Literatura infantojuvenil,

Encanto latino

As lendas da América Latina merecem pé de igualdade com as dos colonizadores europeus

01dez2022 | Edição #64

Vira e mexe a pergunta volta à baila: o Brasil é tão latino-americano quanto os seus vizinhos? Ou: quanto conhecemos sobre as nações que nos circundam? E como isso se reflete no mercado editorial? As respostas dão pano para teses e mais teses. As editoras brasileiras têm cada vez mais se aberto à literatura de nossa vizinhança imediata, mas esta não é uma resenha que se propõe a essa análise, e sim sobre como, ao fim e ao cabo, são as histórias que nos aproximam e ajudam a encurtar essa tão falada distância simbólica. Se conhecemos algo da literatura da América Latina, será que podemos dizer que estamos também familiarizados com suas tradições, suas narrativas populares e seus mitos — sobretudo de seus povos originários?


Viagem pelas histórias da América Latina, de Silvana Salerno

As histórias recontadas por Silvana Salerno, ilustradas por Biry Sarkis, são uma forma de começar a desbravar esse universo. A autora faz a importante opção de priorizar relatos indígenas e incluir outros sobre a relação dos nativos com a opressão colonizadora. Há também contos afro-atlânticos, que vieram com os escravizados ou se referem à sua vivência nos locais a que foram forçosamente levados. Em outra feliz escolha da edição, cada história é seguida de uma seção que contextualiza o conto e informa sobre o país em questão.

Abundam histórias da origem do mundo. Do Peru vem o conto sobre Tushu-Palpa, uma montanha mágica que protegia os cidadãos e que batalha contra uma grande serpente, cujo caminho abre uma fenda que delineia o formato da cadeia montanhosa. O mito guarani da criação do mundo, da Bolívia, também começa — como a narrativa do Gênesis — com o caos, um nada feito de ventos, neblina e escuridão a anteceder o primeiro ato criador. Para o povo oiampi, da região amazônica da Guiana Francesa, a mandioca surgiu da triste história de uma mãe que perde a filha e, ao prantear por muitos dias, vê brotar uma nova planta. O quetzal, pássaro sagrado em diversas culturas, tem sua origem contada numa lenda guatemalteca, segundo a qual era, antes, o filho do chefe de uma aldeia quiché. A noite, num mito dominicano, é criada como consequência de um embate entre o Sol e o vento, que acabou fustigando uma ciguapa, mulher indígena mitológica — “como as amazonas”, ressalta a autora, “formam um povo exclusivamente feminino”.

Honestidade

Há no livro uma honestidade narrativa valiosa. Salerno não tenta florear ou preencher lacunas, e o resultado é de uma crueza potente e desconcertante, com finais bruscos e a ausência da esperada lição de moral. O leitor desavisado pode estranhar a presença de certa dose de violência e terror, da mesma maneira que se chocaria ao ler os originais dos irmãos Grimm.

Em um conto chileno, um menino quase morre sufocado ao tentar sair de uma gruta. Numa lenda do noroeste argentino, para obter o favor do pai, dois irmãos conspiram para matar o mais novo. A Mama Huaca, tenebrosa personagem que habita uma floresta equatoriana, transforma crianças em ratinhos, feitiço revertido não por herói ou fada madrinha, mas pela Pacha Mama, como os nativos chamam a mãe natureza. A “chorona” da lenda uruguaia é uma fantasma permanentemente inconsolável por ter perdido seu filho bebê, e que aparece em noites de neblina. Um triângulo amoroso haitiano acaba na morte de um dos rapazes, que revive e vê seu amigo rancoroso redescobrir o valor da amizade.

O livro nos faz ver a imbricada mistura entre as culturas indígena, africana e europeia

Não é só o gato (e o prefeito) de Joyce que tenta enganar o Diabo: em uma fábula cubana, uma tartaruga passa a perna no cramunhão e salva a própria pele. E quem acha que Shakespeare inventou o conceito de morrer por amor deve ler a história guarani do Paraguai sobre uma jovem que salva seu amado do espírito das águas ao amarrar uma pedra no próprio pé e afundar; ou aquela salvadorenha sobre a mulher que se joga nas águas com um peso depois de ver seu amado morrer e, nas noites de lua cheia, ambos aparecem vagando numa canoa branca; ou a história porto-riquenha na qual um sentinela abandona seu posto pois, ao contrário do que pensavam seus companheiros — que rebatizaram o lugar como “guarita do Diabo” —, fugiu com sua amada.

Ora, dirá o leitor, por que o resenhista faz tantas analogias com relatos bíblicos ou histórias europeias? Porque muitíssimos de nós fomos criados à luz delas, e já é hora de esse monopólio acabar. Porque, na verdade, gostaria de colocá-las em pé de igualdade (no mínimo) e assim no futuro, quem sabe, uma resenha como esta não precisasse se valer de tais comparações.

A pena da autora flui bem, em textos inclusive bons para serem lidos em voz alta, mas algumas histórias têm uma mediação desnecessária, como o conto de piratas no Panamá, cuja introdução contextualiza até celulares. Nas páginas de contexto também há um eventual descompasso. Por exemplo: em El Salvador as questões políticas e a guerra civil têm um protagonismo na descrição, porém esse aspecto não é ressaltado no caso de um país como a Nicarágua, atravessado por questões semelhantes; às vezes fala-se mais de fauna e flora, em outras é a história ou a conformação etnográfica que domina. Uma maior padronização diminuiria opções que podem soar arbitrárias. O volume também ganharia com um projeto gráfico que evocasse mais um livro de histórias e menos um almanaque, e que desse mais destaque e respiro às ilustrações — as quais, por sua vez, quase sempre uma por capítulo, cumprem bem o papel de reunir os principais temas de cada história.

Essas ressalvas, porém, não minam a força do conjunto. O livro é bem-sucedido ao nos fazer ver tudo o que nós, latino-americanos, temos em comum; isto é, essa imbricada mistura entre as culturas dos povos originários, dos africanos e dos colonizadores europeus. Esse caldo é complexo e está longe de ser homogêneo, e por isso destrinchá-lo — como quem busca saber os ingredientes de uma receita —, conhecê-lo a fundo e abordá-lo a partir de novas perspectivas é mister. Comecemos — é o convite deste belo volume — pelas histórias.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Miguel Del Castillo

Editor, tradutor e curador, é autor de Cancún (Companhia das Letras)

Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.