Psicanálise,

O ar que nos falta

Memórias da depressão de Luiz Schwarcz são tensionadas entre palavra e silêncio

01abr2021

Quem tem depressão vive apenas em função do momento. O julgamento é sempre absoluto e no presente. Estamos deprimidos ou não? Fora das sessões de psicanálise ou terapia, fugimos das lembranças ou interpretações. […] Sem ter com quem me comparar, eu provavelmente achava que ter medo era parte intrínseca da existência.

Luiz Schwarcz, em O ar que me falta

Ao contrário de muitos livros autobiográficos que narram trajetórias de enfrentamento e superação de processos depressivos, em O ar que me falta, de Luiz Schwarcz, a depressão não é a protagonista. Ela nunca é tratada como “aquilo” que dá as cartas na vida desta pessoa, ou a “doença” limitante que atravessa a existência, o “inimigo a ser batido”, fenômeno que venho discutindo no contexto das escritas de sofrimento. Talvez isso aconteça em função de um tipo específico de depressão, que podemos associar com o luto. 

Lutos são processos absolutamente singulares por meio dos quais alguém tem que realizar a perda de outrem, avaliar o que foi perdido naquilo que se perdeu e comprimir simbolicamente o outro dentro de nós, como um bem precioso para a viagem da vida que segue. Dito desta maneira, é como se tudo se passasse como um trabalho íntimo, pessoal e intransferível. Mas o livro em questão nos dá outra versão, muito mais apropriada e completa para pensar este sistema de perdas.

Nele, a depressão e o luto remetem à cadeia de ancestrais e ao grande desastre coletivo dos campos de concentração. Uma história não contada é sempre um luto latente. Não que tudo deva ser dito ou possa ser dito, mas a palavra interdita tem um preço, e neste livro podemos acompanhar detalhadamente como o luto sempre se resolve ou se irresolve em uma cadeia de lutos, sendo desta maneira, um vaso comunicante entre o trato dos viventes, público e privado, com os que já se foram, mas também com os que virão. 

Uma história não contada é sempre um luto latente

O livro se organiza em torno das memórias de um sobrevivente de um sobrevivente de Bergen-Belsen. Como sói acontecer com aqueles que herdaram o trauma em primeira instância, o sofrimento se reveste de silêncio e culpa. Pernas que batem, rompantes e acusações a procura de um destinatário. Nada mais difícil do que sobreviver a quem se ama, quando podíamos ter ido junto, ou em vez de. Isso se acentua ainda mais quando falamos de imigrantes, estrangeiros em uma comunidade que a cada vez confirma ou vacila o pertencimento. Condição ideal para que fortaleçam os laços de filiação e na qual a genealogia assume uma função redobrada. 

Mas os sobreviventes em segunda instância, como retrata este livro, não têm este mesmo tipo de culpa. Em vez disso, estão imersos na culpa da reparação, da cura e da reconstrução. Destinatários de um silêncio que se transmite eles precisam antes de tudo encontrar palavras. Nisso, o relato de Luiz Schwarcz é certeiro. Ele mostra como, de um destino previsto, o de herdeiro de uma empresa de cartões, ele se torna um artífice de livros, mas também um tipo de escritor muito peculiar. Despreocupado dos dotes literários, dos efeitos de estilo e persuasão, a escrita assume aqui justamente esta função de reparação, não da culpa individual nem da impotência coletiva que domina uma família, mas da reparação da experiência perdida ela mesma. Ou seja, não o trauma, mas a impossibilidade de passá-lo adiante simbolicamente, o que aliás é o efeito devastador mais conhecido do trauma, ele corta suas vias de tratamento e reconstituição. 

Palavras

Daí que o impasse possa ser resolvido por duas operações que vemos trabalhar de modo vigoroso no texto: a luta entre a palavra e o silêncio e o trabalho do tempo entre o prazer do sentido (dado pela escrita) e o sentido sem palavras (dado pela música).

“Desde cedo passei a viver no futuro, com a cabeça no novo disco que compraria, na defesa do jogo seguinte, ou quando bem menino, imaginando o carro que cruzaria a esquina da rua onde morava.”

