Literatura infantojuvenil,

Encontro do clássico com a revelação

O estilo inconfundível de Graciliano Ramos e as ilustrações de jovem artista paranaense proporcionam novas leituras à fábula tradicional

01fev2024

“Quem o feio ama, bonito lhe parece” foi a moral da história que Monteiro Lobato escolheu para finalizar sua versão da fábula “A águia e o mocho”, de La Fontaine, que também serviu de inspiração para o poema inédito de Graciliano Ramos. Publicado originalmente em 1923, Os filhos da coruja foi assinado por J. Calisto, um dos pseudônimos utilizados pelo escritor alagoano no início da carreira, e chega aos leitores neste ano em que sua produção entra em domínio público. O livro sai pelo Baião, selo infantil da editora Todavia, e integra a Coleção Graciliano Ramos — ao lado de clássicos como Angústia (1936) e Vidas Secas (1938) —, que tem pesquisa e organização de Thiago Mio Salla, um dos maiores especialistas na obra do autor.


Em Os filhos da coruja, Graciliano Ramos faz uma crítica ácida sobre a espécie humana

“Tu és sempre a coruja e os outros homens são gaviões” é a frase que encerra a versão da fábula escrita por Graciliano Ramos, em estilo inconfundível e bem menos pedagógico do que o adotado por Lobato. Nessa versão poética, o autor não poupa o leitor do fim trágico, tampouco da crítica ácida sobre a espécie humana, tão bem caracterizada no texto pela comadre coruja e pelo compadre gavião.

Um dos destaques do livro é o projeto gráfico assinado por Luciana Facchini, acompanhado pelas arrebatadoras pinturas do jovem artista paranaense Gustavo Magalhães. A opção por uma narrativa visual na qual as imagens relatam, sob outra perspectiva, o encontro entre a coruja e o gavião e os inevitáveis desencontros que daí decorrem, ressalta, simultaneamente, o texto de um dos maiores escritores brasileiros e a arte visual de outro grande artista, este menos conhecido. Aliás, para quem ainda não viu o trabalho de Gustavo Magalhães, vale procurar agora mesmo seu portfólio, disponível na internet. Ele participou de uma reedição de The Picture of Dorian Gray publicada na Inglaterra; Os filhos da coruja é seu primeiro trabalho com livros infantis no país.

Segundo Magalhães, “foi uma honra e uma super-responsabilidade ter o nome vinculado a um dos maiores escritores brasileiros”. Ele conta que o livro foi pensado de modo que as pinturas não servissem de ilustração para o texto, e sim para outra narrativa, a partir de seu ponto de vista. Isso fica evidente durante a leitura, sobretudo pela criação visual de uma ambientação que antecede o encontro dos personagens e pela ênfase que ele dá ao aspecto geográfico nas pinturas. “Foi interessante pensar em como dar corpo às imagens que o texto suscita, de maneira que tivesse equivalência com a força das palavras”, explica Magalhães.

Obra aberta

Apesar do convite para que o leitor escolha como deseja seguir a leitura — uma das marcas editoriais da Baião —, o apelo visual é muito forte e é quase impossível não se deter em cada página, seja passeando pelas amplas paisagens, seja encarando o olhar astuto e faminto do gavião, seja se compadecendo da inocência e graça dos filhotes da coruja, antes de serem devorados. A força das imagens não vem só pelo realismo, e sim pelo modo diverso como elas ocupam as páginas, pelas cores e pelas texturas.

A narrativa visual não apresenta qualquer episódio extensivo ao desfecho. Depois da cena em que o gavião “meteu, faminto, o bico agudo,/ Feriu, espicaçou, matou, estrinchou,/ Fez em pedaços tudo”, as pinturas mostram apenas o voo pleno de um gavião saciado. Se ele traiu intencionalmente a promessa feita à coruja — de não comer seus lindos filhotes —, se de fato não reconheceu os bichinhos por ela descritos com incomum beleza ou se, mesmo tendo reconhecido, destroçou-os, cabe ao leitor decidir. No texto, o narrador apresenta um breve prólogo em que convida a uma reflexão sobre os vícios e as virtudes humanas, sem, contudo, dar uma resposta definitiva acerca do enredo.

As pinturas adentram o árduo sertão humano, tão bem narrado pelo escritor alagoano

Pode ser que essa abertura para distintas maneiras de ler, assim como o vocabulário mais rebuscado do texto, coloque em dúvida a pertinência do livro para o público infantil. No entanto, os selos dedicados a essa faixa etária cada vez mais publicam livros para todas as idades, e leituras compartilhadas e dialogadas são boas alternativas para obras vistas como mais desafiadoras. Vale lembrar que o público mais jovem já foi presenteado com livros de Graciliano Ramos como as várias edições de Histórias de Alexandre ou o belíssimo Um escritor na capela, baseado nos relatos de Memórias do cárcere, adaptados e ilustrados por Nelson Cruz.

No caso de Os filhos da coruja, há um fator especialmente favorável à leitura por parte dos pequenos: a oportunidade de conhecer a deslumbrante arte de Gustavo Magalhães e, a partir daí, adentrar o árduo sertão humano tão bem narrado pelo escritor alagoano.

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Livros, Crianças e Jovens: teoria, mediação e crítica no Instituto Vera Cruz (SP).