Literatura Negra,

Passeio por novas casas

Depois de explorar a subalternidade das crianças, Ondjaki mergulha no universo feminino em novo livro

16nov2023

Sempre que Ondjaki publica um livro novo, as matérias jornalísticas destacam que este é um pseudônimo e informam seu “nome real”. Mas, em entrevista à revista manauara ContraCorrente, em 2017, ele confidenciou: “Dizem que Ondjaki quer dizer guerreiro, em umbundo, mas já ouvi tantas versões, que prefiro acreditar que quer dizer várias coisas. O meu verdadeiro nome, deixo-o reservado à família e aos amigos”. Então, nessa resenha, Ondjaki é Ondjaki.


Em Vou mudar a cozinha, Ondjaki dá um passo além em busca da alteridade radical e incorpora a subalternidade do olhar feminino em um mundo misógino

Seu novo livro de contos, Vou mudar a cozinha, que saiu neste ano no Brasil, pela editora carioca Pallas, é mais uma aposta inovadora e arriscada de um jovem mestre que escolheu explorar as possibilidades e os limites da própria arte. Se antes Luanda era seu cenário principal, Ondjaki agora parece querer ganhar o mundo: os contos se passam não só em Angola, como no Brasil, na Sérvia, na China. O estilo também mudou: se antes era singelo e direto nos livros da infância, ou fragmentado e experimental no premiado Os transparentes, agora é elíptico e sinestésico, com enredos comprimidos ao máximo, reminiscente das melhores narrativas bíblicas ou kafkianas. Os seis contos deste livrinho de meras oitenta páginas são densas parábolas a ser decodificadas.

Infâncias 

Nascido em 1977, Ondjaki surge na cena literária falando de infância. Em 2000, aos 23 anos, lança o romance Bom dia, camaradas (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), sobre a vida de um grupo de crianças angolanas da sua geração: nascidas logo após a independência, em 1975, e crescendo durante a guerra civil, educadas por professores cubanos, enfrentando o racionamento de comida e assistindo a paradas militares do governo socialista. O brilhantismo do livro está no comedimento narrativo de Ondjaki: suas crianças não são profundas nem superdotadas, nem sábias nem prescientes. São crianças, falam como crianças e têm preocupações de crianças. Cabe a nós, pessoas leitoras adultas, captar nas entrelinhas tudo o que elas não conseguiam entender naquela época: Angola foi um dos campos de batalha mais quentes da triste Guerra Fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Em 2007, nos contos de Os da minha rua (Pallas), o autor volta à mesma época e aos mesmos personagens. Enquanto isso, publicava também poesia, teatro, infantojuvenil e já começava a colecionar prêmios — sua obra infantil lhe rendeu, só no Brasil, um Jabuti e três FNLIJ.

Em 2012, quando alguns críticos já começavam a especular que Ondjaki só sabia escrever sobre e para crianças, ele publica o que muitos consideram sua obra-prima, Os transparentes (Companhia das Letras). Parcialmente redigido no Rio de Janeiro, onde o autor morou entre 2008 e 2016, esse romance é uma carta de amor para Luanda. Em um único prédio do centro da cidade, Ondjaki compõe um vasto painel com todo gênero de personagem daquela Angola desiludida com as promessas do socialismo, do petróleo e até da paz. O romance tem a vastidão de um Tolstói em um cenário de Georges Perec, embalado pela inventividade de um português literário que é caudatário de José Saramago e Lobo Antunes, herdeiro de Mia Couto e Guimarães Rosa. Os transparentes é a culminação e o aperfeiçoamento de décadas de experimentos linguísticos dos maiores mestres da literatura lusófona de ambos os lados do Atlântico. No ano seguinte, o romance ganhou merecidamente o Prêmio José Saramago e, em 2016, o Prix Littérature-Monde, na França.

Um passo além

Em suas obras da infância, Ondjaki está sempre tentando canalizar o olhar de uma criança que enxerga a realidade de um ponto de vista difuso, distante e, sobretudo, impotente e subalterno. Mesmo a criança mais privilegiada, como parecem ser os narradores de Bom dia, camaradas e Os da minha rua, efetivamente se limita a observar um mundo em larga medida fora do seu controle. Mas criança Ondjaki um dia foi. Em Vou mudar a cozinha, ele dá um passo além em busca dessa alteridade radical e incorpora a subalternidade do olhar feminino em um mundo misógino. Todos os contos são centrados em mulheres — solitárias ou abandonadas, surradas ou vingativas, saudosas ou excêntricas — e coestrelados por animais: moscas e galinhas, vacas e pássaros, pandas e camelos.

As narrativas são tão abertas que é difícil escrever sobre elas sem impor uma interpretação à pessoa leitora — que merece a chance de chegar a elas com olhos limpos. No primeiro conto, por exemplo, “A mosca e o ladrão”, uma mulher está dormindo em um mosquiteiro vermelho, vê uma mosca dançando na janela e sua casa é invadida por um ladrão. Tudo é claramente simbólico, mas símbolo do quê? A mosca é o agora? A impermanência? Seria o ladrão o tempo, que rouba nossas lembranças, as pessoas que amamos e o controle que fingimos ter sobre a vida? A leitora que o diga. Mas, para isso, é necessário pegar na mão do autor, mergulhar em suas descrições sinestésicas, preencher as lacunas do seu estilo elíptico e acompanhá-lo nessa viagem de alteridade radical para dentro de cada Outro que ele nos apresenta.

O autor habita, dá voz e canaliza a dor das mulheres forçadas à domesticidade, impotência e solidão

O ponto alto do livro é o último conto, “Vou mudar a cozinha”, também um curta-metragem escrito e dirigido por Ondjaki. Em meio à guerra de Angola, uma mulher reflete sozinha em casa, cigarro apagado na boca, hesitando entrar na própria cozinha, destruída pelo marido. Na mente, ecoam os conselhos absurdos e conformistas do pai: “Deves ter paciência com o seu marido”. No corpo, sente a saudade do homem que já não está: 

Ainda dividias cigarros e momentos comigo. Voavas outros aviões que não esses de bombardear pessoas. Ainda a nossa relação estava longe da guerra, dos gritos, das bombas. A nossa cozinha, com as madeiras que poliste, todas as noites adormecia intacta.

Entre homens condescendentes e raivosos, em meio a uma guerra longa, Ondjaki habita, dá voz e canaliza a dor das mulheres forçadas à domesticidade, impotência e solidão.

Talvez não tão brilhante quanto suas obras-primas, Vou mudar a cozinha é um excelente livro de um dos maiores artistas escrevendo em língua portuguesa hoje. Sempre vale a pena acompanhar os percursos de experimentação de um grande escritor no auge da forma.

Quem escreveu esse texto

Alex Castro

Escritor e professor, escreve para a Folha de S.Paulo e é autor de Atenção (Bicicleta Amarela, 2019) e Mentiras reunidas (Oficina Raquel, 2023).