As palavras amargamente circulares do pai parecem se transformar no silêncio e no desligamento dos afetos no filho, mas que retornam transformadas, como presença possível, com as netas ou com o cachorro querido. Gramática semelhante se repete na relação com o sexo e com a profissão. Como tantas vezes acontece em percursos depressivos, as conquistas são momentos angustiantes ou penosamente anódinos. Mas há exceções para isso, e aqui elas são apresentadas sob o signo de um heroísmo deslocado. Compartilho com o autor uma longa saga masoquista como goleiro de futebol. Onde pisamos mal nasce grama. Se tudo dá certo, terminamos em um empate honroso. No pior dos casos só há um decisivo elemento que poderia ter evitado a derrota. Somos todos Barbosa.

Despreocupado dos dotes literários, dos efeitos de estilo e persuasão, a escrita assume a função de reparação

O desdobramento de si em uma imagem gloriosa, o empuxo à liderança com o distanciamento calculado do outro e crises de cólera irritadiça, podem parecer aos que circundam o depressivo como uma arrogância baseada no exagero do sentimento de si. Contudo, e aqui o livro tem uma função de tornar coletiva outra face desta experiência, o que está por trás deste funcionamento postiço é apenas diminuição de si, sentimento de inferioridade e impotência. Uma das observações mais sagazes do livro, própria de quem atravessou a experiência, é a de que “hoje a depressão volta sem enredo específico”. Antes disso o apelo realístico da depressão é irresistível: tem que existir algo errado em mim, no outro, no mundo, no casamento, na profissão, na política ou no cosmos segundo a constelação tal que ficamos possuídos pelo enredo deste realismo cruel, pelo qual enxergamos as coisas “como elas realmente são”. Assim podemos passar uma existência nômades no mundo, sem voz e sem tocar em nós mesmos. 

O lugar de goleiro só pode competir com o do herdeiro ungido, destinado a salvar casamentos, fazer prosperar impérios e ao final reabilitar, desta vez para sempre, a cadeia dos lutos interrompidos. Lugar ingrato e sem par nem irmãos. Lugar pelo qual muitos lutam ferozmente para consagrar seu próprio narcisismo, mas que, contudo, alguém depressivo vive com uma tragédia particular. Toda glória será apenas a confirmação do esperado, e todo desvio a lembrança de um fracasso que espreita como “a velha senhora”. Não se trata de um grande escritor, nem mesmo de um autor promissor, apesar da insistência e do cuidado, mas neste caso o livro se impôs ao homem e por isso ele é tão interessante e tão, arrisco dizer… terapêutico.  

Esse impasse de certa maneira se resolve pelo próprio livro, não apenas pelo seu enredo biográfico, mas pela tematização que vai ganhando força, com o passar dos capítulos, da importância da própria prática da escrita. Suas tentativas de lembrar, de impressionar ou de criar uma autoria de alta dignidade felizmente fracassaram, um autêntico modelo clínico do que chamamos de fracasso produtivo. Sob esse fracasso se constrói o último e no meu entender melhor capítulo, que ressignifica e coloca em moldura tudo o que veio antes. Moldura típica destes contos que acontecem dentro de um romance, como em Frankenstein, de Mary Shelley ou Coração das trevas, de Joseph Conrad. Escreve Schwarcz: “Aqui não invento mais nenhuma ficção para preencher o silêncio do meu pai. Compartilho o meu silêncio com os que quiserem conhecer as histórias de Láios, András e as minhas. Para que eu possa voltar a ler”.

Lembremos que nas tragédias gregas Láios era o pai de Édipo e filho de Lábdaco. Cada qual tinha seu defeito encravado no corpo: o neto tem os tornozelos inchados, o pai manca e o avô gagueja. Tal qual uma tragédia contemporânea, vemos como esse mesmo silêncio se reinventa até encontrar seu novo destino, que agora está compartilhado para todos nós. Entre a palavra e o silêncio, o que o livro narra é a recuperação da voz, esta mistura de respiração e sentido que faz de cada vida algo que vale a pena ser contado.

Quem escreveu esse texto

Christian Dunker

Psicanalista, escreveu Reinvenção da intimidade (Ubu).