Política,

A ficha corrida da ‘famiglia’ Bolsonaro

Em ‘O negócio do Jair’, Juliana Dal Piva deixa um dossiê pronto para a Justiça

01dez2022

Derrotado nas urnas por Luiz Inácio Lula da Silva, Jair Bolsonaro deixará de ser presidente em breve. Seus pecados, porém, não irão desaparecer com a passagem da faixa presidencial, até porque ficaram bem documentados — o grosso deles no livro O negócio do Jair, da jornalista Juliana Dal Piva.


Em ‘O negócio do Jair’, Juliana Dal Piva deixa um dossiê pronto para a Justiça

O livro é um dossiê do que alguns chamavam “esquema das rachadinhas”, mas que a autora chama como se deve: organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro. Sem rodeios, um esquema de corrupção multimilionário liderado pelo atual presidente da República.

Os Bolsonaros agem como uma famiglia. Jair é o chefe, mas suas mulheres e seus filhos são extensões dele e agem à sua imagem e semelhança. Jair Bolsonaro foi primeiro vereador pelo Rio de Janeiro e depois deputado federal por 27 anos. Sua primeira mulher, Rogéria, e seus três filhos mais velhos o seguiram por cargos na Câmara de Vereadores do Rio, na Assembleia Legislativa do estado e na Câmara dos Deputados, em Brasília. O que Dal Piva mostra é que em todos os seus gabinetes foram contratados funcionários com salários altos, pagos com dinheiro público, que eram quase inteiramente devolvidos aos chefes em troca de uma mesada. “Funcionava como uma espécie de corporação e permitiu ao clã forjar um estilo de vida e uma imagem pública que levariam Jair ao cargo mais alto da República”, explica Dal Piva.

Ela é dessas repórteres indômitas, que não foge de tocar à porta de suspeitos, nem de correr — literalmente — atrás das fontes fugidias. Dal Piva passou meses buscando quem estivesse disposto a falar e encontrou apenas poucos militares próximos a Bolsonaro. As demais fontes diziam ter medo e batiam a porta na cara da jornalista tão logo ela se apresentava.

Tudo mudou quando o jornal O Estado de S. Paulo revelou que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) acusou movimentações suspeitas na conta de um assessor de Flávio Bolsonaro, o famoso Fabrício Queiroz. Uma vez na rua, a história ganhou vida própria e os contatos começaram a retornar. O primeiro deles procurou a jornalista ainda de madrugada. “Temo perder meu emprego. Ao mesmo tempo, gostaria de contribuir de alguma forma para desmistificar o ‘mito’. Foram anos de convivência com ele e presenciei muita coisa [ruim]”, escreveu a fonte numa troca de mensagens.

Ao longo de quatro anos, Dal Piva conseguiu entrevistar cinquenta pessoas para montar o quebra-cabeça do que era conhecido entre os participantes como “o negócio do Jair”, um esquema operado pelo subtenente da reserva da PMERJ Fabrício Queiroz, amigo de Bolsonaro há três décadas que até poucos anos trabalhava para Flávio Bolsonaro. “Com dinheiro vivo, o primogênito do presidente pagava despesas pessoais, comprava imóveis e injetava esses recursos no caixa de uma loja de chocolates de sua propriedade em um shopping da Zona Oeste do Rio”, escreve ela.

O esquema das rachadinhas permitiu forjar uma imagem que levaria o chefe do clã à presidência

O fio da meada começa em documentos da década de 90, quando Bolsonaro se elegeu para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez, passa pela compra de 51 imóveis com dinheiro vivo pela famiglia, e conclui com as manobras de Bolsonaro, já presidente, para tentar proteger Flávio das investigações no Ministério Público do Rio de Janeiro e no Supremo Tribunal Federal.

Fabrício Queiroz, procurado pela imprensa e pela Justiça, foi encontrado pela polícia escondido na casa de Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro. E quando lhe faltou dinheiro, Queiroz procurou a ajuda de Adriano da Nóbrega, outro amigo de longa data da famiglia. Seria um amigo mais entre tantos no esquema, não fosse Nóbrega “matador de aluguel” que “ingressou como miliciano nas fileiras do crime organizado carioca e passou a liderar um grupo que ficou conhecido por ‘Escritório do Crime’, em Rio das Pedras”, como descreve Dal Piva. Neste caso, ele merece um capítulo à parte no livro.

A mulher e a mãe de Adriano da Nóbrega eram lotadas no gabinete de Flávio como funcionárias fantasmas no esquema de rachadinha. E seu nome só se tornou conhecido fora dos círculos mafiosos quando a polícia passou a investigar as milícias do Rio em busca do mandante do assassinato de Marielle Franco, morta com tiros disparados por Ronnie Lessa, vizinho de condomínio de Bolsonaro. Nóbrega não foi envolvido no caso Marielle, mas poderia ter explicado muita coisa se não tivesse sido morto em uma operação policial muito mal explicada na Bahia. Ainda há muito o que se investigar.

História em curso

O Negócio do Jair é um inventário importantíssimo da presidência de Jair Bolsonaro, mas ainda é uma história em curso. Pena é que jornalistas que verdadeiramente fazem investigações (e não só se fiam por inquéritos policiais), como Dal Piva, não sejam remunerados para se dedicar somente a escrever livros, como acontece nos Estados Unidos, por exemplo. O investimento das editoras em apurações inéditas contribuiria e muito com a democracia, já que a imprensa passa por um esvaziamento das redações e dos salários, empurrando os melhores profissionais para o mundo corporativo. (Dal Piva, menos mal, segue como repórter, hoje no UOL).

A certeza de que um novo livro com informações exclusivas seria um sucesso ainda maior fica por conta dos próprios investigados. Quando Fabrício Queiroz teve a cara de pau de disputar a uma vaga de deputado estadual no Rio de Janeiro, a jornalista entrou mais uma vez em contato para saber a qual partido iria se filiar. Ao negar o pedido de entrevista com a justificativa de que a famiglia o havia proibido, Queiroz fez questão de deixar registrado seu talento como investigadora. “Você é terrível, Ju. Boa jornalista. Faz bem seu trabalho.”

Quem escreveu esse texto

Carol Pires

Jornalista, é redatora do Greg News, na HBO.