Psicanálise,

Freud e a irreverência subversiva do humor

Em sua obra sobre os chistes, o fundador da psicanálise explica a agressividade latente nas piadas e tiradas cômicas

08nov2018

Este é um dos livros mais interessantes de Sigmund Freud. Publicado em 1905, seu tema são os mecanismos psíquicos envolvidos na produção dos chistes — as tiradas de humor e piadas que permeiam a convivência humana. É uma leitura envolvente, mesmo na última parte, dedicada a considerações de natureza teórica.

Lançando mão de todo seu talento como escritor, Freud mobiliza um repertório cômico e anedótico encontrado junto à literatura europeia e explora, de maneira fascinante, a agressividade latente mesmo no humor mais descompromissado.

O historiador Ernst Gombrich, no célebre ensaio sobre o criador da psicanálise (O chiste como um paradigma da arte), diz que um bom chiste deve satisfazer a pelo menos dois critérios: o do sentido e o da forma. Ele envolve uma forma, que, por sua vez determina um conteúdo ou o seu sentido. Para tanto, é preciso haver uma conjunção entre essas duas sintaxes, de modo a produzir um contexto semântico diferente do inicialmente dado. O resultado tem efeito desconcertante, que a língua absorve como marca de um estilo.

Um bom exemplo que aparece no livro é uma suposta conversa entre Napoleão e uma jovem dama italiana. Ele diz: “Tutti gli italiani danzano si male? [Todos os italianos dançam tão mal?]. Ao que ela responde, de pronto: Non tutti, ma buona parte [Não todos, mas boa parte]”.

Vê-se aí, no contexto da língua italiana, o desvelamento de um significado inesperado de buona parte, que permite a insinuação insolente da jovem de que o grande homem não era nenhum pé de valsa. A irreverência, escamoteada pelo humor, não poderia ser tomada por Napoleão como uma agressão direta à sua pessoa ou à sua dignidade de comandante militar. Ao contrário, é aceita como marca de inteligência no uso dos códigos sociais embutidos na língua.

Esses códigos representam justamente o elemento de repressão que torna o chiste aceitável e mesmo desejável. Eles variam com o tempo, é claro. Um bom exemplo, que não é citado por Freud, mas que ele certamente apreciaria, vem da Antiguidade e é relatado por Mary Beard, em O riso na Roma antiga: “Um jovem deitou-se com sua avó. Seu pai ficou furioso com ele; mas o rapaz não deixou por menos: ‘Só Deus sabe há quanto tempo você se deita com a minha mãe, nem por isso me passou pela cabeça lhe dar uma surra. Mas bastou que eu me deitasse com a sua’”. Vê-se, numa anedota bastante rude, justamente o que viria a ser, muito tempo depois, a exposição do complexo nuclear da teoria freudiana das neuroses.

O chiste disfarça um sentimento agressivo que, se explícito, poderia causar desconforto ou desprazer

Escrito cinco anos após a publicação de A Interpretação dos sonhos, tem uma relação direta com o livro mais conhecido de Freud. Ainda que se possa ver no chiste os mesmos mecanismos inconscientes que ocorrem nos sonhos, ele não necessita de disfarces para emergir à consciência, pois não é uma formação de compromisso entre os sistemas psíquicos, como são os sonhos. Ele disfarça, por si mesmo, um sentimento agressivo que, se explícito, poderia causar desconforto ou desprazer. Num contexto humorístico, suscita prazer tanto em quem o formula quanto no ouvinte. Isso porque promove uma suspensão da barreira da censura, que normalmente veta a entrada de conteúdos inconscientes na consciência.

Através da piada, anedota ou gracejo, o que entra no inconsciente é a consciência, o que, segundo Freud, relaxa a tensão psíquica. Os prazeres obtidos através do chiste, do humor e do cômico seriam responsáveis pela construção de “métodos para reconquistar a atividade psíquica que se perdeu, [ocorrida] em uma época da vida em que costumávamos realizar nosso trabalho psíquico com bem pouco gasto: a nossa infância”. É a linda ideia que pulsa nessa obra: o humor como recuperação de um prazer perdido.

Esta edição, a primeira traduzida diretamente do alemão, mantém o mesmo nível dos outros volumes das Obras completas de Freud, coleção coordenada por Paulo César de Souza. Encontram-se nela as mesmas lacunas dos outros volumes, como a falta de tradução de termos estrangeiros e a ausência das referências bibliográficas utilizadas por Freud. Mas essas pequenas carências não representam um empecilho à leitura desse clássico do pensamento do século 20. 

Quem escreveu esse texto

Janaina Namba

É professora-adjunta da Universidade Federal de São Carlos.