Memória,

Como desconstruir um herói

Autora peruana Gabriela Wiener revê a figura do tataravô, um explorador de sítios arqueológicos sul-americanos no século 19

10nov2023 | Edição #76

O tataravô narcisista, ou assim descrito, da escritora e jornalista peruana Gabriela Wiener conquistou alguns objetivos profissionais como explorador de sítios arqueológicos, mas o principal deles foi ter forjado um espaço para manter seu nome na posteridade em museus e livros de história e literatura. Esse é um resumo do retrato que o austríaco Charles Wiener (1851-1913) ganha no livro Exploração, sob o olhar de sua tataraneta.

Ao empreender uma investigação sobre seus antepassados, Gabriela vai abrindo brechas para uma narrativa de natureza autoficcional, na qual descreve a busca de uma identidade contextualizada nas ramagens culturais de uma ex-colônia, o Peru. As famílias que constituem a árvore genealógica da autora mantiveram retratos do ilustre explorador em suas paredes e criaram grupos em redes sociais para enaltecê-lo. Gabriela crava que ele era um embusteiro.


Exploração, de Gabriela Wiener

Um dos maiores feitos de Charles, conta a escritora, foi “quase ter descoberto Machu Picchu”, a cidade perdida dos incas no Peru, ponto de peregrinações. As poucas peças que ele vendeu para o governo francês, exibidas em museus, são tratadas pela autora como pilhagens de um povo. Quanto pior nos parecem as ações de Charles em seu percurso, mais ilustre ele se torna. Concomitantemente, vai havendo o apagamento da importância de outros membros da família, especialmente mulheres indígenas, como a tataravó.

A autoestima abalada na infância e na adolescência por um padrão estético europeu que ela não atendeu vai se reconstituindo conforme a investigação progride. Gabriela se define como uma “chola”, sua pele é escura, e traumas antigos eclodem em relacionamentos amorosos recentes, ao mesmo tempo em que a narradora se abre para formas de amor livres de fórmulas tradicionais. Muitas das crises afetivas surgem desse choque. Ela tem uma relação poligâmica com um homem e uma mulher, mas sofre com a insegurança e com o medo de não ser correspondida pelos próprios pares.

Traumas 

“Você acha que mudou a partir de sua investigação?”, pergunto a ela numa troca de mensagens de texto, áudio e imagens — incluindo uma foto que ela mandou de uma piscina em Ibiza, cidade da Espanha onde passava o fim de semana. “Mudei ao perceber que não devo minha descendência apenas a um lado dos meus ancestrais, no caso o lado Wiener, mas que existe uma outra ancestralidade que me define, mestiça, bastarda, torta, contraditória”, responde.

‘Mudei ao perceber que não devo minha descendência apenas a um lado dos meus ancestrais’

Numa passagem, ela coloca o leitor diante de um trauma típico de sua memória. “Na época em que as crianças do colégio me xingavam de preta, eu encontrava refúgio pegando na mão dele, para que todo mundo visse que aquele senhor só um pouco branco era meu pai”, conta a narradora.

O fluxo de sua história embarca em um momento de luto. O pai morreu, e ela se sente à vontade para abrir o celular dele e apresentar ao leitor um caso extraconjugal. Expõe o caso com certa naturalidade, ainda que elenque o fato como mais um elemento de uma rede de falsidades.

Gabriela vai aos poucos se investindo de um rancor por meio do qual procura agir “não da maneira com que as coisas foram programadas, mas ao contrário”. “Nesse sentido, graças ao processo que iniciei com Huaco retrato [o título original se refere a um tipo de produção indígena com cerâmica e barro] encontro-me num estado maníaco, desrespeitoso com a ordem, com o ímpeto descolonizador, um estado de graça em geral”, conta na conversa.

Sentido científico

O livro é fruto de um desejo que demorou mais de uma década para se concretizar, por razões metodológicas e de produção. A autora sentia necessidade de fazer viagens. A narrativa começa com uma passagem pelo Musée du quai Branly, quase ao pé da Torre Eiffel, “Um daqueles museus da Europa que abrigam grandes coleções de arte não ocidental, da América, Ásia, África e Oceania”.

Embora com traços de ficção, Gabriela vasculha um sentido científico em sua observação do passado histórico, criando trechos ensaísticos de fôlego político: “Não acredito que possamos entender como funcionava a pesquisa histórica e arqueológica de época apenas analisando o comportamento de uma série de indivíduos como Wierner”, diz a narradora do livro. E conclui:

Ele não era um caso isolado de alguém que se corrompeu, pairando à margem da sacrossanta instituição científica, mas era parte orgânica desta, respondendo a um sistema acadêmico masculino, ocidental, de influências e relações de poder.

É um formato literário disruptivo também porque joga o leitor num terreno de subjetividades. “Certos livros, ligados a certas lutas, não são menos ou mais literários do que outros. Quem o toma como manifesto político o faz por meio de uma subjetividade. Quem o toma apenas como literário, também”, diz. “Entendo que a arte é precisamente abrangente porque permite um encontro da história e do passado com o presente, incluindo-se sonhar com o futuro.”

Para a escritora, toda criação é política e pode ser lida como uma interpretação da realidade em que vivemos, em nível comunitário. “Olhando para trás, acho que não há obra que eu tenha feito que não tenha se dedicado a algo pessoal, mas não fico ensimesmada, pois me importa a inter-relação com o que acontece do lado de fora”.

Gabriela é autora também de Sexografias (Foz), de 2008, uma coleção de histórias eróticas em primeira pessoa, na qual se inclui o consumo de pornografia, a ejaculação da mulher, visitas a casas de suíngue e doação de óvulos.

No caso de Exploração, com tradução de Sérgio Molina, é possível que a subjetividade dite com força os contornos desses conflitos geracionais e sociais retratados pela autora, nos quais vibra uma boa dose de rancor. É sintomático como sua análise recai sobre a figura do tataravô como se ele fosse um personagem que nos acompanha nos dias de hoje, sentenciando-o sob outros valores, mais de um século depois de sua morte, em 1913.

Esse é um recurso que só não soa ruidoso porque o diálogo se dá com a imagem de um homem que a sociedade e a família dele ainda sustentam. No fundo, o entrave da tataraneta é com contemporâneos que mantêm as vendas nos olhos em relação a uma estrutura antiga determinando novas relações.

Quem escreveu esse texto

Gustavo Fioratti

É editor e jornalista da Folha de S.Paulo.

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.