Política,

A voz da estrela

A poeta Bruna Beber apresenta um estudo digno das camadas proféticas do falatório de Stella do Patrocínio

18abr2022

“Seu nome é Stella, vc sabe o que quer dizer Stella?
Estrela. Estrela do mar.”

Da seção “Stella por Stella”, em Reino dos bichos e dos animais é o meu nome

Dois livros seguem sendo imprescindíveis e enigmáticas singularidades radicais na literatura brasileira: As revelações do Príncipe do Fogo, de Febrônio Índio do Brasil, e Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, de Stella do Patrocínio, organizado por Viviane Mosé. O primeiro, que encantou e deixou estupefatos Blaise Cendrars e Mário de Andrade, permanece obscuro como uma flor-esfinge que desabrochou dentro da terra da loucura, esse hierofante de todas as poéticas desviadas até o ultrasser. O segundo ganha, finalmente, um estudo digno de suas diversas camadas hierofânicas no ensaio Uma encarnação encarnada em mim, de Bruna Beber, lançado pela editora José Olympio. A partir de sua pesquisa de mestrado defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Beber compõe um ensaio transdisciplinar e de atravessamento, mas não de decifração. 

A autora é uma espécie de costureira dos fios de saberes que formam o pensamento poético de Stella em suas fontes orais, ou seja, rastreia tanto a ontologia quanto a epistemologia da diferença dentro das falas-poema. Nelas, Beber encontra aspectos que as ligam às tradições antigas em uma composição que destaca na autopoiesis de Stella seus contornos divinos, revelando diálogos com o pensamento banto, griot e outros saberes milenares. 

Stella é a criadora de uma das mais densas e vibrantes cosmopoéticas do século 20 — eis algo que se desprende da leitura do livro, como a luz de uma supernova. Beber construiu um ensaio afetivo e rigoroso que evita falar por e opta por uma escuta-entre. Mais do que a defesa de uma poética da diferença, é um diálogo que nasce de uma tentativa de elaborar a arquitetura de uma escuta aberta e com o corpo, de ouvir a fala emanando de outro corpo e deixar-se imantar, de ser atravessada, de ser possuída pela poética e conceitos dessa fala, para além de qualquer recorte, seja ele sociológico, psicanalítico ou antropológico.

Lado de fora

Obviamente, Beber não abre mão, dentro da porosidade que requer a construção de um ensaio transdisciplinar, de conceitos psicanalíticos, antropológicos, sociológicos, mas estes não determinam, não delimitam, não nomeiam nem categorizam a fala-emanação-vida-poema de Stella do Patrocínio.

É um ensaio marcado pela proposição de um “lado de fora” para que seu tema possa não apenas respirar, mas ser expandido, contextualizado e, acima de tudo, cantado, porque de uma fala oratório-laico nasce um canto vivo. A seção final do livro é uma decantação da música irradiada por essa divina fala oratória de Stella.

Estamos diante de um ensaio que se dissolveu dentro de seu tema, que busca e encontra nele ontologias e metafísicas de uma encruzilhada tão potente entre o ser e o não ser, tão ultraviva como a voz estelar da matéria escura encarnada em uma mulher-hierofante de pele preta que o Brasil precisa ouvir se quiser interromper seu processo de autodestruição. 

Para aproveitar o entusiasmo que o ensaio de Beber desperta pela vida e obra de Stella, seria maravilhoso — e fica aqui a sugestão — se a editora Azougue relançasse uma versão ampliada de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, livro há tempos fora de catálogo e vendido a preço de ouro nos sebos. Uma encarnação encarnada em mim é um bem-sucedido esforço do afeto que soube intensificar a desconstrução e a recusa de um não lugar que parece ser a destinação de todas as extraordinárias singularidades negras deste país. 

A potência lírica e filosófica do existir de Stella é reconhecida como pertencente e similar ao que podemos chamar de feixe e espinha dorsal da cultura brasileira, formada por outras singularidades negras, mestiças, migrantes, imigrantes, nômades e indígenas. A Stella que emerge da leitura do livro de Bruna Beber nos olha do além mais além do infinito agora e sorri como a pombagira-esfinge de tudo o que ainda não alcançamos.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Ariel

Poeta e ensaísta, é autor de Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter) e acaba de lançar Afastar-se para perto: Ficção-Vida (Reformatório).