Literatura,

Sonho decifrado

No relato de uma relação abusiva entre mulheres, Carmen Maria Machado cria um vocabulário para lidar com o trauma e o luto

26ago2021 | Edição #49

Uma amiga em comum apresenta Carmen a uma mulher misteriosa cujo nome é omitido. As duas têm várias afinidades e interesses em comum, e tentam ser amigas. O desejo é mais forte e elas começam a se relacionar. Com o tempo, “a mulher da casa do sonhos” passa a reagir com fúria desproporcional a situações banais. Os gritos e xingamentos vão dando lugar a acusações e ameaças cada vez mais agressivas. Cria-se uma dinâmica de brigas, discussões e momentos de reconciliação. Até que a violência psicológica recomeça. Um dia o namoro acaba. No entanto, esse não é o início nem o fim dessa história.
 

Na casa dos sonhos, de Carmen Maria Machado, publicado pela Companhia das Letras

Reduzir Na casa dos sonhos às memórias de relacionamento abusivo entre mulheres é a forma mais rápida de apresentar o livro e a que menos destaca suas qualidades. Embora ainda seja rara a bibliografia que aborde como integrantes das chamadas minorias — pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres — podem reproduzir preconceitos e violências dentro de suas comunidades (outro exemplo é o excelente Garota, mulher, outras, de Bernardine Evaristo), o novo livro de Carmen Maria Machado merece atenção pelo cuidado com que a autora trata esse assunto complexo e pela forma como a história é contada. Com capítulos curtos e uma estrutura não linear que evoca o caráter fragmentário e arbitrário da memória, a narrativa articula características individuais e questões sociais, aproximando-se do ensaio, mas sem esquecer que até a não ficção carrega um pouco de invenção. O livro alterna entre recordações da escritora e reflexões sobre arquivos e a teoria queer, na tentativa de compreender o silêncio em torno do abuso e da violência doméstica entre pessoas LGBTQIA+.

Além da hábil construção, atenta à maneira como filmes e livros contribuem para a formação de um imaginário social sobre relacionamentos, várias vezes reproduzindo a violência de gênero e a LGBTfobia de nossa sociedade, Machado também faz várias referências a estruturas narrativas, técnicas de escrita e clichês. O leitor está diante de uma narradora que conta sua história refletindo sobre suas motivações: contribuir para um arquivo de relatos que pode ser útil a outras pessoas e desobedecer à mulher que lhe disse para nunca escrever sobre as agressões. Também analisa contos de fada observando como segredo, feitiço e sofrimento passam a fazer parte do que entendemos como relação afetiva.

A estrutura metalinguística criada por Machado não deixa que os leitores esqueçam que qualquer história é uma construção. Seja no momento em que namorava “a mulher da casa do sonhos” e teve oportunidades de terminar o relacionamento, mas não o fez por medo ou inexperiência, seja quando conta sua experiência destacando o que há de singular e de banal no que viveu, uma vez que outras mulheres passam por situações semelhantes todos os dias.

A casa e o sonho ganham diferentes significados ao longo do livro. Os títulos dos capítulos reforçam como os sentidos podem ser fugidios conforme as páginas avançam. Símbolo do aconchego e da estabilidade, a casa se torna o espaço onde o abuso acontece sem testemunhas. O sonho, o ideal de uma vida feliz a duas (ou a três), ganha tons sombrios e revela o que a consciência não deseja reconhecer.

O livro tenta compreender o silêncio em torno do abuso e da violência doméstica entre pessoas LGBTQIA+

Na literatura e na poesia, a polissemia pode servir à experimentação com a linguagem, mas na experiência do abuso se relaciona com a instabilidade entre significante e significado na comunicação do casal. Quando quem diz amar agride, algo perde o sentido. Quando sua percepção é constantemente questionada, invalidada, como colocar limites? Escrever as memórias não é só registrar uma versão dos fatos, mas usar as palavras de forma a deixar claro o que é o amor, a agressão, o trauma, o passado.

Em seu livro de estreia, O corpo dela e outras farras, a autora usou elementos da ficção especulativa, do terror e do suspense para abordar a experiência de ser mulher em um mundo hostil. O medo faz parte de experiências comuns, mas pode ganhar outras nuances quando se vive temendo ser agredida ao demonstrar afeto pela namorada em ambientes públicos ou que um momento de intimidade se torne violento. Já havia referências a relações abusivas entre lésbicas no conto “Mães” e à instabilidade entre a mente, o corpo e a casa em “A residente”. No entanto, a habilidade da escritora de criar tensão a partir do cotidiano está ainda mais afiada em Na casa dos sonhos, e Machado também brinca com as convenções narrativas e as expectativas dos leitores por desfechos edificantes ou vinganças, tão comuns na cultura pop.

Como a vida das mulheres transcorre entre riscos, Machado lida honestamente com a coexistência entre o desejo e o medo, explorada em fantasias consensuais, mas também banalizada em histórias nas quais mulheres ignoram o perigo. Sem moralismos, ela discorre sobre como o prazer e o sexo influenciam na escolha de continuar em um relacionamento que não vai bem. A autora tenta se aproximar da complexidade da experiência de sentir tesão, alegria, perplexidade, medo e exaustão, de compreender racionalmente a necessidade de terminar a relação, e ainda assim continuar. Apresentando várias referências que são parte da pesquisa da autora, o livro não oferece respostas sobre como lidar com o abuso na comunidade LGBTQIA+, mas aposta no poder de uma história bem contada para transmitir aos leitores uma linguagem para que lidem com as próprias experiências.

Na casa dos sonhos foi escrito com a convicção de que a literatura é capaz de nos dar um vocabulário para compreender o luto, a solidão e o trauma e para recompor nossa vida apesar de passarmos por momentos difíceis. As memórias de Machado nos estimulam a refletir sobre como a sociedade naturaliza o ciúme, a necessidade de controle e as disputas de poder em relacionamentos afetivos de forma que pessoas heterossexuais e LGBTQIA+ reproduzam essas dinâmicas.

O livro não se limita ao namoro entre a escritora e “a mulher na casa dos sonhos”. O desfecho, com direito a plot twist e final feliz, inclui os meses seguintes ao término, quando Machado compreende que foi vítima de abuso, sente dificuldade de comunicar sua experiência, encontra o apoio de quem viveu situações semelhantes e começa a retomar sua vida, seu desejo e sua escrita. Poder contar a própria história ajuda a dar coerência ao caos e à falta de sentido da vida. É também uma possibilidade de encontrar alguma felicidade.

Quem escreveu esse texto

Stephanie Borges

Jornalista, ganhou o prêmio Cepe de poesia com Talvez precisemos de um nome pra isso (no prelo).

Matéria publicada na edição impressa #49 em julho de 2021.