Música,

Gilberto Gil para o Brasil de hoje

Livro faz inventário completo de canções do compositor baiano e cria uma conversa aberta entre o artista e Carlos Rennó

28jul2022

“O compositor é um ser muito misterioso. É um ser humano, não apenas uma máquina de fazer versos. Cada canção reflete o pasmo dele diante da grandeza do mistério.”
Gilberto Gil 

A nova edição atualizada de Todas as letras, organizada por Carlos Rennó, é uma ótima oportunidade para avaliar com mais profundidade o pensamento e a metafísica das canções do poeta, cantor, compositor, político e ativista negro Gilberto Gil. Letras de músicas são um território híbrido dentro da literatura que a antropologia, a sociologia, a política e a filosofia deveriam explorar mais, pois são comunicações diretas com o chamado inconsciente coletivo de um povo. Há estudos que desenham uma profunda abordagem filosófica do canto popular elaborados por Leda Maria Martins e ótimas abordagens histórico-antropológicas nos livros de Zuza Homem de Mello. As canções são parte essencial da nossa ontologia e desfazem o vaticínio de Oswald de Andrade, que dizia que o Brasil não tinha ontologia. Nossa ontologia está delineada por nosso cancioneiro popular! A beleza das canções é o indicador de nossa ontologia! 

Todas as letras, além de elaborar um inventário completo das canções, é, em sua estrutura dialógica, uma espécie de conversa aberta entre Gil e o também poeta letrista Carlos Rennó, que recupera a historicidade, o contexto da época e a dimensão da subjetividade que envolve a criação das canções como se ela fosse um véu às avessas. A aura deste livro é uma expansão do método usado por Fernando Faro no programa Ensaio da TV Cultura: ouve-se com mais nitidez a voz do cantor, e os significados das canções se expandem para outras paragens, que transfiguram o contexto biográfico em algo maior. 

O que as canções de Gilberto Gil têm a dizer ao truncado, pantanoso e enevoado Brasil de hoje? Do visionarismo de feição existencialista com influência do concretismo ao lado de um engenhoso filtro místico-religioso das canções dos anos 60 e 70, até a leve mutação destas linhas de força na extraordinária trilogia “re” (Refazenda, Refavela e Realce), para uma espécie de síntese ambivalente entre as questões metafísicas e as sociais que nestes três discos alcançou seu opus. Um verso como “Não se incomode/ O que a gente pode, pode/ O que a gente não pode, explodirá/ A força é bruta/ E a fonte da força é neutra/ E de repente a gente poderá”, da canção “Realce”, aponta com muita antecedência para uma versão brasileira e suave daquilo que o pensador alemão Peter Sloterdijk chamou de “eurotaoismo”. Há um certo devir-Brasil que se aproxima de um “Brasiltaoismo” em suas canções, que sempre estiveram em consonância com o pensamento taoista em oposição ao pensamento positivista que está na gênese das ideias ligadas à nossa ambígua e bicentenária independência.

Nas canções, percebemos que a alegria, mais do que a ilusão, é o principal vetor de um devir-Brasil

Estamos vivendo hoje o grau máximo desta força bruta mencionada na canção, mas ela mesma joga uma luz sobre a natureza desta força ao mencionar sua fonte como neutra e apontar uma possibilidade de um poder que está em nós, nas comunidades, nas coletividades e que surgirá de repente. Nas canções, podemos perceber que a alegria, mais do que a ilusão, é o principal vetor de um devir-Brasil. 

Gil é um filho de sambistas-filósofos como Vassourinha, Donga, Monsueto, João da Baiana e irmão de João Gilberto, mas os amplia e transfigura de um modo antropofágico ao acrescentar tanto o pensamento oriental quanto a física quântica, ao lado de uma feminização ou femi-niza-ação, como escreveu Miriam Alves, como parte desse devir. Isso fica mais evidente na canção “Super homem (a canção)”. Assim, podemos pensar que “Realce” e “Super Homem” se complementam: o Brasil explodirá quando realizar seu Devir-Mulher. 

O exercício que tentamos realizar no limitado espaço de uma resenha é o de expor e destacar o pensamento dentro das canções, e isso é possível tanto com Gilberto Gil quanto com Bob Dylan e Paul McCartney — curiosamente, esses três criadores atuam na mesmíssima fronteira híbrida entre literatura e filosofia, ou seja, as canções de Gil criam conceitos. Nelas, ele realiza um certo elogio da esperança deslocada para o tempo presente, que é bergsonianamente ressaltado como um campo de forças do viver, onde estas forças atuam de modo enfático e surpreendente, gravitando em torno da alegria e de uma serenidade que seriam um quantum da existência. 

“Fé é ação”

Também é inegável o pensamento por trás de gestos sutis como o uso de “faiá” em “Andar com fé”, que dialoga e toma partido da poiesis efetuada sobre a língua portuguesa que torna explícita sua tensão com a oralidade na obra da romancista e pensadora Carolina Maria de Jesus. O próprio Gil comenta no livro “É isso aí. ‘A fé não costuma faiá’”: é para quem fala assim que ela não costuma “faiá”. Esta aproximação sutilíssima é tão importante quanto sua ligação mais declarada com os poetas concretos. 

O tema recorrente nas canções de Gilberto Gil é o amor, e ele vai ganhando contornos de imanência como na canção “A linha e o linho” com um verso como: “É a sua vida que eu quero bordar na minha/ Como se eu fosse o pano e você fosse a linha/ E a agulha do real nas mãos da fantasia/ Fosse bordando, ponto a ponto, nosso dia a dia”. 

Todos os pontos dessa costura de conceitos costurados com enorme engenho e lirismo tornam o cancioneiro de Gilberto Passos Gil Moreira um mosaico de proposições para sairmos do atual pântano. O pensador indiano Jiddu Krishnamurti costumava dizer, em suas inúmeras conferências, que “fé é ação” e, com Gil, aprendemos que há beleza no agir, e é esta beleza que irá nos salvar.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Ariel

Poeta e ensaísta, é autor de Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter) e acaba de lançar Afastar-se para perto: Ficção-Vida (Reformatório).