Literatura,

Formas para traumas do futuro

Distopia do horror miliciano trata das feridas abertas da sociedade russa — muitas delas parecidas com as brasileiras

07out2022

O russo Vladímir Sorókin pode ser lido como um dos expoentes de uma literatura que, versada no discurso científico e na intertextualidade, embaralha os fluxos temporais para criar uma estética singular. Em O dia de um oprítchnik, escrito em 2006 e recém-lançado no Brasil pela Editora 34, passado e futuro se entrelaçam para dar forma a aparelhos inteligentes, aquários lisérgicos e cyberpunks que povoam uma Rússia sedenta por retornar, em 2027, à era medieval.

Andrei Komiága, narrador do romance, é membro do alto escalão de uma milícia poderosa, a Oprítchnina. Essa organização — que de fato existiu na Rússia entre 1564 e 1571 — é reimaginada por Sorókin no comando de um país cujos líderes se separaram da Europa e instauraram um poder totalitário marcado por torturas, expropriações e assassinatos dos traidores da pátria.

O título é uma referência às avessas a Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, de Aleksandr Soljenítsin, um clássico da literatura russa em que um prisioneiro de um gulag relata sua rotina excruciante. Com tal escolha, Sorókin sugere mais uma inversão: não é só a temporalidade que pode ser manipulada, mas também o ponto de vista de uma história.

Para tornar a atmosfera retrô-futurista convincente, o artifício principal de Sorókin é a narração feita em um passado imediato. O efeito é similar ao de uma câmera de vigilância. Lê-se pelas lentes de uma cognição ágil, regada a álcool e cocaína, que se força a se manter na superfície. As reflexões cabem apenas ao leitor-espectador, que assiste às cenas de violência descritas com palavras ora religiosas, ora oficialescas. Palavras, é claro, sempre deslocadas dos sentidos originais.

Na literatura de Sorókin, o absurdo pode ser uma forma de tatear o real

Na maior parte do tempo, Sorókin constrói uma narrativa que soa irônica, por vezes pouco sutil, em que pesa o ridículo dos homens no comando do país. Mas a qualidade de sua literatura não está no aspecto sugestivo ou ambíguo, e sim no modo virtuoso como os estilos de linguagem se desenvolvem ao longo do texto. No caldeirão linguístico, reproduzido com esmero na tradução de Arlete Cavaliere, o narrador miliciano mistura poemas épicos, expressões chinesas, linguagem eslava eclesiástica, gírias, maneirismos tecnológicos e slogans ideológicos soviéticos. Um pastiche refinado para dar vida ao grotesco. Observamos paramilitares que brincam de perfurar as pernas uns dos outros; um nobre que se excita ao incendiar casas de mulheres; a gordura humana que escorre das caldeiras de ferro, entre outros pesadelos vivos.

Não se trata de uma prosa pós-moderna vazia ou exibicionista. Está mais para um modo enérgico de lidar com o indizível. Com o recurso de emular linguisticamente os traumas do passado russo no futuro, temos um contato profundo com as entranhas e os fragmentos de um processo histórico complexo que desemboca em uma realidade opressiva, violenta, absurda, e é difícil imaginar uma saída civilizatória. Um país onde a prosa realista clássica soa, para citar o próprio Sorókin, como “atirar em um pássaro que já voou”.

Desafetos

Hoje com 67 anos, Sorókin é um colecionador de desafetos. Sua trajetória artística começou nos anos 70, no mundo underground moscovita. Formado em engenharia, gostava de expor seus trabalhos como ilustrador — obras críticas com paródias e apropriações de clichês do realismo soviético. Lançou os primeiros livros nos anos 80 e, pouco depois, todos foram banidos do país. Voltou a ter a obra liberada na década de 90, período em que se dedicou a peças teatrais — uma delas, a Dostoiévski-Trip, de 1997, foi publicada no Brasil pela Editora 34 —, roteiros e performances que tratavam da crise profunda na Rússia.

A literatura de Sorókin ganha notoriedade com o romance Gordura azul, de 1999, uma ficção científica que mistura os anos de 1954 e 2068, clones de Dostoiévski e Tolstói e cenas eróticas entre Stálin e Khruschóv. Acusado de pornografia e processado pelo Kremlin, o texto rendeu fama internacional ao autor. Em 2002, manifestantes ergueram uma escultura de uma privada em frente ao Teatro Bolshoi e atiraram dentro os livros de Sorókin — uma cena que poderia estar em um dos livros do autor.

De modo menos explícito, está. Em O dia de um oprítchnik, a maioria dos livros de autores russos é descartada em rituais; restam apenas os títulos que exaltam o novo comando do país, citados ao longo do romance por nomes paródicos. Essas obras são consumidas não só por milicianos, mas também por figurões russos com correspondência na vida real. O Soberano, autoridade máxima do romance, é descrito como filho de Nikolai Platonovich — confidente de longa data de Vladimir Putin, considerado um dos responsáveis pelas teorias de conspiração que serviram para, entre outras coisas, sustentar a invasão da Ucrânia.

O romance então ganha múltiplas camadas de sentido ao se intrincar com a Rússia de hoje, cada vez mais semelhante à distopia criada em 2006. Tanto é que, em 2018, um dos filhos de Platonovich se tornou ministro da Agricultura de Putin. Na literatura de Sorókin, o absurdo pode ser uma forma de tatear o real.

Alguns lemas religiosos da milícia russa parecem saídos de campanhas eleitorais daqui

Há muitas semelhanças entre a criação de Sorókin e a realidade brasileira. Além da escalada autoritária e da eclosão de poderes paralelos, alguns lemas religiosos da milícia russa parecem saídos de campanhas eleitorais daqui. O estranhamento do romance soa excessivamente familiar.

Várias obras de brasileiros e russos apresentam inúmeras coincidências. O caso mais célebre talvez sejam as semelhanças entre Enfermaria nº 6, de Tchékhov, e O alienista, de Machado de Assis, sem que um tenha lido o outro. Ao pensarmos em Sorókin, podemos compará-lo com os livros de Ana Paula Maia, calcados na violência crua, bem como nos últimos romances de Joca Reiners Terron, que tratam de distopias em um Brasil devastado. Nós e os russos, afinal, temos muitas questões em comum. A principal talvez seja um passado tenebroso pela frente.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Pavarin

Poeta e jornalista, é autor de O maquinário fantasma (Urutau).