Literatura,

Contos de fadas ‘noir’

Bora Chung navega entre o realismo mágico e o horror na onda de literatura fantástica protagonizada por mulheres

12abr2024 • 15abr2024
A escritora sul-coreana Bora Chung (Hye Young/Divulgação)

Depois de uma história marcada por guerras, dominação japonesa (1910-1945) e alienação do norte da nação, a Coreia do Sul emergiu como potência econômica e difusora cultural. Trata-se da chamada “onda coreana”, talvez mais conhecida pelo K-pop, gênero musical que lota estádios mundo afora. Mas nem só de dancinhas pop vivem os sul-coreanos. Cada vez mais, propagam-se os filmes de vanguarda produzidos no país, como Parasita (2019), ganhador de quatro Oscar, ou os dos cineastas Hong Sang-soo, ganhador do Urso de Prata, em Berlim, com A mulher que fugiu (2020), e Kim Ki-duk, diretor, entre outros, do lindíssimo 3-Iron (2004), inédito em nossas telas. Isso sem falar nas séries televisivas de sucesso.

Nesse movimento se inserem obras literárias igualmente desconcertantes de autoria feminina, como o premiado romance A vegetariana, de Han Kang, e este Coelho maldito, de Bora Chung. A coletânea de contos surpreende não tanto pelos enredos originais, que navegam entre o realismo mágico, o horror e o conto de fadas, e sim, sobretudo, pelo modo natural e até blasé como os personagens reagem às mais absurdas situações que irrompem em seu cotidiano. Em uma das dez histórias que compõem o livro, uma cabeça se forma no fundo de um vaso sanitário a partir dos excrementos de uma mulher, passando a chamá-la de mãe e a exigir sua atenção e amor. O evento é tratado com naturalidade pelas pessoas envolvidas, como o marido, que, ao ser informado sobre a cabeça-excremento, aconselha a mulher a simplesmente ignorá-la.

Chung gosta de situar suas histórias em territórios familiares e tomar a direção ‘mais oposta possível’

Em outro conto, uma mulher usa pílulas anticoncepcionais por mais tempo do que o indicado para tratar uma hemorragia. Ao reportar à médica a interrupção da menstruação, ela é informada de que está grávida mesmo sem ter tido relações sexuais, justamente pelo uso excessivo da pílula. A mulher e sua família encaram o fato improvável com naturalidade, dedicando todos os esforços à busca de um futuro pai, condição para que a gravidez se desenvolva adequadamente.

Em entrevistas que se sucederam à indicação do livro como finalista do International Booker Prize, em 2022, Chung reitera que gosta de situar suas narrativas em territórios familiares, refletir sobre o que normalmente se passa ali e tomar a direção “mais oposta possível”. Essa estratégia data do primeiro conto da autora, que ela escreveu ainda na faculdade, onde estudou literatura eslava, precisamente aquele da cabeça na privada. Na primeira versão, a mulher, ao ver a cabeça, gritava e fugia apavorada. Diante da crítica da irmã, que achou o conto entediante, a escritora resolveu experimentar outro caminho.

“Ainda aplico esse princípio muitas vezes quando escrevo: na dúvida, vá contra a lógica e/ou o lugar-comum. Desse modo, histórias interessantes tendem a surgir mais facilmente.” Não por acaso, Chung menciona que cresceu em uma casa em que um crânio humano era parte da mobília, usado pelos pais, dentistas. Quando criança, ela achava que todas as casas tinham um crânio na sala, diz a autora.

Vingança

O tema da vingança perpassa a maioria dos contos, embora a escritora comente que se trata de acaso, pois a escolha do conjunto foi feita por seu editor sul-coreano. Naquele que dá título ao livro, uma explícita crítica ao capitalismo e à sede por lucro, um homem especializado em produzir objetos de maldição decide vingar um amigo dono de uma destilaria, vítima da ambição desmedida de um mau-caráter. Produz então um lindo abajur com a figura de um coelhinho branco, programado para destruir quem tenha qualquer contato com ele, e o envia como presente à vítima.

Chung revela que a narrativa nasceu de um concurso literário em que os concorrentes deveriam escrever contos tendo como tema cada um dos animais do zodíaco. Os autores que chegaram primeiro escolheram os animais mais interessantes, como tigre, dragão e cobra, e, ao final, sobraram somente o carneiro e o coelho. A escritora diz que recusou o carneiro, que só a fazia pensar na canção infantil “Mary had a little lamb”. Diante da figura do coelho, animal normalmente considerado inofensivo e fofo, Chung tomou o caminho do inusitado que caracteriza sua obra: fez dele um bicho assustador.

Outras retaliações são realizadas por robôs que combinam seus circuitos para atacar uma humana — paradoxalmente, um dos poucos contos com toques românticos —; uma raposa contra um homem cruel e ambicioso; um rapaz vítima de uma ave predadora; e uma moça contra um suposto inimigo do noivo, que o teria deixado cego. Enquanto o primeiro conto é o único que se encaixaria claramente naquilo que chamamos de ficção científica, os três últimos têm um tom de contos de fadas noir em diálogo com mitos coreanos. Para Chung, os mitos e contos de fadas asiáticos têm muitos elementos sinistros. “Gosto particularmente das histórias de horror japonesas. Elas sugerem haver algo mais neste mundo do que os olhos podem ver. O que entendemos como razão humana é tão limitado!”

O que se constata é que, embora a Coreia do Sul tenha um caminho próprio — aquele dos países que nunca se viram como centro do mundo, segundo Chung —, as influências da China e do Japão, que remontam ao passado distante, continuam fundamentais. A onda sul-coreana é sobretudo asiática. Um dos expoentes atuais da literatura japonesa, Haruki Murakami tem sua obra caracterizada por um estilo em que real e irreal se mesclam de maneira quase imperceptível, mas são as mulheres que protagonizam essa leva de literatura fantástica, ou ficção especulativa, como a define Chung.

Entre as autoras asiáticas, chamam a atenção as japonesas Yoko Ogawa, Sayaka Murata, Hiromi Kawakami e Yoko Tawada, criadoras de realidades paralelas igualmente fascinantes; e a chinesa Ling Ma, com seus contos reunidos em Bliss Montage.

O toque oriental e feminino, com protagonistas mulheres que não se encaixam nos papéis sociais de subordinação que lhes são tradicionalmente impostos, tornam essa literatura distinta de outras vertentes desse estilo, como o realismo mágico latino-americano de meados do século 20, protagonizado sobretudo por homens, como Borges, Bioy Casares e Gabriel García Márquez. Fiquemos alertas: uma literatura original e de qualidade vem sendo produzida na Ásia e felizmente tem chamado a atenção de editores estrangeiros, possibilitando mais acesso a ela.

Quem escreveu esse texto

Aparecida Vilaça

Professora de antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora Ficções amazônicas (Todavia, 2022).