Literatura,

Emocionado e mórbido

As páginas de seu diário que o poeta Carlos Drummond de Andrade salvou da destruição comovem e surpreendem pelo tom franco

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Carlos Drummond de Andrade entrava na última década de vida quando decidiu rasgar os diários que por longo tempo escrevera. Enfurnado no escritório, nos fundos do apartamento da rua Conselheiro Lafaiete, em Copacabana, o poeta fez com aqueles cadernos o que, como escritor e como burocrata, costumava fazer com papéis que não mais o interessavam.

Munido de tesoura, picou-os laboriosamente em retalhos miúdos, como quem quisesse inviabilizar eventuais tentativas de recomposição, sobre folhas de jornal abertas na mesa, que depois convertia numa bola, em seguida amarrada com barbante e só assim atirada na lixeira.

Nem tudo, porém, sucumbiu à tesoura de Drummond. Trechos selecionados dos diários, correspondentes aos anos de 1943 a 1977, foram preservados, e em 1985 reunidos no livro O observador no escritório, cujas 199 páginas deixaram no leitor a vontade de ler mais, muito mais. Além de miudezas de cotidiano, não faltam referências ao trato do poeta com seus animais domésticos: o cão Puck, que, já idoso, a certa altura foi preciso sacrificar, e os gatos Inácio, Crispim e Garrincha.

Doentes e defuntos muito amados por Drummond são descritos com rigor naturalista que haverá de chocar alguns leitores

De seu posto no escritório, Drummond vê morrer seu grande mestre, Mário de Andrade, e cair a ditadura do Estado Novo, participa de sessão espírita ao lado de Vinicius de Moraes em casa de Fernando Sabino, registra historietas divertidas, escapole para entrevistar Luís Carlos Prestes na cadeia e participar de um conflagrado congresso de escritores em Belo Horizonte. Elege e vê renunciar Jânio Quadros, sofre a perda de pessoas queridas e se deixa levar velhice adentro.

Na derradeira anotação de O observador no escritório, em 18 de outubro de 1977, às vésperas de completar 75 anos, o poeta fala da leitura, em madrugada insone, de cartas do pai, Carlos de Paula Andrade, perdido quase meio século antes — e, no tom enternecido e emocionado com que fala do “velho”, é como se anunciasse mais páginas preservadas de tesoura e só agora, três décadas depois de sua morte, trazidas à luz, no livro Uma forma de saudade: páginas de diário, organizado pelo neto Pedro Augusto Graña Drummond. Destacado de velhos cadernos, um maço de folhas foi confiado à filha única, Maria Julieta, a quem caberia, num imponderável futuro, a decisão de abri-las ou não a mais leitores. Ao nomeá-la sua testamenteira literária, não poderia o poeta saber que ela morreria doze dias antes dele.

Belo no conteúdo e na concepção gráfica, com farta iconografia que inclui fac-símiles de páginas de diário, Uma forma de saudade consiste na reunião daquilo que escreveu Carlos Drummond de Andrade quando perdeu pessoas especialmente queridas — o pai, a mãe, os cinco irmãos e uma cunhada, além de dois amigos diletos, Manuel Bandeira e Rodrigo M. F. de Andrade. Quem leu também O observador no escritório haverá talvez de reconhecer, na nova fornada de diários, alguma coisa que está também no livro de 1985; uma passagem sobre a mãe, Julieta Augusta, outra sobre Manuel Bandeira. 

Forma bruta

A diferença, nesses trechos, é que no primeiro livro Drummond editou e encurtou os registros que fizera em seus cadernos, e que no volume organizado pelo neto vão aparecer de forma bruta, digamos, sem a mesma pretensão literária, carregados ainda das emoções não editadas dos instantes em que foram postos no papel.

Não há, em termos de espaço, a menor preocupação em conferir isonomia ao tratamento dos mortos queridos. Não se pode dizer que Carlos amava menos o irmão mais velho, Flaviano, o Vivi, pelo fato de dedicar a ele uma página apenas, enquanto Altivo está em seis, e José em nada menos de catorze. Não gostava menos de Rodrigo, de cujo fim se ocupa em três páginas, que de Bandeira, esparramado em dezenove.

Ainda que não houvesse a intenção, os volumes de texto certamente foram determinados pela quantidade e interesse das informações — e, no tratamento delas, sem prejuízo das emoções às vezes avassaladoras, Carlos Drummond de Andrade se mostra um repórter afiado, capaz como poucos de ver e ouvir, o que não espanta da parte de quem foi, intermitentemente, jornalista apaixonado pelo ofício. Ainda quando o coração sangrava, os olhos e os ouvidos não se fechavam ao que houvesse em torno, por macabro que fosse.

