Literatura,

Os cientistas místicos

Livro inclassificável de Benjamín Labatut virou fenômeno editorial ao misturar ficção e biografias de grandes nomes da ciência

27maio2022

“Romance de difícil classificação”, diz o texto da quarta capa, embora o livro tenha sido vendido como “romance de não ficção”, um termo absurdo pela sua aparente contradição. Teóricos das universidades devem estar recorrendo a ideias como “literatura pós-autônoma” ou “hibridismo”. Mas o que diabos, afinal, é Quando deixamos de entender o mundo, do chileno Benjamín Labatut, nascido em Rotterdam (Holanda), que teve uma aparição meteórica no meio literário?

Nas palavras do autor, o primeiro capítulo contém somente um parágrafo de ficção, isto é, de matéria inventada. No entanto, a quantidade de imaginação toma conta do livro progressivamente, e fatos se mesclam com ficção cada vez mais, a ponto de se tornarem indistinguíveis, exceto para quem possui um conhecimento da biografia dos cientistas retratados. Labatut escolheu figuras tão esquisitas — o físico Erwin Schrödinger, o matemático Alexander Grothendieck — como protagonistas que boa parte do que é dito sobre elas parece impossível, seja verdade ou mentira.

Assim, o livro é composto de quatro narrativas que se mostram excessivas em detalhes, como se lêssemos verbetes desvairados de enciclopédia a respeito dos cientistas mais importantes dos últimos séculos, cuja vida e obra são de difícil compreensão. Bastaria um erro de catalogação e Quando deixamos de entender o mundo podia parar no setor de divulgação científica.

A inserção de não ficção no terreno literário aumentou tanto nos últimos anos que virou tendência. A base, aqui, parece ser menos a do jornalismo literário de um Truman Capote e mais as narrativas de W. G. Sebald e do premiado Éric Vuillard (de A ordem do dia), que se atém aos fatos, mas adiciona a literatura pelo ponto de vista do narrador: irônico, debochado e de vez em quando poético.

A temática do livro parece ter suas raízes no cultuado O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, que também mescla fato e ficção ao abordar revoluções científicas. O livro de Pynchon abre com uma epígrafe de Wernher von Braun, que construiu uma das armas de maior destruição para o regime nazista, enquanto no fundo estava interessado em descobrir se há vida após a morte e se a nossa alma é imortal. Von Braun acabou se mudando para os Estados Unidos e trabalhando para a Disney e para a Nasa. Mística e ambivalência política: essência que se repete em quase todos os nomes que ocupam o panteão da ciência moderna abordado por Labatut.

A um passo da loucura

Os personagens retratados por Labatut são tão multifacetados quanto Von Braun. Alexander Grothendieck, o mais importante matemático do século 20 (quase ninguém fora do meio o conhece, pois seu trabalho é incompreensível para leigos), estava preocupado em descobrir a origem dos sonhos e acreditava que todos tinham a mesma fonte, um deus conhecido como Le Rêveur, “o sonhador”.

Um tópico inescapável ao se abordar as revoluções científicas do século 20 são, justamente, as mudanças de maneiras de ver o mundo, e como o conhecimento de “exatas” transborda para além de suas fronteiras. Boa parte dos pesquisadores que avançam com profundidade no seu campo acaba mergulhando em delírios místico-filosóficos; o exemplo mais conhecido é o de Robert Oppenheimer, que famosamente citou o Bhagavad Gita ao criar a bomba atômica: “Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos”.

Labatut reafirma algo que já foi dito, mas que nunca é assimilado: a ciência e a tecnologia não são neutras

A física quântica, em especial, por mostrar que o comportamento das partículas subatômicas não segue as regras clássicas da mecânica, é um prato cheio para reflexões de natureza filosófica, o que também abre portas para todas as picaretagens, como o livro/filme O segredo. No entanto, deparados com uma matemática alienígena regendo o funcionamento das partículas elementares, Schrödinger e Heisenberg, dois físicos que figuram no quarto texto de Labatut, passam raspando pela loucura. O que conseguem enxergar parece desafiar a compreensão humana, e as buscas por explicações acabam, muitas vezes, recorrendo à religiosidade metafísica.

O astrônomo Karl Schwarzschild, pioneiro na idealização de buracos negros, sentia um verdadeiro horror por sua descoberta, pois “como a luz não podia sair dali, nunca poderíamos vê-la com os olhos do corpo. Mas também não poderíamos entendê-la com a mente, já que a matemática da relatividade geral perdia sua validez na singularidade. A física simplesmente deixava de fazer sentido”. Se é impossível compreender por completo a natureza, o mistério permanece aberto, e aí a loucura se instala.

Já o químico judeu Fritz Haber, outro personagem de Labatut, ajudou a elaborar a tecnologia que permitiu o surgimento do Zyklon B, o gás letal que posteriormente seria usado contra toda a sua família nos campos de extermínio. O caso de Haber é outro eco da obsessão de Pynchon por cientistas interessados no desenvolvimento intelectual de sua área que acabaram colaborando diretamente com novos métodos genocidas. Nunca se sabe, afinal, quando um grande conglomerado como a IG Farben vai se apropriar de suas descobertas.

O que Labatut põe em cena são as contradições entre uma busca “pura” por solucionar enigmas da ciência e a aplicação político-militar das descobertas. É uma questão que nos persegue há milênios e não nos deixará tão cedo. Ao final, Labatut parece reafirmar algo que já foi muito dito, mas nunca é assimilado por completo: a ciência e a tecnologia não são neutras, e qualquer tentativa pragmática de ver os avanços nessas áreas como puro “progresso” está fadada ao fracasso. O livro de Labatut mostra como esse erro se repete ao longo da história, e como a busca por uma visão totalizante também está condenada. Resta o discurso verborrágico, enciclopédico e delirante de todos os que se jogam nessa aventura.

Quem escreveu esse texto

Antônio Xerxenesky

Escritor e tradutor, é autor de As perguntas (Companhia das Letras).