Música,

Outro legado de Rita Lee

A cantora e compositora morta em maio deixou escritas suas reflexões sobre os mistérios existenciais e o enfrentamento de uma doença letal

28jul2023

Transformar em canção o sentimento visceral de proximidade da morte é um labor corajoso e delicado, exercido por alguns poucos e especialíssimos artistas. Johnny Cash o fez em 2003, ressignificando a letra da composição “Hurt”, da banda Nine Inch Nails, para entregar uma melancólica carta de despedida em forma de música e imagem.Mais impactante ainda foi o caso de David Bowie que, durante as filmagens do vídeo de sua “Lazarus”, soube que o seu câncer de fígado não poderia ser derrotado. No clipe, o astro inglês aparece deitado num leito hospitalar e com os olhos vendados, cantando versos como “olhe aqui para cima, estou no Céu”. Bowie morreu em 10 de janeiro de 2016, três dias depois da divulgação do vídeo.

Ao receber o diagnóstico de câncer no pulmão esquerdo, em abril de 2021, Rita Lee também quis registrar e compartilhar com o público a visão de uma pessoa e artista confrontada com a possibilidade real do fim de sua vida. Entretanto, a hitmaker definitiva da música brasileira preferiu seguir por uma via talvez menos chamativa — embora mais crua e aprofundada — do que as escolhidas por Cash e Bowie. Rita escolheu a literatura como veículo para a árdua tarefa, passando para o papel, com poucos filtros, não apenas suas reflexões diante dos mistérios existenciais como também as nuances da experiência terrivelmente dolorosa de se enfrentar uma doença letal. No processo, relatou ainda as epifanias e os pequenos êxtases revelatórios que a situação lhe trouxe, muitos dos quais atribuídos ao amor familiar que recebeu durante o período.

O resultado é Rita Lee: outra autobiografia, publicado em 22 de maio de 2023, apenas quatorze dias depois da morte amplamente chorada da cantora e compositora e sete anos depois do lançamento de Uma autobiografia, no qual repassava a sua vida até os 68 anos de idade. Em texto relativamente curto, distribuído em 192 páginas, o volume póstumo nos convida a dançar entre duas facetas da autora.

‘Para que fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela [a morte] com humor?’

De um lado está a Rita que identificamos imediatamente, ainda plenamente dotada do humor, sagacidade e doçura que sempre a caracterizaram. Sua prosa flui num ritmo que nos leva a quase escutar o seu timbre de voz e sotaque paulistano. Ela mantém o compromisso com a linguagem pop, recorrendo a referências musicais (Amy Winehouse, Anitta, Aracy de Almeida, Beatles) e cinematográficas (Carrie, a estranha; O exorcista; O silêncio dos inocentes; Um estranho no ninho) mesmo quando descreve o espantoso calvário físico e psíquico que atravessa.

Sua alma de tiradora de sarro segue firme quando batiza os companheiros de ala do hospital de “oncolegas” ou seu tumor de “Jair”. “Para que fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela [a morte] com humor? Desta vida não escaparemos com vida”, escreve. Em passagem particularmente emotiva, mas revestida de verniz brincalhão, ela recorda o sofrimento de sua mãe em sessões de quimioterapia décadas antes, mencionando o “desejo de me curar daquele câncer em homenagem a ela, como uma vingança tipo máfia siciliana”.

Ao mesmo tempo, o leitor mergulha em moods da estrela que não conhecia: a Rita aflita e trêmula, “chorando como um bebê largado na lata de lixo na chuva”, a Rita insone e em crise de abstinência tabagista, a Rita indignada com os mortos da pandemia, a Rita apocalíptica enfrentando a barra mais pesada de sua vida.

Em Outra autobiografia, ela enumera todos os traumas que suporta ao longo do que viriam a ser seus dois últimos anos. Do choque do diagnóstico ao sofrimento com os tratamentos de imuno, rádio e quimioterapia, passando pelo horror ao uso da sonda nasoenteral, o martírio de precisar aumentar seu peso de 37 quilos (“comer sem fome é uma tortura”) e as recorrentes crises de pânico que a acometem, sem desviar de episódios escatológicos. “Do alto da minha insônia, eu suspeitava que estivessem cuidando do meu enterro”, desabafa, rememorando a primeira fase da doença, quando ainda lutava para digerir a sua nova condição. “E mais uma vez via o dia nascer rouca, com olheiras até o chão, cheia de tubos e acessos nos dois braços”.

Do embate entre a bipolaridade de perspectivas que testam sua resistência emocional, surgem algumas das passagens mais marcantes do livro. Passados os baques iniciais das más notícias trazidas por cada nova etapa clínica, Rita quase sempre encontra um novo viés, em busca de algum equilíbrio. “Aparecia um lado de agradecer aos céus por ter mandado essa doença que, no fim, veio me curar física, mental, psicológica e espiritualmente”, anota, em trecho relativamente otimista. “Fico perambulando pela casa vendo as traquinadas e os bichos como se fosse pela última vez. Presto mais atenção nos detalhes que antes passavam despercebidos”, afirma em outro, bem mais resignado. Aos vários animais que povoam a sua morada, vale ressaltar, dedica diversas páginas de carinho e agradecimento.

Rita celebra também nunca ter se apegado a nenhum dogma, algo que sempre a ajudou a lidar com as próprias incertezas e mudanças de pensamento, e estabelece os limites para a própria dor, emparelhando direito à eutanásia e espiritualidade: “Que me deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente; queria estar atenta para logo recomeçar o meu caminho em outra dimensão”. Também são especiais as suas análises detalhadas das personalidades das cuidadoras que a acompanham em casa, sua defesa da medicina indígena e a “benção” pedida a uma enfermeira negra no hospital para poder usar turbante, quando sente toda a “nudez” de já não dispor mais dos cabelos.

A visita de Rita à exposição em sua homenagem realizada no Museu da Imagem e do Som de São Paulo rendeu outro momento comovente do livro. Ela visitou a mostra antes de sua abertura, no segundo semestre de 2021, e lembra dos olhares tristes que detectou ao chegar ao museu em uma cadeira de rodas, mas também das várias caixas de mensagens de apoio, enviadas pelo público da exposição. E conta que, no decorrer de sua carreira de mais de cinquenta anos, foi destinatária permanente de cartas de pessoas que diziam se sentir excluídas.

Colecionador de mim

Mais uma vez, a Rita escritora contou com o reforço do pesquisador musical e editor Guilherme Samora, creditado por ela como “Colecionador de Mim” no livro de 2016 e como “filho/ editor/ melhor amigo” em Outra autobiografia. Samora, que recentemente divulgou a existência de três letras inéditas de Rita proibidas pela censura em 1975, é o “fantasma” que comparece em alguns capítulos para acrescentar, arredondar e corrigir dados esquecidos ou mencionados com imprecisão pela autora. O recurso funciona com leveza em quase todas as vezes em que é empregado, exceto quando descamba para a bajulação à cantora, que nos livros se faz desnecessária, diante da consolidação do gigantismo dela enquanto ícone pop, símbolo feminista e personalidade adorada pelas massas.

Quem escreveu esse texto

Daniel Setti

É jornalista, músico, DJ e curador musical.