Literatura israelense,

Palavras no fim do túnel

O escritor israelense A. B. Yehoshua concedeu à revista dos livros provavelmente sua última entrevista

14jun2022 | Edição #59

Em 4 de maio, o escritor israelense A. B. Yehoshua avisou: “Tenho câncer e vou morrer, acho, em alguns meses”. Ele falava de Israel, por telefone, com a reportagem da Quatro Cinco Um. Falava devagar, com pausas, com algum desconforto. Mas não falava de modo sombrio nem sentimental. Era direto como a sua ficção. Mencionava sua doença como mais um fato da vida.

Ele morreu em 14 de junho em Tel Aviv, aos 85 anos.

Mais antigo do que o próprio Estado de Israel, fundado em 1948, Yehoshua era um grandes intelectuais israelenses, provavelmente o maior dessa geração, que viu o surgimento e as transformações do país. Morreu em 2016 o professor Menachem Brinker. Em 2018, se foram Yirmiyahu Yovel, Noam Sharif, Aharon Appelfeld e Amós Oz — este último, provavelmente o romancista mais celebrado fora de Israel. Já o ano de 2020 levou Yehoshua Kenaz, vítima da pandemia de Covid-19. Vai embora com eles tudo o que não tiveram tempo de escrever ou dizer.

A morte e o envelhecimento já estavam na ponta da língua de Yehoshua fazia algum tempo. Em 2020, publicou um de seus últimos romances, O túnel, sobre um homem aposentado que perde a memória. O livro sai agora no Brasil pela editora DBA com tradução de Tova Sender.

Na conversa com a Quatro Cinco Um, Yehoshua disse que tinha decidido escrever o livro porque estava com 85 anos, vendo seu corpo falhar, indo ao velório de seus amigos e observando as pessoas ao seu redor se esquecerem das coisas. Ele tinha enterrado sua mulher em 2016, também. Essa era a matéria-prima que flutuava ao seu redor, com que ele conseguia inventar a sua ficção.

Vida e memória

Nascido em 1936 em Jerusalém, A. B. Yehoshua publicou doze romances, além de coletâneas de contos, peças e ensaios. O nome dele costuma aparecer assim em hebraico, com as duas primeiras iniciais — ditas “alef” e “bet”. O “A” é Avraham e o “B” é do apelido de infância, Buli.

Seu trabalho foi traduzido para quase 30 línguas, entre elas o português (como Mr. Mani, de 1989, A mulher de Jerusalém, de 2004, e Fogo amigo, de 2007). Em 1995, recebeu o Prêmio Israel, que celebra os melhores escritores do país, em hebraico. Em paralelo à escrita, Yehoshua deu aula de literatura em algumas universidades de prestígio, como Oxford e Harvard.

Tzvi Luria, o protagonista de O túnel, é um engenheiro aposentado de 73 anos. O romance começa com sua visita ao médico e o diagnóstico de que ele está perdendo a memória. Aos poucos, diz o neurologista, Luria vai começar a se esquecer das coisas. Na verdade, já começou — recentemente foi buscar o neto na saída da escola e levou a criança errada para casa. “No meu cérebro, surgiu um pequeno espaço, como um buraco negro, que ultimamente está absorvendo nomes de pessoas”, diz Luria. “Quando eles são engolidos, aparentemente fica um lugar vago.”

Yehoshua era um dos grandes intelectuais da geração que viu o surgimento e as transformações do país

O médico dá um importante conselho a Luria: não fugir da vida. Ou seja, não se resignar em casa, à espera da morte, esquecendo-se das coisas. Seguindo a recomendação, o engenheiro se oferece para trabalhar como consultor não remunerado em um projeto no deserto do Neguev, no sul de Israel. Luria vira funcionário do jovem Assael Maimoni, filho de um ex-funcionário dele. “Como o personagem está perdendo sua memória, ele quer se trancar em casa para não fazer nada constrangedor”, disse Yehoshua. “O médico está dizendo: você precisa continuar a viver.”

A Quatro Cinco Um perguntou ao autor se ele estava seguindo o conselho também. Se, em meio ao envelhecimento e à doença, não fugia. Ao ouvir a frase do personagem do romance, Yehoshua a princípio disse que não se lembrava dela. Depois, quando se recordou, insistiu que era ficção. “Talvez você enxergue algum sentido profundo nisso. Mas eu não posso me responsabilizar por cada frase dos meus livros. Os personagens não falam em nome de seu autor”, ele afirmou. “Minha vida não é importante, não quero aborrecer o leitor com ela. Minha alegria na escrita é tomar o material do mundo e, ao mudá-lo, tentar encontrar nuances e uma ideia contraditória.”

Ainda assim, os paralelos são interessantes e vão além da questão do envelhecimento e da perda da memória. Um dos enfoques de O túnel é o relacionamento de Luria com sua esposa, Dina. Ela é claramente seu porto seguro, em especial depois do diagnóstico que tanto abala o protagonista.

Por baixo da superfície

Yehoshua descreveu o amor e companheirismo de Luria e Dina com uma delicadeza bonita e convincente. Sem tirar o mérito de seu poder criativo, a inspiração parece clara: sua relação com Rivka Kirsninski, com quem o escritor esteve casado de 1960 até a morte dela, em 2016. Como Yehoshua disse em entrevistas anteriores, perder a mulher — que tinha lido um rascunho do romance — foi um baque quase insuportável, que diluiu sua vontade de seguir vivo.

