Literatura,

Diálogos deslocados

Publicado há cinquenta anos e só agora lançado no Brasil, romance argentino faz crítica à modernização etnocida

17set2021 | Edição #50

A decisão de Sara Gallardo de pedir a seu editor na revista Confirmado para ser enviada a Salta, no noroeste da Argentina, em 1968 — estadia que resultou na escrita de Eisejuaz (1971) —, não parece um mero gesto de fastio ou falta de inspiração. Ela se dá em um momento de reivindicação de uma literatura mais comprometida com questões sociais no país. E, embora os livros da escritora sejam diferentes entre si, esse não é o primeiro nem o último que se volta para o outro (leia-se de outra classe e origem). O deslocamento como destino atinge seu ápice nesse quarto romance, uma crítica ferrenha à modernização devastadora e etnocida. Um sofisticado experimento artístico no qual o outro desse outro que se buscou devorar também é alvo da mordida.

Reconhecer o possível trânsito entre as motivações jornalísticas e literárias de Gallardo não significa afirmar que ela tinha como prever o que a esperava no Chaco saltenho: aquele que inspiraria seu personagem mais exigente estava no mesmo hotel em que ela, e não em algum lugar recôndito nos arredores da pequena Embarcación. Lá estava Eisejuaz, não hospedado, mas lavando pratos, à espera de alguém que escrevesse sua história, conforme registra Gallardo na página da crônica sobre ele na revista. 

Parido no mato e filho de um xamã mataco (da etnia wichí), Eisejuaz é rebatizado de Lisandro Vega e convertido ao cristianismo por uma missão evangélica escandinava, tornando-se ele próprio um líder religioso e político da região. Apesar do rebatismo cristão, ele é habitado por outros chamamentos: Este Também, Água que Corre, o do longo caminho, o comprado pelo Senhor. Nomes que se ligam a distintos trechos da peregrinação de Eisejuaz, um homem marcado por perdas trágicas (que poderiam ter sido evitadas não houvesse um descaso das autoridades) e que a certa altura de sua estrada cansou de ser bom. Alguém que crê ter uma missão a cumprir após ouvir a voz do Senhor no redemoinho do ralo da pia da cozinha: a de cuidar de Paqui, um homem doente e paralisado que ele encontra “ali no barro” e se revela um crápula.

A jornada é narrada ora em primeira pessoa, ora em terceira (mas referindo-se a si mesmo), com a presença de outras tantas vozes que se comunicam com Eisejuaz e encontram nele um canal para ecoar. Ou que são evocadas como mensageiros em uma liturgia singular: “Anjo da anta, faça-me duro na água e na terra para aguentar a água e a terra. Anjo do tigre, faça-me forte com a força do forte. Anjo do xuri, deixe-me correr e esquivar, e dê-me a paciência do macho que cuida da cria. Anjo do sapo cururu, dê-me coração frio. Anjo do guaçuetê, traga-me o medo. Anjo do porco, tire-me o medo. Anjo da abelha, ponha-me o mel no dedo. Anjo do aracuã, que eu não me canse de dizer Senhor”.

A expulsão dos índios de seu chão empurra-os para as margens, mas não põe fim às suas crenças sagradas

É na fresta aberta por tudo aquilo que nessa cristianização e desterritorialização violentas não se completou em absoluto que Gallardo constrói esse livro, que tanto tardou a chegar por aqui, mas também demorou a repercutir na Argentina — a retomada se deu quando foi incluído por Ricardo Piglia na coleção “Clássicos de la Biblioteca Argentina”, publicada pelo Clarín nos anos 2000. A edição comemorativa de cinquenta anos lançada agora pela Relicário tem como prefácio um texto do crítico e escritor Martín Kohan, publicado originalmente em 2013 em edição portenha, e uma análise da pesquisadora Lucía De Leone, que traça um paralelo de Eisejuaz com A hora da estrela, de Clarice Lispector, além de textos críticos da tradutora Mariana Sanchez e do professor Alexandre Nodari. 

Dimensão sagrada

Travestida de salvação cristã e avanço civilizatório, a expulsão dos indígenas do próprio chão para que fosse transformado em canavial empurra-os para as margens, a subalternidade e a prostituição, mas nenhuma dessas fatalidades põe fim à crença de que a materialidade telúrica não se separa de uma dimensão sagrada. Já a conversão religiosa é de mão dupla, pois acontece em chave antropofágica: o cristianismo converte-se em xamanismo e vice-versa, como ressaltam tanto Mariana Sanchez como Alexandre Nodari. 

As várias referências bíblicas em Eisejuaz não figuram apenas como uma intertextualidade escolhida por uma autora íntima dos textos sagrados (que disse reconhecer em seu entrevistado “a voz dos antigos profetas”), mas como referências caras ao próprio protagonista — embora ele faça questão de dizer que sabe ler, apesar de não fazê-lo. Chama a atenção uma espécie de ruído próprio das passagens de uma língua para outra, que identificamos graças ao empenho e cuidado da tradução. Gallardo inventa um idioma próprio a partir da escuta de um homem que aprendeu castelhano por meio dos ensinamentos bíblicos de um pastor norueguês, enquanto sua língua nativa é comparada pelo antagonista Paqui à “tosse dos doentes”. 

E se essa língua soa apagada no livro, insinua-se pela falta em algumas frases e pelo excesso — nas repetições e recorrentes duplas negativas — em outras. A propósito, há por vezes uma falsa inatividade e passividade contidas na ênfase no “não” seguido do verbo: “O chefe […] ergueu a bengala pra bater na minha mãe e minha mãe não escapou, não pulou, não fugiu. Mas ele não bateu”. O que pode sugerir contenção se revela uma enunciação negativada, espécie de diz que não fez, diz que não diz que faz lembrar “A terceira margem do rio”, conto de Guimarães Rosa no qual “Aquilo que não havia, acontecia”. Lemos em Rosa: “Nosso pai nada não dizia”. Em Eisejuaz, “Nada falei” e “Nada não falei” são sentenças reiteradas.

No Gênesis, o relato da criação do mundo se dá numa sucessão de “disse isso” e “disse aquilo” (“Disse Deus: ‘Haja luz’”; “Disse Deus: ‘Haja um firmamento’”). Eisejuaz também se inicia com um verbo dicendi: “Falei praquele Paqui”. Há ainda na cena inaugural um arremedo contemporâneo do dilúvio: “Tinha chovido muito aqueles dias e os caminhões não podiam entrar na vila”. Contudo, o romance não trata de advento algum, tampouco de regeneração ou purificação pós-cataclismo. O mesmo Deus que no princípio fala no redemoinho da pia também se cala na espuma dos dias, como o próprio Eisejuaz. “Porque quem faz silêncio é Deus.”

Quem escreveu esse texto

Luciana Araujo Marques

É doutoranda em teoria e história literária na Unicamp.

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.