Política,

Feminismo negro pra quê?

Coletânea de textos da autora de “O que é lugar de fala?” intercala autobiografia e reflexão política sobre a mulher negra no Brasil

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

Aqui, “a população negra é acusada de violenta se denuncia o racismo. O país onde todos adoram samba e carnaval, mas onde se mata mais negros no mundo. O brasileiro não é cordial. O brasileiro é racista”.  

Nos textos reunidos em Quem tem medo do feminismo negro?, publicados originalmente em seu blog na revista Carta Capital, Djamila Ribeiro ataca, de diversos ângulos, a opressão racial no Brasil, com foco especial para a situação das mulheres negras. 

O diagnóstico que detecta o racismo estrutural é seu ponto de partida, que visa mais do que a denúncia: quer provocar uma reflexão teoricamente embasada das opressões entrecruzadas, distribuir responsabilidades e projetar uma sociedade mais humana e mais democrática.

O racismo e o machismo são elementos estruturantes da sociedade brasileira. Após séculos de escravidão, o Estado ainda não criou mecanismos de correção das desigualdades fundantes: “das senzalas, fomos para as favelas” e a maioria da população negra continua pobre, excluída do sistema de ensino, das universidades, das instâncias decisórias e sujeita à violência cotidiana e institucional. O racismo vai além, muito além, de ofensas e injúrias, “é um sistema de opressão que privilegia um grupo racial em detrimento de outros”. 

As mulheres negras ocupam a posição social mais desprivilegiada de todas e o livro é abundante em dados que comprovam essa tese. As opressões vinculadas ao gênero, a raça, a classe e a sexualidade se combinam e entrecruzam gerando outras formas de opressão. 

A abordagem de Djamila Ribeiro, que já foi secretária adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo, é construída com o aporte teórico das feministas negras. Seu livro anterior, O que é lugar de fala? (Letramento), de 2017, também ilumina nossa leitura. Nele encontramos as bases de sua abordagem interseccional. 

A máscara do silêncio é uma imagem constante no livro. Imposta aos escravos, a máscara, como nos mostra a artista e escritora portuguesa Grada Kilomba, com quem Ribeiro dialoga constantemente, ainda cerceia a liberdade de fala das mulheres negras. Um conjunto de violências renovadas quer perpetuar o seu silenciamento. A autora fala delas ao assumir corajosamente a narrativa em primeira pessoa e contar um pouco da sua própria história de vida. 

Aprender a ouvir

Ao narrar, insistindo sobre a importância deste ato, conta que a máscara começa a aprisionar desde muito cedo, na infância. Antes de prosseguir, convém informar que quem escreve esta resenha é uma mulher branca. Compartilho com Ribeiro a opressão de ser mulher, mas não sofro opressão racial. Dentre os aprendizados que os seus livros proporcionam, o mais valioso é: “ouça as histórias das mulheres negras contadas por elas mesmas, aprenda a ouvir, aprenda com a nossa narrativa o que você não pode aprender pelas suas próprias experiências”. 

Não é um livro de autoajuda: é uma porrada bem dada, e também o ponto de partida de uma sofisticada teoria da opressão e das relações de poder. 

A sensação constante de inadequação, os medos e sofrimentos da menina negra encontram outro lugar quando a jovem Djamila, nascida em Santos em 1980, tem a primeira oportunidade de trabalho, na Casa de Cultura da Mulher Negra, que valoriza a sua formação. Lá, ela entra em contato com autoras que a permitem ver a si mesma de uma outra perspectiva. 

Daí em diante, a jovem “que vivia querendo se esconder” não quer mais ser invisível. As autoras que denunciam a invisibilidade da mulher negra a ajudam a recuperar o orgulho das raízes e a reconfigurar o mundo de um ponto de vista distinto do hegemônico, que é eurocêntrico, racista e sexista. Ela entende que o projeto colonial era impor silêncio às pessoas escravizadas, negar a sua humanidade e a possibilidade de existirem como sujeitos. Daí a necessidade de conhecer e valorizar a própria história, “pois quando não se sabe de onde vem, é mais fácil ir para onde a máscara diz que é o seu lugar”.   

Descobriu ainda, com a escritora Conceição Evaristo, que a “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio”. Se a autora conta em primeira pessoa a sua própria história em alguns dos textos, a fala é proferida por uma voz coletiva, das mulheres negras feministas com quem ela aprendeu a lutar. Nesse sentido, o livro pode ser visto como um tributo a Grada Kilomba, Conceição Evaristo, bell hooks e também Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro, Toni Morrison, Patricia Hill Collins, Lélia Gonzales e muitas outras. “A dimensão da coletividade foi fundamental para a minha trajetória e para a minha luta política.” 

O lugar da mulher negra é doloroso mas também potente. Sua perspectiva é privilegiada para a percepção das opressões que se entrecruzam e da pluralidade de ser mulher. Duramente crítica do “feminismo hegemônico”, a autora desvela que a universalização da categoria mulher é excludente e termina alimentando as estruturas de poder existentes. Mulheres brancas e negras sofrem sexismo e são objetificadas, mas as negras são mais: “a violência de gênero atinge todas as mulheres, mas atinge de forma mais grave aquelas que combinam mais de uma forma de opressão”.  

É do rompimento com as narrativas dominantes que tratam os dois livros de Ribeiro:  com o feminismo que não deu a devida importância às mulheres negras, com a tradição universalista excludente e com a história oficial que reduz os negros à escravidão e elimina as lutas de resistência. 