O romance O túnel é dedicado a ela, descrita como sua “amada infinita” na primeira página. “Alguns dos elementos da nossa relação aparecem na relação de Luria e sua mulher”, Yehoshua contou. “Está na maneira como ela o segura. Como ela o mantém na realidade. Como ela o guia.”

Como o restante da obra de Yehoshua, o livro tem diversas faces e não fica só na questão da perda da memória. O túnel, com o perdão do trocadilho, passa por baixo da superfície e aborda também a política de Israel e suas relações com as populações palestinas deslocadas pela criação do país, em 1948, e pela ocupação da Cisjordânia na Guerra dos Seis Dias, em 1967. “Esse é um livro também sobre a memória do que estamos fazendo, sobre a questão dos palestinos”, observou.

O túnel que Luria tem que projetar no deserto, e que dá nome ao romance, passa por ruínas arqueológicas do povo nabateu que vivia ali na Antiguidade. O engenheiro descobre que uma família palestina está vivendo nos escombros, depois de deixar um vilarejo na Cisjordânia. Um dos fios da narrativa que Yehoshua vai puxando, na segunda metade do livro, é por que razão esses palestinos estão ali, do outro lado da fronteira — o lado errado, para o governo. No mesmo novelo, vêm questões mais profundas. Por exemplo: o que faz de alguém israelense ou palestino?

Uma das pessoas que moram nas ruínas é uma misteriosa garota que adotou um nome israelense, Ayala, e que se esforça para não ter sotaque quando fala em hebraico. Luria, o protagonista do romance, lhe pergunta se ela é judia. A jovem não responde. Palestina? “Antigamente éramos, porém não mais”, ela afirma. Virou israelense, então? “Ainda não, mas talvez seremos, talvez.”

Deixar o passado

Durante boa parte de sua vida, Yehoshua defendeu publicamente a ideia de que a região fosse dividida em dois países, Israel e Palestina. No jargão político, essa é conhecida como a “solução de dois Estados”. Nos últimos anos, porém, o escritor deu uma guinada e abandonou a proposta. Passou a falar na “solução de um Estado”. Isso é, um só país para os israelenses e os palestinos.

“O túnel prevê, talvez, que Israel vai ser um Estado binacional”, Yehoshua disse. Não exatamente porque essa seja a melhor saída ou a mais justa, mas porque pode ser a única viável. O crescimento dos assentamentos judaicos na Cisjordânia dificulta o estabelecimento de um Estado palestino no território, por exemplo. “O que está acontecendo é que, pouco a pouco, a solução que era viável há dez anos — a de dois Estados — já não é mais. Agora já é tarde demais.”

O tom político que permeia o romance, ainda que sob disfarce, é uma característica marcante não apenas do trabalho de Yehoshua quanto de toda a geração de que ele era um dos poucos sobreviventes. Foi o caso de Amós Oz, que criticou o governo israelense até sua morte, em 2018.

Durante a entrevista, Yehoshua afirmou que os jovens escritores israelenses têm evitado tocar na questão palestina. Essa mesma crítica foi recentemente expressa à Quatro Cinco Um pelo escritor David Grossman, de 68 anos, um pouco mais jovem. As novas gerações, Yehoshua disse, andam cansadas do mundo, de sua atmosfera negativa, da profusão de informação na internet, da pandemia de Covid-19 e da invasão russa da Ucrânia. Por isso, segundo ele, elas se escondem da política.

“Os escritores israelense de hoje estão fugindo do problema real, do futuro, da guerra e da paz, da ocupação da Cisjordânia. Às vezes, mencionam a política. Mas, para mim e para meus amigos da minha geração, isso era muito importante”, Yehoshua afirmou. “De certa maneira, foi a literatura em hebraico que primeiro trouxe a questão palestina para o debate político israelense.”

‘As novas gerações andam cansadas do mundo, da atmosfera negativa, da profusão de informação. Por isso se escondem da política’

A questão pode ter chegado à política, mas segue sem resolução. Como atesta a guinada do próprio Yehoshua rumo a uma solução de um Estado, a situação está cada vez mais insolúvel. Uma demonstração clara da barbárie a que se chegou na região foi a morte da jornalista palestina Shireen Abu Akleh em maio deste ano enquanto cobria uma ação militar israelense. Testemunhas acusam o governo de Israel, que nega a autoria do disparo — mas não o investiga. Durante o funeral de Akleh, forças de segurança israelenses atacaram os homens que levavam seu caixão.

Apesar de O túnel de certa maneira lamentar a perda da memória, o livro também faz um alerta sobre o risco de se ater demais às memórias. É um aceno claro ao fato de que tanto israelenses quanto palestinos se apegam a dois passados impossíveis de reconciliar. “Em Israel, nós estamos acumulando demasiadas memórias. Da Bíblia, do Holocausto. Parte dessa memória nos paralisa, em vez de nos dar mais liberdade e mais perspectiva. Nós acabamos tendo muitas obrigações com a memória, e não com a vida”, Yehoshua observou. É nesse contexto que um dos personagens diz para Luria que ele deveria aproveitar a doença, explorar a liberdade que vem quando a gente se esquece das coisas. Deixar o passado para trás, talvez. Escrever o futuro numa folha em branco.

Essa editoria tem o apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.