigo para a Folha de S.Paulo em 1996 — foi decisivo para a inflexão psicológica da própria linguagem da astrologia ao longo do século 20:

Predições que falavam de fatos, ou mesmo de fados, prometendo sorte ou afirmando desgraças foram substituídas por toda uma arte quase psicológica, que usa Jung para tratar da pessoa e não mais do que lhe sucede.

O legado de Jung, conforme incorporado como um novo viés de legitimação de saberes como a astrologia e o tarot, é tal que a leitura divinatória “não precisa mais especular sobre a realidade da relação entre consulente e objetos materiais (astros, conchas, cartas) que dão base visível à leitura”. Janine, nesse mesmo artigo em que chamava Greene de “aquela que é provavelmente a mais inteligente das astrólogas de nosso tempo”, nos ajuda a entender o peso que ela dá à “influência” (termo que devemos à astrologia) de Jung para a astrologia contemporânea:

O que o divinatório revela é a psique mais profunda do indivíduo – mas repetimos: a psique não é rigorosamente individual, está engatada no cosmos, e é exatamente isso o que legitima ou faz funcionar os procedimentos de leitura. Com isso, é claro que a leitura deixa de ser dos acontecimentos, dos fatos, daquilo que está fora do consulente. Agora trata de sua pessoa psíquica (em sentido renovado, porque religado ao mundo). Ideias como a de destino ou de aspectos nefastos perdem por completo o sentido, ainda mais porque o que confere, justamente, sentido à leitura é uma convicção do possível crescimento do ser humano pelos desafios que enfrenta na vida.

Da perspectiva de Jung, segundo Greene, talvez não se possa falar exatamente que a ideia de destino “perca por completo o sentido”, mas certamente ganha um novo significado, ligado ao que o psicólogo suíço designou como processo de individuação. Trata-se de uma jornada de autoconhecimento em que é crucial a qualidade daquilo que os junguianos chamam de eixo ego-self — o desenvolvimento psicológico em que o indivíduo resgata, em bases adultas, o enraizamento com seu núcleo identitário mais profundo, deixado para trás quando é forçado a abandonar o que, em ambientes familiares amorosos, tende a ser uma espécie de paraíso infantil.

“Pseudocientífica”, talvez, ou pouco interessada em se sujeitar a técnicas de adestramento comportamental, a alma em que Jung aposta se faz sentir em eventos e forças que, quanto mais permanecerem inconscientes e reprimidas, mais tendem a agir sobre nós como “compulsão das estrelas”, ou carma. A aceitação dinâmica dessas energias, por outro lado, abre brechas para a evolução rumo à meta da “felicidade”, no denso sentido que essa noção adquire quando pensada, à maneira grega, como eudaimonia, estado de plenitude, “alto astral”. A expresão, em sentido nada banal, decorre do aninhamento de nossos jeitos de pensar, sentir e agir sob as asas do “Daimon”, Anjo Guardião a que Greene dedica algumas das passagens mais interessantes deste livro fundamental.

Quem escreveu esse texto

Caio Liudvik

É pós-doutorado em filosofia, sociólogo e autor de Sartre e o pensamento mítico (Loyola).