Literatura Negra, Poesia,

Provocações poéticas

Antologia de poemas de Oswaldo de Camargo aponta uma continuidade social da violência imposta aos cidadãos pelas mãos do Estado

05out2022

A reedição da coletânea Quinze poemas negros (1961) juntamente com alguns poemas dos livros O estranho (1984) e Luz & breu (2017) fixa sob a forma da antologia 30 poemas de um negro brasileiro o percurso temático e formal de Oswaldo de Camargo. Paralelamente, a antologia reinsere a obra do autor na contemporaneidade, mostrando-nos como ela interfere na cena política e estética de agora e como é afetada pelos aparatos teóricos e expressões de gosto vigentes entre os leitores e leitoras.

Em janeiro de 1919, Johan Huizinga escreveu no prefácio de O outono da Idade Média: “A origem do novo é o que geralmente nosso espírito procura no passado”. Em sua argumentação, o historiador complementa que essa volta ao passado é para compreendermos como foram despertados “os novos pensamentos e as novas formas de vida” que se tornaram relevantes posteriormente. A partir desse pressuposto, revisitar a obra poética de Camargo significa, por um lado, recuperar algo do que o autor viveu e escreveu como sujeito negro numa sociedade opressora e, por outro, observar que no cerne dessa sociedade tensionada adquirem têmpera algumas das demandas estéticas e políticas de base afrodiaspórica importantes para o sistema literário brasileiro atual. Uma dessas demandas se exprime na crítica ao cânone literário nacional, que silenciou outras práticas criativas com a linguagem avessas ao nosso éthos escravista e colonial.

O poeta faz do poema um objeto estético que nos revela outro mundo possível quando este se esfacela

A poética de Camargo foi entretecida para estabelecer conexões éticas e estéticas para as quais o status quo do discurso crítico demorou a atentar. Diga-se o mesmo para as obras de Maria Firmina dos Reis, Lino Guedes, Solano Trindade, Carlos Assumpção, Carolina Maria de Jesus, Oliveira Silveira, Cuti, Miriam Alves, Abelardo Rodrigues, dentre outros que forjaram conexões incontornáveis para quem busca um entendimento profundo das realidades brasileiras. Há que se considerar o papel decisivo das universidades públicas, e algumas privadas, que nos legaram um acervo consistente de reflexão crítica sobre essas autorias.

As provocações da poética de Oswaldo de Camargo suscitam a questão das interações e dos conflitos entre as circunstâncias histórico-sociais da escrita e o modus operandi do poeta. Nesse caso, Camargo responde às demandas sociais enfrentadas pelas populações negras, como a denúncia da violência e do racismo e a busca de uma identificação étnico-histórica entre o poeta e sua comunidade, e são elas que delineiam o corpus da literatura cuja pluralidade intrínseca a tornou conhecida como literatura negra brasileira e/ou literatura afro-brasileira e/ou literatura afrodescendente e/ou literatura afrodiaspórica.

Sem deixar de ouvir o apelo que as contradições sociais fazem ao escritor, Camargo demonstra que a pertinência do texto literário reside em sua condição de linguagem e forma construídas pela reflexão do autor. Por isso, a apreensão das emoções, resultantes de experiências trágicas ou sublimes, exige-lhes uma análise crítica do ambiente literário e extraliterário. Ao longo da trajetória de Camargo, essa análise mostrou-se necessária para que o poeta pudesse fazer do poema um objeto estético que nos revela outro mundo possível quando este em que vivemos se esfacela.

Árvore poética

Na antologia Luz & breu (1958-2017), publicada pela Ciclo Contínuo Editorial de São Paulo, chamávamos a atenção para o fato de que a oposição entre engajamento político-social e experimentalismo constituía um falso dilema no percurso de Camargo. Para o autor de textos seminais como O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira (Imprensa Oficial, 1987), o conhecimento da realidade se dá pelo conhecimento da linguagem que expõe aos nossos olhos tanto a ruína quanto a vitalidade das utopias. Muito do que hoje se apresenta como “o novo” na escrita afrodiaspórica brasileira já tinha sido mapeado por Camargo, seja porque o cenário social exibe a mesma e renovada estrutura de violência, seja porque a dialética da linguagem, apreendida por Camargo, se revela eficiente para extrair da notícia de jornal o poema e da restrição à liberdade um manifesto crítico-criativo.

Talvez por isso, o conjunto de obras do autor se apresenta como um território ainda a ser desvendado pelos leitores contemporâneos. Ao analisar as proposições estéticas e críticas da martinicana Suzanne Césaire, a teórica Anny-Dominique Curtius se refere à técnica botânica que transplanta uma herbácea de um ambiente para outro e observa como ela desenvolve raízes compatíveis com o novo ambiente. Nesse caso, pressupõe-se que ambos, a herbácea e o ambiente que a recebeu, se tensionam para configurar um novo ecossistema.

A presente antologia interfere de modo tensionado no ecossistema vigente da poesia brasileira. Por um lado, aponta um continuum social da violência imposta aos cidadãos pelas mãos do Estado e/ou de agentes responsáveis por conflitos localizados; daí a atualidade do poema “A bala que matou Ninico”. Atingida por uma “bala perdida”, a criança negra do poema de Camargo antecipou outras que continuam a ser vilipendiadas. Por outro lado, Camargo dialoga com um continuum literário no qual outras vozes negras e não negras tornam espesso o fio do poema-denúncia estendido pela sua poética.

“A bala que matou Ninico”, “Morte do leiteiro” (Carlos Drummond de Andrade), “Mineirinho” (Clarice Lispector”) e “Negro drama” (Racionais mcs) nos desafiam a interpretar a relação fato social/ficção literária como algo além do reflexo do primeiro no segundo. Dizer o real sob os deslizamentos da linguagem poética é contestar o que em nós é certeza de compreensão da realidade. Por isso, no poema “A manhã”, Camargo indica a perquirição como um mecanismo para se desmontar a opressão e estabelecer o terreno específico do poema:

“Eu penso que a manhã não interpreta bem
a superfície escura desta pele
que pássaro nela vai pousar?”

Para evitar a redução das relações sociais, em geral, e da literatura, em particular, à ordem das convicções, Camargo apreende o mundo como um jogo de interações e conflitos entre a memória e os antepassados, a vida cotidiana e as ficções da história, a sua vontade pessoal e a dos poetas seus contemporâneos. Sua linguagem poética se mantém atenta aos grandes e pequenos acontecimentos, ao grito coletivo e ao pranto nutrido na intimidade. Dessa maneira, ele reivindica o conhecimento possível através da poesia como um direito visceral do sujeito e das comunidades às quais pertence. É valendo-se dos muitos eixos da linguagem que Oswaldo de Camargo se habilita a interpretar algumas das tramas pessoais e coletivas mais contundentes do passado e do presente.

Quem escreveu esse texto

Edimilson de Almeida Pereira

É autor de Um corpo à deriva (Macondo).