Assim, doentes e defuntos muito amados são descritos com rigor naturalista que haverá de chocar alguns leitores. O poeta não deixou de registrar, por exemplo, no velório de Rosa, a irmã mais velha, “o cheiro da decomposição acelerada” que “o perfume derramado mal encobria”. Ou o corpo já vestido do “pobre Manuel”, num necrotério de hospital, “à espera de caixão”, a boca aberta deixando ver “um chumaço de algodão”. 

Do mesmo Bandeira, Drummond registrou algo mais ameno, nada mortuário — uma declaração surpreendente de quem, nem sempre com êxito, buscou a vida inteira evitar “casos com mulheres de temperamento difícil”. Numa cama de hospital, o poeta de tanta delicadeza declarou aos amigos Carlos e Rodrigo: “Acho que esse negócio de trepar deveria ser uma coisa simples; duas pessoas se encontram e, como se desejam, vão dormir juntas, sem necessidade de romance”. E arrematou: “Justamente para evitar casos complicados é que tenho deixado de comer muita mulher boa nesse mundo”. Drummond, seu amigo desde os anos 1920, não deixaria de anotar: “É a primeira vez que Manuel me fala de seus amores”.

Rigor naturalista

O rigor naturalista se manifesta, também, e copiosamente, na descrição da mãe ainda viva, com uma das pernas tão deformada pela doença que para acomodá-la foi necessário providenciar caixão com forma irregular. Caixão que Drummond terá outra vez sob seus olhos seis anos mais tarde, quando volta a Itabira para assistir à exumação dos ossos de dona Julieta Augusta e levá-los para o túmulo do marido no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte.

Mórbido, detalhista, ele descreve o achado, primeiro, do maxilar e, depois, do crânio, revestido de terra que ele e o irmão Altivo cuidaram de remover. O caráter melancólico da exumação da mãe não impediu, porém, que observasse a fala saborosa de um dos coveiros em meio à função. Mais tarde, no Bonfim, ele se emocionará ao ver seus velhos de novo reunidos, como queria dona Julieta Augusta.

Embora não tenha se matado, Rosa, a outra irmã, também se preparara para o fim. Quando o filho a encontrou morta, ela tinha posto seu melhor vestido

No terreno das revelações, Uma forma de saudade conta o que talvez só os mais chegados soubessem, que a caçula e “ai-jesus” do clã, Maria das Dores, a Mariinha, ao cabo de infortúnios vitalícios, suicidou-se com 25 comprimidos de Seconal. Na mesinha de cabeceira, o irmão encontrou um exemplar recente do Correio da Manhã, e nele uma crônica sua sobre uma menina que, num hospital de Paris, esperava receber cartões-postais antes de morrer. Não se fica sabendo se sobre o corpo de Mariinha se aspergiu um perfume de Guerlain que ela reservara para esse fim. Embora não se tenha matado, Rosa, a outra irmã, também se preparara para o fim. Quando o filho a encontrou morta, “a mais bela moça de seu tempo em Itabira” tinha posto “seu melhor vestido” e o seu mais novo par de meias.

Uma forma de saudade ilumina de modo especial aquele que, dos seis irmãos chegados à idade adulta (oito ficaram na infância), foi o mais estranho: José, quatro anos mais velho que o poeta e seu companheiro na meninice itabirana. Ali está, com suas desconcertantes nuances, um homem de poucas palavras, capaz ao mesmo tempo de “admirável dedicação” e “de uma selvagem brutalidade”.

Encerrado em si mesmo, José, belo homem dado a mulheres, viveu seus últimos 22 anos com uma delas, romance do qual nunca fez alarde e que no início lhe valeu troca de sopapos, na rua, com um marido traído. Mas nem a Aída abria ele inteiramente o coração. Nunca lhe disse quantos anos tinha. 

“Só agora”, disse a viúva no velório ao cunhado poeta, a quem fora apresentada pouco antes, “vim a saber que fazia anos em 13 de agosto”. Tampouco Carlos, apenas menos gauche do que o mano, sabia muito do que se passara no atormentado coração de José mano, que ao morrer fez dele o último sobrevivente dos Drummond de Andrade. “A culpa seria da natureza”, arriscou em seu diário, “por nos ter feito assim aos dois, se é que poderia fazer-nos de outro modo.”   

Quem escreveu esse texto

Humberto Werneck

Escritor, é autor de O desatino da rapaziada (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.