Literatura, Literatura infantojuvenil,

Em busca do próprio mistério

Com reminiscências de Lewis Carroll e Clarice Lispector, livro une a infância e a imaginação para sugerir outras possibilidades de vida

01out2022


Ilustrações de Danilo Zamboni [Divulgação]

Imaginei que teria em mãos um livrão, com grandes desenhos. Quando ele chegou, no entanto, cabia nas minhas pequenas mãos, com capa dura com um desenho a lápis preto um pouco difícil de decifrar, um peixe, uma árvore. Segui rumo ao mistério que essa obra de ficção da escritora Sofia Nestrovski me causou e li: “Era uma vez duas irmãs. Que então era só uma, eu. Nosso nome é Sofia, mas poderia ser outro. Algum que seja bom de falar. Papoula, ginkgo biloba, bis-na-gui-nha. Bisnaguinha. Pode ser. Estamos prestes a começar uma grande aventura, muito longe e sem carro, quando Sofia, ou bisnaguinha, era criança”.

Do lado direito na dupla de páginas, vemos uma casa parcialmente coberta por uma árvore frondosa, em delicados efeitos no papel pólen entre o branco e o preto, assinados pelo ilustrador Danilo Zamboni. Trata-se de uma casa amarelada em frente a uma grande árvore de cor que a memória não guardou. Indefinida. Só que, mais adiante, sabemos um pouco mais sobre Sofia, que está sempre sozinha, na companhia de si mesma e de tudo o que flutua no ar sem ser visto, em cima e em volta de nós. Volto, então, ao “indefinida” escrito antes. De quem ou de que exatamente estamos falando aqui? Quem está à procura de uma definição: menina, casa, árvore, personagem ou história?

Mas a escrita me devolve ao prumo: a atividade preferida de Sofia é fugir de casa. Um dia, fugiu até o quintal e descobriu que algumas partes do tronco da grande árvore tinham amadurecido em excesso, estavam ressecadas e fofas demais. Arrancou pedaços do tronco com as mãos enquanto se perguntava se tudo na natureza tende para o isopor. E é aí que a leitura nos joga no começo dessa estrada, uma trilha entre o real e o fantástico, entre uma infância e todas as infâncias, entre o que se revela e o que permanece mistério. Uma menina à espera de um lugar para se encaixar.

Nessa viagem poética, fui a leituras diversas. O ir e vir de pensamentos da pequena Sofia nos atravessa muitas infâncias leitoras possíveis. Se a menina entende a mochila para a fuga como ideal para guardar todos os segredos que importam no mundo, foi inevitável não lembrar de Raquel, a protagonista do clássico brasileiro A bolsa amarela, de Lygia Bojunga, escritora gaúcha que, aliás, acaba de completar noventa anos. Na obra lançada em 1976, uma menina precisa achar um lugar para esconder as suas vontades, a de crescer, a de ter nascido garoto e a de escrever, e, na nova bolsa, cabe tudo.

Entramos num jogo que remete a ‘Alice’, de Carroll, e a ‘A mulher que matou os peixes’, de Clarice Lispector

Quando vê no tronco da árvore um esconderijo perfeito, ela “desaparece” feito o menino Max, criado pelo norte-americano Maurice Sendak, quando viaja até o lugar Onde vivem os monstros, outro clássico das infâncias, de 1963. A família de Sofia fica desesperada à sua procura enquanto ela se arrisca pelo desconhecido: aquele dia foi ótimo. Sofia conversou com as minhocas. As minhocas são parecidas conosco; têm muita dificuldade de se descolar do chão. É nesse desejo de sumir que sabemos o que ela pediu ao cortar o primeiro pedaço de bolo do seu aniversário de sete anos: tornar-se invisível. E acontece: Sofia estava, então, invisível e órfã e livre, como todas as crianças do mundo inteiro sempre quiseram estar. Nada mais adoravelmente Peter Pan

Mesmo demorando um tempo para se entender na nova condição, ela se entrega bem às viagens seguintes. Tem certeza, por exemplo, de estar diante de um peixe que ri dela e fica indignada porque era ofensivo aquilo, ser alvo da chacota de um peixe. Entramos e um jogo entre impossíveis que remete a Alice, de Lewis Carroll, a que cai no País das Maravilhas e tem conversas nonsense inesquecíveis da literatura, e também a A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector, e a crise da narradora entre a culpa e o desprezo pela negligência com os animais no aquário. Irresistível e estranha história que ainda nos dá um sapo solitário e um pássaro filósofo, com os desenhos de Danilo oferecendo um contraponto delicado de pausa e de chão ao leitor.

Espaço de liberdade

Entre forma e conteúdo, o livro A história invisível é uma espécie de conversa-sonho em que dizemos (ou lemos?) coisas como:

é você que corta os galhos das árvores e vai correndo até onde vivem todos aqueles que fugiram de casa para nunca mais voltar, com mochilas redondas nas costas e sapatos de cadarços amarrados a duras penas e com muito orgulho;

o mundo? O que significa querer ir ao mundo? Se o mundo está sempre tão aqui, se nós somos o mundo para quem quer ir ao mundo também. Somos exatamente a parede de tijolos que os bloqueia, e a porta que se abre (…)


Ilustrações de Danilo Zamboni [Divulgação]

O livro “vem para reafirmar a literatura como um espaço de liberdade”, como diz o escritor Fabrício Corsaletti na contracapa da obra. Eu presentearia este livro não somente a Alice, Raquel, Max, Peter Pan e Clarice, mas também às crianças do poeta Manoel de Barros, todas corajosas infâncias de quintais que ousam fazer perguntas e buscar esconderijos sempre quando necessário. Talvez por isso tudo, um livro que cabe nas mãos (e nas bolsas, mochilas, troncos de árvore e outros buracos).

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Livros de transformação: especial infantojuvenil sobre narrativas LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Cristiane Rogerio

Escreve na revista Crescer.