A vítima não é apenas vítima de um sistema perverso, também é sujeito de ação. É nessa dupla perspectiva que nós, mulheres negras e brancas, somos analisadas: como oprimidas (de modos diferentes) e sujeitos ativos de mudança e transformação social. Daí a importância do “lugar de fala”, conceito que remete às condições sociais que permitem ou obstam que certos grupos acessem “lugares de cidadania”: o que está em questão aqui não são propriamente o indivíduo e a sua identidade, mas as relações de poder. Parece, assim, que está comprometida a aliança com os feminismos liberais, excessivamente focados no empoderamento e nas conquistas individuais, abdicando, assim, de mudanças estruturais. Uma lição do feminismo negro é que o empoderamento é coletivo e que ninguém pode ficar de fora. Desfazendo um mito que já se consagrou em torno do termo “empoderamento”, ela alerta que se trata de “uma nova concepção de poder que visa igualdade no confronto com os privilégios”. Considero que esta seja uma boa resposta, tanto para feministas de matriz marxista quanto para as liberais, que, por vias distintas, comumente desentendem o sentido do termo e também da ideia de “lugar de fala”.  

Desfazendo mitos, nomeando e atribuindo responsabilidade, o livro desmonta hipocrisias de uma sociedade profundamente racista. “Falar em racismo reverso é acreditar em unicórnios”; “dizer-se antirracista e ser contra cotas é, no mínimo, contradição cognitiva e, no máximo, racismo”. Pacientemente, a autora explica que para haver racismo é preciso haver relações de poder. Ora, as relações de poder existentes no Brasil oprimem e excluem os negros, não há simetria. 

 O mesmo raciocínio é empregado para criticar a substituição recorrente do “vidas negras importam” por “todas as vidas importam”. Certamente, todas as vidas importam, mas é preciso lembrar que 77% dos jovens assassinados no Brasil são negros. Se é preciso marcar que “vida negras importam” é justamente porque elas não importam dentro da lógica racista: “passou da hora das pessoas brancas realmente se posicionarem contra o racismo no Brasil”. 

É simples entender porque as cotas são justas e urgentes. As pessoas brancas são privilegiadas pelo racismo institucional. Não se pode, portanto, atribuir mérito a uma pessoa que entra na universidade pública se ela teve acesso aos bens básicos. O seu ingresso se deve às oportunidades que teve e que outros não tiveram.

Ribeiro também nomeia e detecta quem são, onde estão e como operam os perpetuadores das violências. O livro faz a crítica da grande mídia “por não combater os poderes instituídos”; dos humoristas rasteiros, “capitães do mato do humor para entreter a Casa Grande”; da TV Globo, que leva ao ar uma série que trata mulheres negras como objetos sexuais e no Carnaval lança uma campanha para caçar mulatas;  da mídia esportiva que trata Serena Williams como “Serenão”; de políticos que tratam as vidas negras com desprezo e desumanidade; do blackface, “porque mulher negra não é fantasia de carnaval”; da indignação seletiva que se revolta quando uma apresentadora de TV sofre racismo, mas se cala quando é com o porteiro. 

O livro tem ainda um aspecto pedagógico de esclarecimento, não é voltado apenas para detectar quem dissemina “conhecimento” e práticas racistas e sexistas. É também para quem está disposto a compreender as violências e as sutilezas do projeto colonial. A autora compartilha o que as escolas não contam e o que está por trás dos termos como “mulata” que, “presença cativa no vocabulários dos apresentadores, jornalistas e repórteres da emissora global”, é uma palavra pejorativa, que vem de mula, usada para indicar impureza, mistura imprópria, “que não deveria existir”.  

A universidade também é chamada à responsabilidade. Na história contada pela autora, o ingresso na universidade é um momento importante, de dificuldades e de possibilidades. Conciliar maternidade, trabalho e estudo; sobreviver numa área — a filosofia — tão masculinista e, acrescento, teimosa em se blindar contra novas demandas. Se conseguiu concluir o curso e defender o mestrado sobre Simone de Beauvoir e Judith Butler é porque tinha um sonho, claro, e também porque entrou em contato com os textos de Lélia Gonzales que a encorajaram a estudar filósofas mulheres, trabalhou em grupo e porque encontrou um orientador que deu o espaço que precisava. Aos professores universitários, ela dá um recado: “apoiem as suas alunas ao invés de assediá-las”. 

Desfazendo mitos, nomeando e atribuindo responsabilidade, o livro desmonta hipocrisias de uma sociedade profundamente racista

A área de filosofia no Brasil é marcada por gritante desigualdade entre homens e mulheres. De acordo com o mapa de gênero publicado pela Capes em 2017, 79% do corpo docente é de homens e 21% de mulheres, enquanto 73% do corpo discente (mestrado e doutorado) é de homens e 27% de mulheres. Não há ainda o diagnóstico estatístico étnico-racial. Sabemos, no entanto, que a desigualdade entre negros e brancos, negras e brancas, ainda é gritante e absurda na pesquisa e na docência, não apenas na filosofia. 

A trajetória de Djamila Ribeiro mostra que podemos fazer de outro modo, mas nada mudará se não assumirmos a responsabilidade que ela nos convoca a assumir. Precisamos de ações afirmativas robustas, precisamos respeitar as mulheres, abalar o cânone e criar redes de solidariedade e trabalho coletivo. Aí nem o céu nos deterá. Seremos filósofas, físicas, químicas, astrofísicas, políticas ou o que quisermos ser. 

Quem escreveu esse texto

Yara Frateschi

É professora de ética e filosofia política na Unicamp e coautora de Manual de filosofia política (Saraiva).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.